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O

GENERAL HOMAS YERIK RAS EJOU NO CHÃO DE LAMA FÉIDA. Sentiu a sola da bota em sua bochecha e gemeu de prazer. Era uma noite enorme e preta, o céu estava limpo e a lua minúscula fazia pouco para clarear aquela cena.

— oda a glória aos Lordes da ormenta — recitou o general. — Possa a tempestade obliterar nossa vida e nosso mundo.

Crânio Negro andou sobre o homem, sem olhar para baixo. — Ashlen Ironsmith está aqui?

Tomas Yerik levantou-se, um sorriso beatífico no rosto, e correu como uma barata atrás do caçador.

— Os prisioneiros estão em segurança. O cavaleiro e todos os outros, e há também uma garota, que estava aqui no acampamento.

Crânio Negro voltou-se como um chicote, agarrou Yerik pelo pescoço, e apertou sua manopla até que o general escurecesse.

—Não quero nenhum dos outros — chiou. — Ashlen Ironsmith está aqui? Tomas Yerik espremeu um retalho de voz.

— Sim, meu mestre. — Ainda falava como se fosse um privilégio incrível dirigir-se à armadura preta. — Ele está na prisão.

Crânio Negro soltou-o. Yerik apalpou a garganta, com uma expressão de êxtase. — Vamos pegá-lo.

Os bárbaros moveram-se atrás dele. Eram apenas cinco agora, mas todos homens enormes, partes do corpo recobertas de carapaças insetóides. Os soldados que assistiam à humilhação de Tomas Yerik tinham olhos vidrados, e postaram-se em fileiras ordenadas sob o comando de Crânio Negro.

O caçador de recompensas avaliou o redor, e calculou cerca de mil e quinhentos homens. Os demais soldados do Exército do Reinado notavam aquela estranha

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movimentação, mas boa parte estava amedrontada demais para fazer qualquer coisa. Outros aproveitavam para fugir.

— Vamos pegar Ashlen Ironsmith — repetiu Crânio Negro, saboreando as palavras.

Ashlen surgiu como um fantasma na cela de Zara Lysande. — Já não era sem tempo — disse a mulher.

— Você não está nem um pouco surpresa? — sussurrou Ashlen. — A porta da cela continua fechada, e no entanto eu estou aqui dentro.

— Quer que eu bata palmas?

Ele sacudiu a cabeça e agarrou-a pelo pulso. Em um instante, destrancou a porta, sem nenhum ruído.

O número de carcereiros havia triplicado. A noite já ia avançada, mas nenhum tinha saído uma vez sequer para comer, beber ou mesmo urinar. Ashlen passara por eles sem ser visto, à plena vista, o pé de metal silencioso ou fazendo barulhos oportunos. Imaginara usar a velha tática: libertar todos os prisioneiros e criar o pandemônio, confundir os captores. Mas os prisioneiros estavam mortos. Ashlen viu o queixo de um dos carcereiros sujo de sangue, e afirmou para si mesmo que ninguém havia sido devorado, mas não se convenceu.

Ergueu Zara Lysande como nada, e deslizou através do prédio de madeira. Os carcereiros estavam por toda parte, mas os dois passavam a centímetros de suas costas, entre uma dupla, e não eram v istos. Quase saindo, Ashlen foi notado. Vir ou o corpo num tal ângulo, e agiu com tal naturalidade, que o guarda percebeu apenas um colega em serviço, e não um prisioneiro foragido.

Em um minuto, Ashlen e Zara ganharam a noite. — Vamos embora — disse a mulher.

Ashlen sofreu um momento de dilema, que se refletiu em sua cara. — Não — acabou dizendo. — emos que salvar os outros. — É claro que temos. Só estava testando você.

O acampamento do Exército do Reinado se movia. Eles percebiam, não muito longe, homens marchando. Notaram também soldados furtivos e encolhidos desertando pelo escuro.

Ashlen começou a estremecer com violência.

— Ele está aqui — gaguejou. — Eu tenho certeza. Crânio Negro está aqui. Zara olhou-o, séria e demorada.

— Quer fugir agora? Nova dúvida.

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— Não — mas ainda tremia. — Vamos pegar as armas do anão. Não vamos abando- nar ninguém.

— É bom mesmo.

rebane soltou um grunhido, quase um relincho. Seus olhos estavam revirados para cima, nada visível além do branco puro. Pateou o chão, e então murmurou algo para Allihanna.

— Crânio Negro está aqui — disse por fim.

Os três estavam no interior da tenda, e a guarda ao redor tinha se multiplicado. rebane usara a magia dos animais, enxergara pelos olhos de um pássaro para ver a formação de soldados, os cinco bárbaros, o caçador de recompensas e a covardia do Exército. Piscou, suas íris de novo visíveis, e relatou tudo a Orion.

— Vamos enfrentá-los — disse o cavaleiro. — Orion, são centenas — era Ingram. Orion Drake terminou de vestir a armadura.

— Eu disse que nós resolveríamos o problema do Exército do Reinado. Não há nada melhor para restaurar soldados decadentes do que uma boa batalha.

Colocou o elmo e fechou-o. Era agora uma estátua de metal, inexpugnável como Crânio Negro. Coberto de aço bom e fosco, a voz era um ressoar metálico.

— Vamos liderá-los, por Khalmyr, pela justiça, pelo Reinado e pela morte. — A morte somos nós, Orion — sorriu rebane.

Alguém chegou.

Alguém voltou, e outro alguém. O destino estremeceu, ocupado.

— Exército do Reinado, comigo! — rugiu Orion por trás do elmo.

Irrompera da tenda matando três, antes que pudessem vê-lo. O escudo batia em um quarto, quebrando-lhe a mandíbula, e a espada cortava um quinto.— Pelo Reinado! Khalmyr! Khalmyr!

Eram dezenas e dezenas de inimigos ao redor da tenda. A noite escura subitamente incendiara-se de violência, e a mente de Orion trabalhava febril e distante, avaliando táticas,

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observando o inimigo, traçando um mapa do campo de batalha. Seu corpo movia-se sozinho, matando de vontade própria.

Os primeiros soldados tinham sigo pegos desprevenidos, mas os demais recuaram, entrando em formação. Orion perseguiu-os por alguns metros, mas foi repelido por lanças. Os soldados formaram uma parede de escudos grossa e sólida, e ele era apenas um. Em uma luta contra parede de escudos, era vital não se deixar ser flanqueado. O inimigo avançou sobre Orion, sua linha dobrando-se, e estavam à toda volta, num círculo de escudos sobrepostos. Fizeram a parede de escudos ao seu redor.

Orion abaixou-se, protegeu a cabeça com seu próprio grande escudo. Descreveu uma linha enorme com o fio da espada, cortando tornozelos, e vários soldados desabaram. Sentia as lanças espetando, as espadas em clangor contra sua armadura, o escudo sob uma avalanche de golpes. Já sangrava por dentro do metal.

Ergueu-se, uma torre emergindo do chão, e desferiu um corte formidável que quebrou um escudo. Sem um som, o rosto tão impassível quanto o elmo, seguiu com força descomunal, partindo o segundo escudo e o terceiro. Os inimigos iam para trás, impulsionados, mas sempre havia mais para tomar seus lugares. Quando os soldados avançavam, ele os empurrava, e vários perdiam o equilíbrio. E ele matava e matava, e quebrava homens e objetos, mas eles continuavam, jogando a vida fora com fanatismo de rinoceronte. Orion só conhecia tamanha dedicação em

homens santos ou muito, muito corrompidos, e não achava que houvesse santidade ali. O Exército do Reinado havia sido contaminado pela ormenta.

De repente, do céu limpo, estalou um raio. O relâmpago fulminou três homens da parede de escudos. O chão começou a rugir sob seus pés e, súbito, uma muralha de terra ergueu-se para derrubar uma dúzia de homens. rebane lutava, Allihanna lutava.

— Morte à sua civilização! — gargalhava o centauro. — Morte aos castelos, morte aos reis, morte aos homens! Allihanna!

rebane entregava-se ao combate com a fúria indomada da natureza. Não era um tubarão, não era um lobo: era um maremoto, um ciclone, uma erupção vulcânica. Orion não sabia o quanto dos gritos de guerra do centauro eram só para assustar oponentes e o quanto era o verdadeiro caráter do improvável amigo.

A parede de escudos se rompeu sob o poder de rebane. Orion não hesitou, porque em combate não pensava. Correu no mesmo instante por entre os homens, cortando e cortando, sem ver o estrago que fazia, e saiu da formação dos inimigos.

No ar fresco, livre da muralha de corpos, viu que o Exército do Reinado se mexia, ago- ra todo.

— Pelo Reinado! — trovejou Orion, erguendo a espada. — Porlady Shivara!

Os inimigos eram organizados, marionetes de fanatismo, e os soldados leais estavam assustados, incertos, sem líderes. Mas eram muitos. Orion viu que uma coluna se formava, uns cem homens, e à sua frente estava Ingram Brassbones.

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Voltou-se porque era atacado, e entrou no ritmo de combate, bloqueando e batendo com o escudo, cortando e estocando com a espada. A coluna de Ingram atacou um flanco do inimigo, e Ingram correu para o cavaleiro. Estava com o rifle, e derrubou dois soldados antes de chegar esbaforido.

— Você está com suas armas — disse Orion. — Como? — Ashlen.

— Onde ele está agora? O anão deu de ombros.

— Ache-o e proteja-o, eu vou fazer o mesmo — disse o cavaleiro. — Crânio Negro vai estar por perto.

O anão assentiu e atirou de repente com as duas pistolas, matando dois inimigos em carga. Orion movia-se pelo campo de batalha como em um baile — não andava, dançava a dança da morte. Vasculhava o acampamento em busca de Crânio Negro e Ashlen Ironsmith. Viu que havia outros focos de luta, o inimigo se espalhava, o Exército do Reinado resistia. Os cadáveres já tornavam difícil caminhar.

Nuvens repentinas escureceram a lua pálida. Uma gota de chuva tímida bateu contra a armadura. Os relâmpagos se intensificaram. rebane.

O centauro estava longe dali, ceifando corpos com sua enorme foice. Encharcado de sangue alheio, comandava as forças de Allihanna ao mesmo tempo que cortava e escoiceava. rebane era tão selvagem que lutava s ozinho, porque os aliados tinham medo de se aproximar.

— Vou comer seus cadáveres! — berrava.

De repente, sentiu uma flecha mordendo-lhe as costas. Outras duas cravaram-se no tronco de cavalo, e outra resvalou em seu couro duro. Ele se voltou, a cabeleira selvagem movendo-se atrás, e viu Tomas Yerik, o general do Exército do Reinado.

rebane rosnou. Tomas Yerik soltou o arco e estava de mãos nuas, mas seu braço esquerdo começou a se mover de jeito estranho, e uma lâmina carnosa e vermelha foi expelida de sua mão. O general tinha virado uma coisa bizarra, mal reconhecível. O corpo tinha carapaça de inseto, e brotavam-lhe duas antenas pegajosas da testa. Os olhos tinham aumentado e se transformado, as pupilas agora multifacetadas como olhos de mosca. Duas patas serrilhadas emergiam-lhe do ventre, e um visco translúcido e nojento rebrilhava em cada parte. A corrupção da ormenta.

— O simbionte é magnânimo — disse o general, a língua babando e as quelíceras estalando. — O simbionte é poderoso. O homem não é nada. A terra não é nada. A ormenta é tudo — como uma litania.rebane grunhiu de nojo e fúria. A ormenta, uma presença forasteira e antinatural, era a maior abominação aos olhos de Allihanna. A ormenta e seus habitantes não obedeciam às leis da caça e da vida, eram uma mancha horrenda, que não morria e não vivia, que não nascia

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e não copulava. Homens corrompidos pela ormenta, como o general Tomas Yerik, eram caçados sem piedade pelos servos da natureza. E homens corrompidos como aqueles soldados muitas vezes evadiam os poderes da Deusa e, rebane percebia, era por isso que não fora capaz de detectá-los na floresta, antes.

rebane pensou tudo isso, mas disse apenas: — Seu filho da puta.

E atacou.

Saltou sobre o general, os cascos prontos para quebrar ossos e qualquer coisa repugnante que fosse aquela couraça. Mas Tomas Yerik agora era rápido; saiu debaixo do centauro com uma agilidade de barata. Abriu quatro asas duras, marrons e melequentas, e voou três ou quatro metros, zumbindo desajeitado. As patas de rebane afundaram na lama, a foice resvalou e espalhou barro. Tomas Yerik abriu a boca e cuspiu um jorro de dardos pretos e amarelos, cheios de pus e infecção. Acertou o peito do centauro, rebane sentiu veneno e sujeira alienígena.

Investiu de novo contra o homem corrompido, girando a foice muito à frente. O general aparou o golpe com sua espada, que era imensa e tinha veias e pulsava, como uma coisa viva. A lâmina da foice começou a enegrecer, uma lenta degradação se espalhando. rebane sentia, mesmo sem ver, que a ardente e secreta vida do solo morria onde Yerik pisava. Minhocas e vermes, e plantas minúsculas e coisas invisíveis definhavam porque a ormenta lhes tocava. Sentiu vontade de vomitar.

— A natureza acabou — disse Tomas Yerik.

O general saltou e atacou e atacou, a lâmina bizarra encontrando a carne dura de rebane. As patas de barata cortaram-lhe o peito. Por sob a dor, o druida viu a imagem de Tomas Yerik estremecer. A ormenta não era deste mundo, não era natural. Aquelas formas de inseto não eram os insetos de Allihanna, não eram as criaturas fortes e diligentes e tenazes que prosperavam na sujeira boa. rebane viu que a forma de inseto era apenas uma tradução que Arton conseguia fazer daquele horror.

Tomas Yerik cortou de novo, a espada fazendo uma das patas do centauro se dobrar. O general não segurava a arma: ela se misturava à carne de sua mão.

rebane rugiu, e a chuva virou um dilúvio, e o vento soprou assassino. Formou-se um pequeno tornado ao redor de Tomas Yerik, erguendo-o do chão e fazendo-o girar desordenado. As asas trabalhavam contra a tempestade, mas fraquejavam. Até que o poder de Allihanna sumiu. O general caiu ao chão, rindo.

— A tempestade de Allihanna é fraca — levantando-se e mal conseguindo respirar entre as gargalhadas. — A ormenta é a única tempestade.Uma bola de gelo formou-se no estômago de rebane. A chuva diminuiu e cessou, e os relâmpagos relutavam. De repente, um relâmpago vermelho cortou o céu, pleno de imundície e horror. Logo, outro, e pingos vermelhos espalhados. Havia magias corruptas que podiam

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invocar alguma parte do poder da empestade Rubra. Duzentos soldados morreram. Aquela era uma paródia muito cruel: os insetos que não eram insetos, a tempestade que não era tempestade. A corrupção extrema.

Tomas Yerik correu e investiu, a espada reta perfurando a barriga de rebane. A ponta saiu abundante por suas costas, e o general torceu a lâmina e riu. rebane gritou e agarrou a cabeça do inimigo com as mãos enormes, soltando a foice. Yerik usava a espada como um serrote, destroçando o estômago do centauro.

— Allihanna!

Os cortes se fechavam, o poder da natureza curando, ao mesmo tempo em que novos cortes surgiam.

— Allihanna!

Olhos brilhantes de vida começaram a surgir na escuridão. — Allihanna!

A selvageria de Arton explodiu contra Tomas Yerik.

Dois imensos ursos saltaram do nada, trazidos pelo poder do centauro, as garras sobre o general. Um crocodilo enorme, e uma matilha de lobos negros. E por fim os insetos, os verdadeiros insetos da Deusa, e todos atacaram o homem corrompido, que gritou. Tomas Yerik sentia a carne ser dilacerada, mordida, estraçalhada por garras. A carapaça era quebrada, as antenas eram arrancadas. E os animais de Allihanna morriam sob cortes e corrupção, mas não hesitavam, e surgiam mais.

— Allihanna!

rebane também rugia, e mordia, como um bicho. O general arregalou os olhos, mas eles foram arrancados, e ele sentiu as fraquezas de seu corpo ainda quase humano, quando os tendões foram rompidos e as veias esguicharam um vermelho já imundo. Ele chorou pelos Lordes da ormenta, mas soube que não haveria resposta. E soube que não haveria vida após a morte, não haveria arrependimento nem redenção e nem mesmo punição, porque ele se entregara à ormenta. homas Yerik morreu, e deixou para trás só uma casca imunda.

E logo rebane corria pelo campo de batalha, gargalhando e segurando as tripas, e exibindo a cabeça decepada do general.

Orion via o caos ao seu redor. Os soldados do inimigo e os homens leais se confundiam, os mesmos uniformes e os rostos que, até um dia atrás, eram aliados. Ele se perguntava quantos inocentes já tinham morrido por enganos letais.

Ele não cometia esses erros, via nos olhos a corrupção ou a expressão dos soldados do Exército, que, francamente, era em geral de medo.

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Não encontrara Ashlen, e vira que, em algum lugar, havia um mago a serviço da ormenta, porque um relâmpago rubro havia como que cortado a chuva de rebane, e apagado seus próprios raios. Eles mesmos não tinham um mago, não que ele soubesse.

Orion procurava o grosso do combate, onde os soldados eram cercados, onde mais homens morriam. Liderava um grupo e outro, dava conselhos rápidos aos oficiais, mas quase se sentia perdido.

Súbito, um fulgor de amarelo e laranja, e um estrondo e fumaça que espalharam os inimigos por metros. Orion não era um conhecedor de magia, mas sabia distinguir quando um mago lutava do seu mesmo lado. Correu para proteger o homem que ainda não enxergara, porque sabia que magos eram frágeis como papel, se o inimigo chegasse perto.

Colunas e mais colunas interpunham-se entre ele e as luzes da magia. Muitos daqueles inimigos tinham buchos abertos, braços cortados, já deveriam estar mortos. Eram mantidos vivos pela ormenta. Ele os cortava mais e mais e, se não conseguia matar, ao menos deixava- os no chão. Mas os inimigos juntavam-se como um enxame ao seu redor, e ele não conseguia avançar. Mais uma explosão — quem seria aquele mago?

Orion afundou um rosto com seu escudo, estocou fundo a ponta da espada em uma virilha, e de repente sentiu os joelhos fracos.

— Keenn.

Era uma voz de mulher, e Orion imaginou se já tinha perdido tanto sangue sob a armadura completa, se estava delirando. Vinha do lado, fraca sob a balbúrdia de morte, mas era um grito, e era feroz. Quase na mesma direção de onde ele julgava estar o mago, embora isso fosse difícil de calcular em meio à confusão.

A voz o fez pensar, e o corpo de novo esteve junto com a mente, e por isso ele hesitou e foi atingido na cabeça. Sentindo o elmo como um sino, virou-se e matou seu atacante. Correu em direção à voz, mas mal conseguia se mover, cercado.

— Keenn!

Um pouco mais perto, ouvia um pouco melhor. Mas as espadas e lanças e martelos e mãos não cessavam, ele perdia o senso de direção, tonteava. Chutou um peito, destroçou um nariz com uma cabeçada fortalecida pelo elmo. Avançava, mas pouco.

Os inimigos talvez soubessem o que ele queria. Ou talvez fosse só azar que fizesse com que eles se concentrassem em Orion, e súbito começassem a agarrá-lo, jogando a vida fora apenas para retardar sua passagem.

Azar; sorte e azar, mas esses eram os preceitos de Nimb, o Deus do Caos, e ele desprezava- os, porque seguia Khalmyr, o Deus da Justiça, e não podia se deixar dobrar por meros acasos. Viu que estava pensando incoerências sem nenhuma relação com o combate.Lutou no ritmo ordenado, o ritmo praticado, certo e comprovado, mas os inimigos eram muitos, seguravam seus braços e pernas, ele não conseguia ir em direção à voz. Uma pilha de oponentes formava-se sobre ele, já era difícil respirar sob o elmo, ele estava sendo

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soterrado, mas ouvia ai nda a voz, tinha uma va ga idéia da direção, viu luzes de i nconsciência frente aos olhos.

—Keenn! — Estava perto.

Súbito, um relinchar furioso. Orion sentiu o impacto quando cascos de bigorna quebraram as costas dos homens por cima dele. Pensou em rebane, mas quando, livre da montanha de corpos, olhou para cima, viu um cavalo. Branco e imenso e garboso, golpeava os inimigos, seus olhos cheios de luta e inteligência. O cavalo abriu espaço, e ele pisou em um homem caído para tomar impulso e saltar para o animal.

Montou com facilidade de cavaleiro da Luz e, sobre o magnífico corcel branco, era agora completo.

O cavalo não tinha sela nem arreios, mas Orion equilibrava-se com perfeição. Mal tocou os lados do animal com suas grevas sem esporas e ele irrompeu num galope formidável, os dois como um só desfazendo as linhas inimigas. E viram a voz, viram a clériga.

—KEENN!

Vanessa estava linda, matando com sua maça e sua enorme barriga, cercada de inimigos. Orion não conseguia ver o mago. Cavalgou até ela, matando tudo que se interpunha, e viu que ela estava sobre uma larga poça de sangue. A frente de seu vestido também encharcada de vermelho, mas não era um ferimento. Ela tinha no rosto uma agonia diferente.

Vanessa estava para dar à luz. Orion gritou seu nome.

Vanessa olhou para a coisa de metal coberta de sangue que era o seu marido. Sorriu por um instante, mas então disse:

— Atrás!

Orion voltou-se e viu que era perseguido. Como no forte Arantar, homens corrompidos, carapaças e partes de insetos, voavam com asas estriadas para os dois. Jogaram azagaias, que o cavalo evitou sozinho, e circularam para dar um bote.

Orion impulsionou o cavalo branco, rompeu o círculo de inimigos ao redor de Vanessa,

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