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Narração cena a cena

No documento Uma análise de O que é isso, companheiro? (páginas 97-104)

3. JORNALISMO LITERÁRIO NO CINEMA

3.4. Narração cena a cena

O último recurso, levantado por Wolfe (2005), é a narração em cenas. A divisão dos capítulos em O que é isso, companheiro?, como já explicitado na primeira parte desta tese, enfatiza a linha de pensamento do próprio autor, trazendo episódios curtos e sequenciados. Da mesma forma, o cinema usualmente trabalha sequências de cenas rápidas e agitadas.

Ao narrar a história em primeira pessoa, o narrador por vezes carrega o leitor em seus devaneios e pensamentos, trazendo fluxos de consciência em meio à narrativa mais objetiva. Desde o início do livro é possível identificar essa linha narrativa. E é através desses devaneios que o leitor é conduzido pelo enredo de O que é isso, companheiro?.

A história de como Gabeira se envolveu com a luta armada contra o regime militar instaurado em 1964 começa de forma agitada e frenética. O início do livro é rápido e o narrador, que também é o personagem principal, corre com suas próprias ideias em um frenesi que mais parece uma tentativa de não perder as próprias ideias que avultam à mente.

Este portanto é o livro de um homem correndo da polícia, tentando compreender como é que se meteu, de repente, no meio da Irarrazabal, se havia apenas cinco anos estava correndo da Ouvidor para a Rio Branco, num dos grupos que fariam mais uma demonstração contra a ditadura militar que tomara o poder em 1964. Onde é mesmo que estávamos quando tudo começou? (GABEIRA, 2009, p.11)

Este trecho, em que o narrador aponta que a obra é sobre um homem fugindo da polícia, se mostra muito simbólico e representativo do que o leitor encontrará nas páginas seguintes. Destacar o personagem em fuga é apontar para sua agitação e seu ativismo, características fundamentais para a interpretação de todo o movimento armado do período. Além disso,

colocá-lo fugindo da polícia é também emblemático porque aponta duas posições opostas em destaque: de um lado, a figura da autoridade, da legitimação, da força do Estado, da violência institucionalizada; e de outro a ilegalidade, a ousadia, o atrevimento, a busca da legitimação nunca alcançada. A obra é, dessa forma, resumida neste parágrafo com a dicotomia da força estatal e da força revolucionária em confronto.

Todo esse sentido é conduzido e produzido em face do recurso da narração cena a cena. O aspecto novelesco da obra se destaca sobre esse elemento. Sua transposição para o cinema, dessa forma, se deu quase que naturalmente. A arte cinematográfica é trabalhada com narrativas cena a cena. A velocidade com que as cenas se alternam nas sequências do filme vai ditando o ritmo narrativo, produzindo novos significados.

Conclusão

O que é isso, companheiro? (2009) foi publicado pela primeira vez em 1979, quando o Brasil vivia sob um regime ditatorial imposto pelas Forças Armadas. O livro foi escrito por um jornalista que se aventurava pelo mundo das Letras. A repressão, que se tornou marca desse período (1964-1985), contribuiu para que muitos jornalistas buscassem refúgio na literatura, como uma estratégia de resistência, já que praticamente todos os jornais eram censurados.

A obra O que é isso, companheiro? (2009) pode ser considerada um romance de jornalismo literário. Sua história é baseada em eventos reais, há uma preocupação em trazer uma notícia ao público. O enredo, como foi visto, baseia-se na participação do próprio autor, Fernando Gabeira, no planejamento e sequestro do então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick. É possível classificar a obra como romance, tendo em vista os elementos básicos que o livro apresenta, como narrativa, tempo, espaço e personagens. Mais do que isso, o relato de Gabeira transcende as folhas dos jornais, transitórias, e perpetua-se nas páginas de um livro que já é editado há mais de 30 anos.

Publicar o relato do sequestro que se tornou símbolo da resistência armada nos tempos da ditadura já confere à obra destaque entre as grandes produções nacionais. Além disso, esta tese apresentou qualidades estéticas de criação narrativa e construção de personagens que dispõem o livro em tal posição. Fernando Gabeira mostrou com sua obra que é um bom jornalista, contador de histórias e observador de seu tempo.

Nesta tese, o leitor se deparou com uma análise do histórico de capas do livro O que é isso, companheiro?, apontando as diferentes significações decorrentes de suas cores, desenhos e imagens, a fim de contribuir para outras pesquisas a respeito do objeto-livro. Além da investigação das diferentes edições, conforme demonstrado, esta tese estudou como Gabeira (2009) valeu-se de recursos literários para arquitetar seu relato. Muito mais do que registrar uma aprofundada apuração jornalística, ele construiu uma trama narrativa complexa, com personagens de perfis psicológicos complicados, singulares, desejos ocultos, intempestivos, representativos de um período histórico brasileiro. Suas ferramentas e métodos são provenientes do jornalismo e da literatura. Além disso, sua narrativa cena a cena é quase cinematográfica, o que provoca a produção, de fato, de um longa-metragem com a mesma história. O leitor é acorrentado pelo fluxo de imagens construídas pelo narrador. Em tempo, o

alto número de edições e vendas e a grande repercussão da obra ainda hoje convalidam seu prestígio estético.

Fernando Gabeira e outros jornalistas que buscaram abrigo na literatura no período censor da ditadura militar avultaram, novamente, as discussões da ficcionalidade no jornalismo e do realismo na literatura. “A verdade dos fatos existe? Existe um relato perfeitamente neutro e isento? A objetividade perfeita é possível? Não, não e não. A verdade dos fatos é sempre uma versão dos fatos [...]. A objetividade perfeita nunca é mais que uma tentativa bem-intencionada" (BUCCI, 2009, p. 51). Sem dúvida, essa é uma discussão que não se acabará tão rapidamente. E talvez seja importante que não se acabe. Por em questionamento constante a prática jornalística é salutar para o desenvolvimento da área, fortalecendo-a de tal maneira que não permita mais que ditadores cerceiem suas liberdades intrínsecas.

Portanto, examinar conteúdos e obras do jornalismo literário não é repudiar as premissas básicas do jornalismo, mas incorporar a ele estratégias estéticas da literatura. Um dos movimentos mais marcantes do jornalismo literário se deu nos Estados Unidos, por volta dos anos de 1950 e 1960, com o Novo Jornalismo. Esse movimento surge da inquietação de jornalistas em produzir conteúdos mais completos e esteticamente mais atraentes, que buscaram na literatura artifícios para seus textos. Tom Wolfe (2005), um dos maiores nomes do Novo Jornalismo, resume essas ferramentas em basicamente quatro: uso de diálogos, descrição, pontos de vista da terceira pessoa e narração cena a cena.

Usar um livro do jornalismo literário para criar uma obra de ficção para o cinema, certamente não é tarefa fácil. Bruno Barreto (1997) constrói O que é isso, companheiro? a partir da obra homônima de Fernando Gabeira (2009), levando para o audiovisual um enredo todo pensado para o impresso. Pode-se perceber, no entanto, que a aproximação do jornalismo com a literatura destacou nos textos escritos elementos que podem ser levados para o audiovisual, construindo novos significados.

Portanto, foi possível verificar que os quatro elementos destacados do Novo Jornalismo (vertente norte-americana do jornalismo literário) foram transpostos para o audiovisual com êxito, no caso de O que é isso, companheiro?, produzindo ressignificações provenientes da aproximação do jornalismo, da literatura e do cinema.

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