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neutralidade e de grande representatividade, quando de fato apenas procuram

destruir uma das maiores lupas dessas intenções, pois o teatro tem a capacidade de aglutinar ideias, pessoas, sentimentos, desejos, expectativas, transformando todos esses agentes e aspectos em circuitos coesivos, igualmente capazes de promover curtos-circuitos em correntes elétricas que desejam paradoxalmente as trevas e não a luz do esclarecimento público das realidades vividas e sofridas pelo conjunto social.

A terceira motivação deste trabalho refere-se ao atual estágio das políticas curriculares para a juventude brasileira em curso. Tal modelo propõe um “derretimento curricular” de disciplinas como Arte, Sociologia e Filosofia, em articulação ao retorno autorizado pelo STF, do ensino religioso de matrizes religiosas específicas em escolas públicas, ferindo frontalmente o estatuto da laicidade estatal.

Antonio Candido foi um dos primeiros pensadores brasileiros a levantar a voz a favor de educação literária plural e consistente e que fosse capaz de atingir o interesse do povo; que pudesse desenvolver-se a partir de um envolvimento com a sua própria cultura letrada, cada vez mais sua autonomia cultural, intelectual e humana. Foi nesse cenário de extremo otimismo típico de Antonio Candido que este pensador singular propôs uma reflexão acerca do caráter humanizante ou humanizador da literatura para a compleição formativa dos sujeitos históricos. Trata-se do famosíssimo texto “O direito à Literatura” (CANDIDO, 1988), em sua já clássica lição sobre os bens “compressíveis” e “incompressíveis”, conforme lição já clássica do autor:

Certos bens são obviamente incompressíveis, como o alimento, a casa, a roupa. Outros são compressíveis, como os cosméticos, os enfeites, as roupas extras. Mas a fronteira entre ambos é muitas vezes difícil de fixar, mesmo quando pensamos nos que são considerados indispensáveis. O primeiro litro de arroz de uma saca é menos importante do que o último, e sabemos que com base em coisas como esta, se elaborou em Economia Política a teoria da “utilidade marginal”, segundo a qual o valor de uma coisa depende em grande parte da necessidade relativa que temos dela. O

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fato é que cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade, que estão ligados à divisão da sociedade em classes, pois inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra. (CANDIDO, 1988).

Embora seja perfeitamente possível questionar a ideia de que a literatura, ou melhor, a leitura literária, carregue em si um DNA capaz de humanizar de maneira inequívoca a todos que nela mergulhem, não é incoerente pensar que as experiências de fruição estética ancoradas no contato com a arte e com a literatura sejam momentos de refúgio para contextos sociais e políticos ultraconservadores de extrema aversão ao novo e ao diferente, ao contestador do status quo, sobretudo quando estes contextos estão carregados de ódios e intolerâncias de variadas ordens. Por refúgio, não queremos dizer que se trata da busca pela alienação aos fatos da realidade, mas ao contrário, é com base no laboratório imersivo da criação e análise crítica e artística que se concebe as melhores alternativas de resistência ao sectarismo cultural, que em verdade, espelha outros sectarismos, nomeadamente os religiosos e os político-sociais.

A militância cultural de Antônio Candido também se preocupou com o teatro brasileiro. Apesar de não ter dedicado em sua Formação da Literatura Brasileira um capítulo ao teatro, o autor reconhece a lacuna em sua própria produção crítica:

O estudo das peças de Magalhães e Martins Pena, Teixeira e Souza e Norberto, Porto Alegre e Alencar, Gonçalves Dias e Agrário de Menezes teria, ao contrário, reforçado meus pontos de vista sobre a disposição construtiva dos escritores, e o caráter sincrético, não raro ambivalente, do Romantismo. (CANDIDO, 2000, p. 12).

A despeito da pouca inserção do teatro na crítica de Candido, determinadas peças que contestavam o regime de exceção dos anos 1960-1970 no Brasil foram objeto de reflexão do crítico, que se posicionou em defesa dessa dramaturgia contestadora. Uma dessas peças foi Milagre na cela (1977) de Jorge Andrade, que discute exatamente a repressão militar e a atuação da Igreja Católica nesse processo. Candido escreveu prefácio da referida edição, elogiando a qualidade estética e a discussão empreendida por Andrade no referido texto teatral:

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“[...] Mas a peça histórica e terrível de Jorge Andrade vai mais longe e mais largo, abrangendo um dos dramas maiores da nossa condição, que é a tendência para pôr o homem sobre o arbítrio do homem. A História é em grande parte história disso; dos esforços que os homens fazem para reduzir o semelhante ao seu dispor, ou para se livrarem deste estado. Costumamos considerar piores os regimes que criam possibilidades de arbítrio, de brutalidade sistemática de uns sobre os outros. Costumamos considerar melhores os que as atenuam. E em qualquer regime, é bom lembrar que no fundo de cada homem há sempre a possibilidade do pior vir para fora e se espraiar, quando é solicitado pelos que o manipulam como útil instrumento de domínio.” (CANDIDO, 1977, p. 10).

No caso brasileiro, é claramente perceptível em nossa época essa tentativa apontada por Antonio Candido de “pôr o homem sobre o arbítrio do homem” e de silenciar alguns discursos artísticos e seus modos de expressão. Uma das primeiras manifestações artísticas que costumam sofrer censura e retaliação é justamente o teatro, exatamente pela força simbólica dessa arte e da vinculação de cunho aristotélico, isto é, mimético e verossimilhante, tendo em vista o juízo médio de censores.

Seguindo a tradição crítica delineada por Hannah Arendt (2001), o assistir e o fazer teatro é uma atividade eminentemente política, termo aqui empregado em seu sentido original grego, sinônimo de democracia, demarcação conceitual bem diferente do que se opera em nosso tempo, no qual política é um termo para tudo e para nada, fonte de degradação da ética e da moral públicas.

Vejamos a natureza do ser político para Arendt (2001), à luz da tradição grega e que nos convida a conclusão de que o mundo hoje ainda é pré-político, nos termos que a autora delineia tal conceito:

O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis. (ARENDT, 2001, p. 35-36).

Nesse cenário, o teatro grego emerge segundo Arendt (2001) como uma arte naturalmente política, própria da Pólis, em face de toda a tradição grega que a

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