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MAPA

A Jorge Burlamaqui Me colaram no tempo, me puseram

uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,

a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação. Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,

depois chego à consciência da terra, ando com os outros, me pregaram numa cruz, numa única vida.

Colégio. Indignado. Me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram um rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos. Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,

gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos no ar, alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem

nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado no éter, tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,

não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas, é por isso que saio às vezes pela rua combatendo personagens imaginários, depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,

na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou do outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações... Me desespero porque não posso estar presentes a todos os atos da vida. Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.

Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,

Presságios brotando do ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção, o mundo vai mudar a cara,

a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas. Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias, me aninharei nos recantos do corpo da noiva,

na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários... Tudo transparecerá:

Vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra, o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,

dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres, vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no mar, me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes. Detesto os que se tapeiam,

os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”... Viva São Francisco de Assis e vários suicidas e amantes suicidas,

e os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães, as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.

Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito... Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou presa do homem que fui há vinte anos passados, dos amores raros que tive,

vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor, tudo é ritmo do celebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria, estou no ar,

na alma dos criminosos, dos amantes desesperados, no meu quarto modesto da praia de Botafogo, no pensamento dos homens que movem o mundo, nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando, sempre em transformação.

MENDES. Poemas, p. 116-117.

ii

AS RUAS

As ruas de Buenos Aires já são minhas entranhas. Não as ávidas ruas,

incômodas de turba e de agitação, mas as ruas entendiadas do bairro, quase invisíveis de tão habituais, enternecidas de penumbra e de ocaso e aquelas mais longínquas

privadas de árvores piedosas

onde austeras casainhas apenas se aventuram, abrumadas por imortais distâncias,

a perder-se na profunda visão de céu e de planura.

São para o solitário uma promessa

porque milhares de almas singulares as povoam, únicas ante Deus e no tempo

e sem dúvida preciosas. Para o Oeste o Norte e o Sul

se desfraldaram – e são também a pátria – as ruas; oxalá nos versos que traço

estejam essas bandeiras.

BORGES. Fervor de Buenos Aires, p. 15. LAS CALLES

Las calles de Buenos Aires ya son mi entraña.

No las ávidas calles,

incómodas de turba de de ajetreo, sino las calles desganadas del barrio,

casi invisibles de habituales,

enternecidas de penumbra y de ocaso y aquellas mas afuera

ajenas de árboles piedosos

donde austeras casitas apenas se eventuram abrumadas por inmortales distancias, a perderse em la honda visión de ciclo y de llanura.

Son para el solitário una promesa

porque millares de almas singulares las pueblan únicas ante Dios y el tiempo

sin duda preciosas.

Hacia el Oeste, el Norte y el Sur

Se han desplegado – y son también la pátria – las calles: ojalá em los versos que trazo

estén esas banderas.

BORGES. Obras completas v. 1 [1989], p. 15.

iii JORGE LUIS BORGES

Há muitos séculos, viajando no interior da Babilônia, entrei por engano na residência de verão do imperador. Levado à sua presença, ele cortesmente me convidou a visitar as principais salas do palácio em companhia de um funcionário. Penetrando na imensa biblioteca que reunia em centenas de volumes toda a sabedoria do Oriente deparei com um homem alto de testa larga (onde cabem todos estes volumes), olhos assimétricos, lentes escuras, e que protegido por “estandarte de silêncio” copiava atentamente certos pergaminhos. Não podia deixar de ser Jorge Luis Borges. Ao seu lado notava-se uma enorme chave de bronze: segundo meu cicerone, a chave que abria as portas do “claro labirinto” do palácio guarnecido de objetos recolhidos no universo inteiro, que correspondiam a palavras. Borges pertencia ao pequeno grupo de iniciados dispondo de acesso ao labirinto onde se representa diariamente a “pantonímia cósmica”.

Dando com minha presença, Borges, aquele de El Aleph, El Hacedor, Historia Universal de la Infamia, Antologia Personal, levantou-se, rígido, exclamando: ISTOMÊNU CIRCUNSCISFLÁUTICO! Achei a bela fórmula de saudação, embora não a compreendesse. Repliquei: BORGES! e ele: Eu não sou mais Borges; “represento” uma outra pessoa de alta antigüidade e que retorna sempre, de acordo com o movimento cíclico dos astros; por agora não quero me identificar.

Disse-lhe então meu nome, acrescentando que não dispunha de títulos para me caracterizar. Respondeu-me: Não importa. Quem conhece ao certo sua identidade? Por exemplo, há uns 24 séculos Chuang Tzu sonhou que era mariposa, não sabendo ao despertar se era um homem que sonhava ser mariposa ou uma mariposa que sonhara ser um homem.

Saímos a passear no Jardim. Ouvia-se o canto arredondado dos pássaros com humour, de muitas fontes e o remexer da folhagem; mas Borges não prestava atenção a esses ruídos porque já os “lera” em numerosos textos do Oriente e do Ocidente. Discorria sobre o Livro de Jô, sobre o Visuddhimgga, tratado budista do século V, sobre Plutarco, Heráclito, Paracelso e Swedenborg.

Também citou Newton que afirma: Cada partícula de espaço é eterna, cada indivisível momento de duração está em todas as partes.

De repente fixei a cabeça de Borges: não era mais uma cabeça comum de carne e osso, antes uma esfera coberta de letras, números, signos. Despedindo-se murmurou: Quem me dera ser apenas Jorge Luís Borges.

Borges é seu próprio texto, seu teatro giratório, seus atores e sua representação; diretor da “pantonímia cósmica”. Ele sofre por ser sujeito ao tempo circular, à criação recorrente; insiste na similitude da vida e da morte; é obsedado pela idéia do labirinto de épocas fabulosas e de hoje mesmo, pelos jogos de simetria e de espelhos, sabe que já “leu” muitas outras existências. Alguns críticos consideram-no um simples transcritor inteligente de textos, um arquiteto de artifícios, o mestre do collage literário: ignoram que esses textos incorporam-se ao domínio pessoal de Borges apesar das armadilhas da sua erudição; e que os artifícios de Borges afinal resultam mais naturais do que o natural para um homem comum.

Para Borges a realidade é um fenômeno resultante da memória; outra alternativa: a memória seria estrutura da própria realidade. A memória dos textos lidos, assimilados e transformados por Borges produz textos de Borges que morrerão com a morte do mundo, esvaziado de Borges. As linhas de todas as figuras desenhadas no tempo e no espaço encontram-se transpostas na fisionomia de Borges. As alusões e analogias indicadas nos textos de Borges resultam ao mesmo tempo vagas e precisas. Operador da metáfora e do mito, Borges acha-se “libre de la metáfora y del mito”.

Desde aquele encontro na biblioteca de Babilônia – a biblioteca é para ele a imagem concreta do Paraíso – nunca mais revi Jorge Luís Borges. Com efeito, Jorge Luís Borges é um cérebro eletrônico.

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