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3. DINÂMICAS FAMILIARES DE ORGANIZAÇÃO DO CUIDADO

3.4 Notas Finais

No texto Imigrantes, Estado e família: o cuidado do idoso e suas vicissitudes, Guita Debert (2012) evidencia que a família não é, necessariamente, um espaço ideal de convivência e de cuidados para os/as idosos/as. Para tanto, aponta uma série de pesquisas de satisfação com o cuidado familiar, de interesses dos/as idosos/as em morarem sozinhos ou compartilhando espaço com outros/as idosos/as, e de violência doméstica: “(...) esses estudos alertam para o fato de que a família não é adequada enquanto mundo social total para os/as idosos/as nem para qualquer um depois da infância” (DEBERT, 2012, p. 228). Muito bem fundamentada, a autora questiona alguns ideais que guiam o discurso e a prática da gerontologia74 e influenciam políticas de cuidado no Brasil, dentre eles o suposto abandono de idosos/as e a idealidade da família no atendimento dos/as mesmos/as.

Devo assumir que a argumentação da autora citada me agrada bastante. A configuração de cuidado na família é uma possibilidade e, como observamos nos exemplos desse capítulo, não é livre de conflitos. Essencializar o cuidado da família (de mulheres no espaço da família) como solução ideal ou única razoável é deixar de lado uma série de reflexões sobre posições de gênero, condições financeiras, protótipos ideais de família, tempos individuais, etc. Em verdade, essencializar, de qualquer maneira, é não analisar a fundo, não compreender as lógicas, não atentar para as dinâmicas e alternativas demandadas pelas pessoas.

Durante esse capítulo, tentei discorrer sobre como se estabelecem as relações de cuidado entre os membros das famílias atendidas pelo CMI, e como essas se relacionam com questões maiores: de gênero e de organização política do cuidado no Brasil. Espero ter descrito situações suficientes para complexificar a discussão sobre usos do tempo e

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Gerontologia é uma área de estudos e pesquisas sobre as diversas dimensões que envolvem o envelhecimento. Trata-se, normalmente, de um campo de estudos multidisciplinar, que tende a reunir pesquisadores/as geriatras, psicólogos/as, assistentes sociais, cientistas sociais, etc.

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sobre a organização do cuidado na família e as atribuições que são feitas à condição de gênero.

Uma observação se faz, contudo, necessária. Conheci arranjos bem diferenciados, mas não cheguei a entrar em contato com famílias homoafetivas, ou com configurações de cuidado que não fossem familiarmente centradas. E sobre esses casos, infelizmente, não posso fazer considerações. A maioria das análises está focada em arranjos familiares compostos de núcleos heterossexuais e com filhos, mesmo que de casais já divorciados.

Conheci, contudo, Lucinha. Nunca ter casado ou tido filhos era um ponto que chamava a atenção das pessoas no CMI – tratava-se de uma biografia considerada peculiar para uma mulher idosa. O cuidado dela era realizado pela prima Odila, que conheceu só depois de adulta. Lucinha sempre viveu sozinha e sentia muita falta disso, todas as vezes que íamos almoçar me perguntava onde eu morava e se morava só. A resposta para essa última pergunta era sempre positiva e Lucinha fazia questão de comentar que morar sozinha era muito bom, que ela sentia muita falta disso (seu olho brilhava, até). Mais para o final de nossos encontros, Lucinha já se lembrava que eu morava sozinha e só perguntava como estava minha casa – sempre saudosa do tempo que ainda tinha a sua quitinete75.

Como Lucinha faria se não tivesse Odila para tomar conta dela? Não poderia morar sozinha já que não tem renda suficiente para pagar cuidadoras e gerenciar todo o processo de contratação; não poderia contar com o Estado para atendê-la em sua própria casa e não teria opções muito razoáveis de Instituições de Longa Permanência que respeitassem seu desejo de autonomia e estivessem preparadas para tomar conta da sua experiência com a demência.

Talvez essa impossibilidade de alternativas seja o principal ponto em comum nas biografias das famílias, o qual nos remete a reflexões de ordem estrutural. Observei uma série de estratégias privadas adotadas pelas famílias que conheci quando são confrontadas com um caso de demência; não obstante, essas circulam entre definir responsáveis pelo cuidado, tentar não sobrecarregá-los e contratar empregadas domésticas e cuidadoras (quando há renda para isso). O atendimento no CMI é muito importante para essas famílias – auxilia na significação de suas experiências e provê algum tipo de tratamento –, mas trata-se de um contato esporádico que não substitui o cuidado direto com as pessoas.

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As estratégias são, então, limitadas ao contexto privado familiar. E, por essa razão, me coloco junto ao coro daquelas que estudam o cuidado e os usos do tempo: outras estratégias de cuidado são importantes, sejam elas mais públicas e menos familiarmente centradas. O cuidado familiar é um paradigma de atenção, não compõe um “dever-ser”, ou a natureza de como as situações deveriam se organizar idealmente. Nesse sentido, outros paradigmas de atenção podem ser pensados e desenvolvidos; nessa direção faltam políticas públicas. Se esses forem baseados em experiências reais sobre o cuidado, é possível que sejam mais adaptados às demandas reais daqueles que vivem com alguma condição de saúde e necessitam de auxílio em seus cotidianos.

Evidente que mudanças de paradigma e de divisões de gênero levam tempo e se relacionam com dinâmicas sociais e culturais particulares. Contudo, fixar a configuração familiar de cuidados brasileira por meio da argumentação de que essa seria uma consequência “cultural” – o que é bastante comum em discursos na área da saúde e gerontologia que influenciam políticas de atenção aos/às idosos/as dependentes (DEBERT, 2012) – parece, no mínimo, ignorar boa parte das dinâmicas dos cuidados dentro da família. Ademais, o recurso ao termo cultura nesse tipo de afirmação utiliza-se do mesmo enquanto um determinismo das organizações sociais, o que se afasta do entendimento de boa parte das reflexões sobre as dinâmicas culturais realizadas no âmbito da antropologia e das ciências sociais.

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No documento Doença de Alzheimer e cuidado familiar (páginas 135-138)