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O âmbito ainda restrito dos pronunciamentos judiciais

2. O PROBLEMA SOCIAL E JURÍDICO DA MORADIA DO TRABALHADOR

2.5. O âmbito ainda restrito dos pronunciamentos judiciais

Ainda não é possível verificar, na jurisprudência brasileira, um enfrentamento sistemático do problema da obrigação do empregador em face do direito à moradia do trabalhador migrante, voltado ao estabelecimento de um entendimento jurídico específico para os requisitos e limites da responsabilização patronal.

Em regra, a Justiça do Trabalho brasileira pronuncia-se sobre o tema por ocasião de ações judiciais individuais que pleiteiam o reconhecimento da natureza salarial da prestação. O debate desenvolve-se em torno da aplicação do art. 458, caput e §§ 3.º e 4.º, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, no contexto das regras de classificação de quais prestações in natura compreendem-se no conceito de salário.185

Particularmente a respeito, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou o seguinte critério de decidir, com a aprovação do inciso I da Súmula n.º 367:

UTILIDADES "IN NATURA". HABITAÇÃO. ENERGIA ELÉTRICA. VEÍCULO. CIGARRO. NÃO INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO

I - A habitação, a energia elétrica e veículo fornecidos pelo empregador ao empregado, quando indispensáveis para a realização do trabalho, não têm natureza salarial, ainda que, no caso de veículo, seja ele utilizado pelo empregado também em atividades particulares. 186

Normalmente, a tais situações de disponibilização de moradia como meio para a atividade laboral subjazem, conjugadamente ou não, duas circunstâncias fáticas: a distância

185CLT, art. 458 – “Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações "in natura" que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas. [...] §3º - A habitação e a alimentação fornecidas como salário- utilidade deverão atender aos fins a que se destinam e não poderão exceder, respectivamente, a 25% (vinte e cinco por cento) e 20% (vinte por cento) do salário-contratual. §4º - Tratando-se de habitação coletiva, o valor do salário-utilidade a ela correspondente será obtido mediante a divisão do justo valor da habitação pelo número de co-habitantes, vedada, em qualquer hipótese, a utilização da mesma unidade residencial por mais de uma família” (COSTA, Armando Casimiro; FERRARI, Irany; MARTINS, Melchíades Rodrigues (Comp.) Consolidação das Leis do Trabalho. 38. ed. São Paulo: LTr, 2011. p. 78).

186TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 367 do

TST. Brasília-DF: Tribunal Superior do Trabalho, 2012. Disponível em:

<http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_351_400.html#SUM-367>. Acesso em: 9 nov. 2012.

entre o local de trabalho e o local de origem do trabalhador ou a necessidade operacional de que o empregado permaneça, ininterruptamente, onde presta serviços, mesmo que nos períodos de descanso dentro da jornada (intervalo intrajornada) e entre uma e outra (intervalo interjornada), em que pese até mesmo não se encontrar no exercício da função.

É comum, como visto, no setor rural, a ocorrência da grande distância entre local de trabalho e de residência do trabalhador. Neste caso, a fim de ilustrar a ampla adoção do parâmetro eleito pela jurisprudência sumulada do TST para solução da pretensão salarial, pode-se citar o seguinte aresto:

SALÁRIO IN NATURA - HABITAÇÃO E ALIMENTAÇÃO

TRABALHO EM ZONA RURAL – NÃO- CONFIGURAÇÃO – Sendo

o trabalho prestado em zona rural distante da cidade para onde o reclamante era semanalmente conduzido, tem-se que tanto a habitação como a alimentação eram concedidas para permitir a prestação laboral no local. As utilidades eram indispensáveis ao trabalho, não constituindo salário nos termos da Súmula nº 367/TST. Recurso não provido, no particular.187

O mesmo raciocínio já balizou decisão acerca de atleta profissional:

SALÁRIO-UTILIDADE – ALIMENTAÇÃO E MORADIA –

NATUREZA JURÍDICA – "Jogador de futebol. Utilidades (alimentação e moradia) fornecidas pelo clube. Natureza jurídica indenizatória. As utilidades moradia e alimentação – custeadas e fornecidas pelos clubes de futebol, via de regra, não têm natureza salarial, porque não se tratam de contraprestação pelos serviços prestados, mas formas de propiciar ao atleta, transferido de outros locais, tranqüilidade quanto ao alojamento (já que este não precisa se preocupar com a manutenção de sua residência) e, ainda, uma alimentação rica e balanceada, visando ao melhor rendimento possível nos jogos e campeonatos disputados. Recurso a que se nega provimento."188

187TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 18ª REGIÃO 1ª Turma. Salário in natura - Habitação e alimentação – Trabalho em zona rural – Não-configuração. Recurso Ordinário nº 00844-2006-251-18-00-5. Recorrentes: Agropecuária Vale do Araguaia Ltda. e Deusiano Sabino da Cruz. Recorridos: Deusiano Sabino da Cruz e Agropecuária Vale do Araguaia Ltda. Relator: Juiz Marcelo Nogueira Pedra. Goiânia, 6 de junho de 2007. Diário de Justiça Eletrônico, Goiânia, GO, 19 jun. 2007, Seção Secretaria da 1ª Turma.

Disponível em:

<http://sistemas.trt18.jus.br/consultasPortal/pages/ArquivoView.pdf?idArquivo=124&nomeClasseDao=br.j us.trt18.consultasportal.dominio.dao.diarioJusticaEletronico.DiarioJusticaEletronicoDao&tipoArquivo=pdf &cid=1814>. Acesso em: 9 nov. 2012.

188TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Minas Gerais. 3ª Turma. Salário-utilidade Alimentação e moradia – Natureza jurídica. Recurso Ordinário nº 00638-2006-044-03-00-2. Recorrente: Marcio Elias Souza Santos. Recorrido: Uberlandia Esporte Clube. Relatora: Juíza Maria Cristina Diniz Caixeta. Belo Horizonte, 4 de outubro de 2006. Diário de Justiça, Belo Horizonte, MG, 12 out. 2006. Disponível em: <http://as1.trt3.jus.br/consulta/detalheProcesso1_0.htm?conversationId=3196732#>. Acesso em: 9 nov. 2012.

A função de zelador de condomínio é exemplo de atividade laboral para a qual se afigura indispensável a presença do empregado, ininterruptamente, no local de trabalho, conforme reconhecido no seguinte acórdão:

Salário habitação. Integração nas horas extras. Sendo o reclamante zelador do condomínio reclamado, a moradia fornecida serviu para o desempenho de sua atividade, revelando-se indispensável à execução do trabalho, não possuindo, conseqüentemente, natureza salarial. Aplicação da Orientação Jurisprudencial nº 134 da SDI-I do colendo TST.189

Percebe-se que as decisões judiciais em demandas deste tipo reconhecem, incidentalmente ao mérito da discussão remuneratória, haver situações em que a moradia é fornecida pelo empregador ao empregado como forma de viabilização da prestação de serviços, ou seja, para a realização das atividades laborais e não pelo desempenho da obrigação contratual nuclear do empregado (contraprestação) — única hipótese que, na visão dos tribunais, amolda-se ao comando do art. 458 da CLT.

A despeito dessa convicção reiterada, é certo que a jurisprudência não é expressa em reconhecer a existência de um dever do empregador disponibilizar moradia ao trabalhador migrante. O fato dos tribunais admitirem não ter caráter salarial a moradia fornecida para a viabilização das atividades laborais, em função da distância entre local de trabalho e local de residência do empregado, não elide a dúvida no sentido de haver obrigação jurídica do empregador por tal fornecimento.

A limitação do alcance do posicionamento jurisprudencial enfocado evidencia-se no caso dos trabalhadores migrantes sazonais que se “instalam” em outra região, pelo tempo da prestação de serviços, às suas próprias expensas. Isso porque as razões adotadas pela Justiça do Trabalho, nas ações sobre a natureza da prestação habitacional, não respondem à seguinte indagação: podem esses empregados migrantes reivindicar junto ao seu empregador a disponibilização gratuita de moradia?

189TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 2ª REGIÃO. 3ª Turma. Salário Habitação. Integração nas Horas Extras. Sendo o reclamante zelador do Condomínio reclamado, a moradia fornecida serviu para o desempenho de sua atividade, revelando-se indispensável à execução do trabalho, não possuindo, conseqüentemente, natureza salarial. Aplicação da Orientação Jurisprudencial n.º 134 da SDI-I do Colendo TST. Recurso Ordinário nº 01135200404702007 (Ac. 20080937998). Recorrente: Condomínio Edifício Porto Belo. Recorrido: Elias Oliveira Melo. Relatora: Desembargadora Mércia Tomazinho. São Paulo, 21 de outubro de 2008. Diário Oficial Eletrônico, São Paulo, SP, 4 nov. 2008, Ed. 1545, Seção Intimações e Notificações.

Disponível em:

<http://trtcons.trtsp.jus.br/dwp/consultas/acordaos/consacordaos_turmas_htm_v2.php?id=20081021_200600545 00_r.htm>. Acesso em: 9 nov. 2012.

A jurisprudência não tem dificuldade em exigir do empregador o oferecimento de moradias adequadas, nas ocasiões em que o espaço é ofertado por iniciativa patronal, embora fora dos padrões mínimos de dignidade. Todavia, conforme a abordagem fática esclarece, os empregadores que se beneficiam do processo social de migração para o trabalho têm deixado de oferecer moradia aos funcionários nesta condição, dada a disposição do migrante em custear seu pouso transitório, alavancada pela premência do sustento não garantido no local de origem.

Para estas situações, o Poder Judiciário tem reconhecido a obrigação patronal apenas e tão somente se constatado liame fático entre o empregador e a moradia ocupada pelos empregados, do que é exemplo a seguinte decisão, proferida no âmbito de uma dos tribunais mais afeitos à questão do trabalho migrante rural, que versou exatamente sobre o problema em estudo, inclusive no que tange à presença de intermediários:

Toda a narrativa recursal da empresa alicerça-se na tese de que trabalhadores migrantes de regiões longínquas do país se deslocaram para São Paulo em busca de emprego, acomodaram-se em suas moradas e então se engajaram no trabalho em prol da empresa.

A análise dos autos denota circunstâncias dispares em relação à tese patronal.

O que se viu aqui, como bem expresso na origem, foi que o feitor da empresa intermediadora de mão de obra, irregularmente contratada pela ré, foi quem intermediou a instalação dos inadequados alojamentos constatados, como indicado a fls. 94/105.

A norma regente (NR-31.23.5) e as consequências jurídicas do raciocínio imposto no julgado só não alcançaria o empregador se nenhuma participação mantivesse no local feito de alojamento dos trabalhadores. Mas aqui, houve uma participação das duas empresas envolvidas no processo de intermediação de mão de obra fraudulenta e todo o conjunto de fatos que gerem algum tipo de lesão ao trabalhador deve alcançar todas as empresas envolvidas na relação jurídica.

Assim, se a colocação dos empregados se operou por ato do feitor da empresa intermediadora de mão de obra, irregularmente contratada, resta clara a necessidade de imputação de responsabilidade a toda a cadeia de empresas que se situam no polo contrário da relação jurídica material.190

190TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO. 1ª Turma. Recurso Ordinário nº 0133200- 02.2008.5.15.0125 RO. Recorrentes: Usina Santo Antônio S.A. e Ministério Público do Trabalho. Recorridos: Ministério Público do Trabalho e Usina Santo Antônio S.A. Relator: Juiz Wilton Borba Canicoba. Campinas, 28 de fevereiro de 2012. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Campinas, SP, 8

mar. 2012. Disponível em:

<http://www.trt15.jus.br/consulta/owa/documento.rtf?pAplicacao=DOCASSDIG&pId=4539777>. Acesso em: 9 nov. 2012.

O aresto transcrito191 deixa patente que o problema da obrigação patronal de concessão da moradia ao trabalhador migrante foi examinado na perspectiva da contribuição do empregador, ainda que por via reflexa, para a configuração da situação reprovada. A análise, assim, desenvolve-se sob a ótica da responsabilização subjetiva, ou seja, demandante de prova do dolo ou da culpa, concretizados casuisticamente. Ainda não se encontra, no plano jurisprudencial, qualquer disposição de se realizar esse mesmo exame, considerando-se a responsabilidade patronal na perspectiva do processo social que permeia a relação complexa que se institui entre empregador e empregado migrante e que abrange, além do mais, o direito à moradia.

191Especialmente na passagem: “A norma regente (NR-31.23.5) e as consequências jurídicas do raciocínio imposto no julgado só não alcançaria o empregador se nenhuma participação mantivesse no local feito de alojamento dos trabalhadores.”

3.

CONTEÚDO,

FUNDAMENTALIDADE,

EFICÁCIA

E