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O Acórdão Gibraltar e o desvio à abordagem tradicional

CAPÍTULO II Os Acordos Prévios sobre Preços de Transferência

3. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia

3.5 A seletividade no caso particular das medidas de caráter fiscal

3.5.3 O Acórdão Gibraltar e o desvio à abordagem tradicional

Embora a abordagem exposta seja a tradicionalmente adotada tanto pelo TJUE nos seus acórdãos, como pela Comissão Europeia nas suas investigações e decisões, o veredito final, através do Acórdão Gibraltar, proferido pelo mesmo Tribunal, representou um ponto de viragem na aferição da seletividade de uma medida fiscal para efeitos do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE.101

O Acórdão Gibraltar teve origem num procedimento formal de investigação da Comissão Europeia102, iniciado em 11 de julho de 2001, e que incidiu sobre duas regulamentações relativas ao imposto sobre as sociedades que vigorava em Gibraltar à data dos factos e que tinham por objeto as “empresas isentas” e as “empresas elegíveis” a atuar naquele território.103

Segundo as mesmas regulamentações, empresas isentas seriam as que se encontravam instaladas em Gibraltar, enquanto empresas elegíveis seriam as efetivamente presentes neste território (“with a bricks and mortar presence”), operando em diversos setores.104

Para beneficiar do estatuto de empresa isenta era exigido o preenchimento de diversos requisitos, figurando entre eles a proibição de exercer uma atividade comercial, ou qualquer outra atividade em Gibraltar, exceto com outras empresas isentas ou

100 Paint Graphos (C-78/08 a C-80/08), para. 49. 101

Comissão Europeia v Government of Gibraltar (C-106/09 P e C-107/09 P). Para uma outra perspectiva do presente Acórdão, cfr., PÉREZ BERNABEU, Begoña, La aplicación de la política de

ayudas de Estado a Gibraltar, I Jornada sobre Gibraltar, Repositorio Institucional de la Universidad de

Alicante, 2013.

102 Nos termos do artigo 108.º, n.º 2, do TFUE. 103

Convite da Comissão Europeia ao Reino Unido para apresentação de observações, nos termos do n.° 2 do artigo 88.° do TFUE CE sobre o Auxílio C 52/2001 (ex NN 51/2000), relativo às empresas elegíveis em Gibraltar, 30 de janeiro de 2002, JO C 26.

elegíveis. Os requisitos para beneficiar do estatuto de empresa elegível eram, no essencial, idênticos aos do estatuto de empresa isenta.

Em termos de tributação uma empresa isenta encontrava-se, regra geral, isenta do imposto sobre o rendimento em Gibraltar, sendo apenas obrigada ao pagamento de um montante fixo anual (de 225 GBP), enquanto uma empresa elegível estava sujeita a imposto sobre o rendimento a uma taxa negociada com as autoridades fiscais e variável entre 2% a 10% dos respetivos lucros.

O Tribunal Geral, através de um Acórdão de 30 de Abril de 2002, acabou por anular a decisão da Comissão Europeia de dar início ao procedimento formal de investigação em relação às empresas isentas. Na opinião do Tribunal Geral, embora a Comissão tenha qualificado o regime aplicável a estas sociedades como um auxílio novo no seu conjunto, logo sujeito ao dever de notificação, as alterações efetuadas ao longo do tempo ao regime em causa não alteraram o seu caráter de auxílio existente. No entanto, no mesmo Acórdão, o Tribunal julgou improcedente o pedido de anulação da decisão de dar início ao procedimento em relação às empresas elegíveis.105

Em 27 de abril de 2002, ainda sem ter conhecimento desta decisão final do Tribunal Geral, o Governo de Gibraltar revogou toda a sua legislação vigente em matéria de fiscalidade sobre as empresas com a intenção de proceder a uma reforma tendo em vista a introdução de um novo regime fiscal, cujo projeto foi devidamente notificado à Comissão Europeia.106

A reforma fiscal em causa compreendia uma supressão quase total da tributação dos lucros e a introdução de um novo regime fiscal, aplicável a todas as empresas estabelecidas em Gibraltar, e que instituía um imposto sobre salários (“payroll tax”), um imposto sobre a ocupação de instalações para fins comerciais (“business property

occupation tax”) e uma taxa de registo (“registration fee”). Adicionalmente, a proposta

equacionava também um imposto adicional ou de penalidade (“top-up tax”) aplicável

105 Tribunal Geral, Acórdão de 30 de abril de 2002, Government of Gibraltar v Comissão, T-195/01 e T-

207/01, ECLI:EU:T:2002:111.

apenas às sociedades de serviços financeiros e às empresas de serviços de utilidade pública, compreendendo estas últimas as empresas que operam nos sectores das telecomunicações, da eletricidade e da água.

Sendo notificada da reforma proposta, a Comissão Europeia decidiu, uma vez mais, dar início a um procedimento formal de investigação107

, tendo adotado, em 30 de março de 2004, uma decisão em que considerou que a reforma em causa constituía um auxílio de Estado incompatível com o TFUE.108 A Comissão considerou que o regime era materialmente seletivo com os seguintes argumentos109:

a) O regime previa que as empresas que não auferissem lucros não seriam tributadas, o que favoreceria as empresas não lucrativas, em contraposição às empresas lucrativas;

b) O regime em causa não era baseado na tributação dos lucros, mas sim o número de trabalhadores ou a ocupação de instalações comerciais, a isenção de empresas não rentáveis não poderia ser considerada justificada pela natureza ou pela economia geral do regime em causa;

c) A existência de um limite máximo (de 15%) dos lucros para a obrigação fiscal a título de imposto sobre os salários e do imposto sobre a ocupação de instalações comerciais libertaria certas empresas de um encargo que normalmente suportariam, consistindo assim na atribuição de uma vantagem seletiva às mesmas.

A Comissão considera que um regime que exclui a tributação dos lucros pode, por si só e sob determinadas circunstâncias, ser considerado seletivo como um todo, o que se verificaria no caso concreto do sistema proposto por Gibraltar, uma vez que a

107 Nos termos do artigo 108.º, n.º 2, do TFUE. Vd. Convite da Comissão Europeia ao Reino Unido para

apresentação de observações, nos termos do n.° 2 do artigo 88.° do TFUE CE sobre o Auxílio C 66/2002 (ex N 534/2002), relativo às empresas elegíveis em Gibraltar, 4 de dezembro de 2002, JO C 300, p. 2.

108

Referimo-nos à Decisão 2005/261/CE, 30 de março de 2004, sobre o regime de auxílio que o Reino Unido pretendia aplicar relativamente à reforma do imposto sobre as sociedades do Governo de Gibraltar, JO L 85, pp. 1-26.

economia gibraltina conta com um amplo setor offshore, integrado por empresas sem qualquer presença física no território, que consequentemente escapariam a qualquer tipo de tributação num sistema de imposto sobre os salários e sobre a ocupação de instalações comerciais.110 Como tal, ainda que formalmente um sistema desta natureza pudesse ser aplicado sem discriminação a todas as empresas, acabaria por beneficiar “de

facto” as empresas que não possuíssem trabalhadores nem instalações naquele território.

Por seu lado, o Reino Unido e o Governo de Gibraltar impugnaram a decisão da Comissão Europeia com base em vários argumentos.

Em primeiro lugar, no que se refere à condição de realização de lucros, consideravam que além desse critério não constituir uma exceção ou derrogação ao sistema comum de tributação, a Comissão Europeia não foi capaz de identificar os beneficiários concretos da suposta derrogação.

Em segundo lugar, defendiam que o limite máximo dos lucros era de aplicação geral, sendo considerado um fator de regressividade do sistema introduzido, que correspondia a uma necessidade de evitar uma tributação excessiva das sociedades, que poderia potencialmente levar a despedimentos e instabilidade nos períodos cíclicos de flutuações de mercado ou depressão.

Por último, quanto à seletividade material do próprio sistema proposto pela reforma, as partes consideraram que a Comissão Europeia se imiscuiu nas prerrogativas dos Estados-Membros, relativas à conceção das políticas fiscais. Adicionalmente, tanto o Reino Unido como o Governo de Gibraltar defendiam que todas as medidas propostas eram justificadas pela natureza ou economia geral do sistema fiscal proposto.111

Por sua vez, o Tribunal Geral considerou que a Comissão Europeia não conduziu o exame prévio de determinação do sistema fiscal de referência aplicável em Gibraltar, passo indispensável, tendo “saltado” diretamente para a terceira fase do teste de aferição da seletividade, considerando quase que automaticamente as medidas como derrogações

110 Ibid., para. 143.

a um regime comum que não identificou corretamente, levantando antes questões e hipóteses vagas e de ordem geral, não tendo logrado pôr em causa o fundamento da qualificação feita pelas autoridades de Gibraltar do regime comum ou “normal” do sistema fiscal notificado e dos seus elementos constitutivos.

A parte relevante a extrair da decisão do Tribunal Geral neste caso é da impossibilidade de omissão da primeira e segunda etapas do teste da seletividade, sob pena de a Comissão se substituir ao Estado-Membro no que diz respeito à determinação do seu sistema fiscal, uma vez que, “no estado atual do desenvolvimento do direito da União, a fiscalidade direta é da competência dos Estados-Membros”.112 Deste modo, na visão do Tribunal, apenas os Estados-Membros teriam o poder de conceber sistemas de imposto sobre as sociedades, pelo que o mesmo anulou a decisão da Comissão Europeia.

A Comissão Europeia interpôs recurso da decisão do Tribunal Geral perante o TJUE, tendo este recurso dado origem à anulação do Acórdão do Tribunal Geral gerando um grande número de opiniões dissonantes e receosas relativamente à postura do Tribunal.

O Acórdão em causa começa por referir que as condições de realização de lucros para que existisse tributação, bem como o estabelecimento de um limite máximo de tributação até 15% dos lucros, não constituíam medidas seletivas, na medida em que consubstanciavam medidas gerais, aplicáveis indistintamente a todos os operadores económicos não sendo, por conseguinte, suscetíveis de conferir vantagens de caráter seletivo.

Por outro lado, no que se refere às vantagens que a reforma proposta concede às sociedades offshore, o TJUE considera que o raciocínio do Tribunal Geral padece de erro de direito, na medida em que conforme a jurisprudência assente, o artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, não contém qualquer distinção em função das causas ou objetivos das

intervenções estatais, antes definindo essas mesmas intervenções em função dos respetivos efeitos e, como tal, independentemente das técnicas usadas.113

O TJUE considerou que o Tribunal Geral, na sua apreciação, apenas teve em conta a técnica regulamentar utilizada pelo Governo de Gibraltar na sua reforma fiscal, e que uma abordagem desta natureza não será a mais correta, uma vez que teria como consequência permitir que normas fiscais nacionais deixassem de estar sujeitas ao controlo em matéria de auxílios de Estado, pelo simples facto de resultar de outra técnica regulamentar, apesar de provocar, em termos de direito/facto, as mesmas consequências práticas.

O TJUE considera que tal possibilidade seria especialmente danosa num caso como o como o que se encontrava em análise, em que um regime em vez de prever normas gerais aplicáveis a todas as empresas localizadas num determinado território, com exceções a favor de certas empresas, “chega a um resultado idêntico ajustando e combinando as normas fiscais de modo a que a própria aplicação destas implica uma carga fiscal diferenciada para as diferentes empresas.114

O TJUE determinou que a diferenciação descrita não representava uma consequência aleatória do regime em causa, resultando antes do próprio “desenho” do sistema fiscal em causa que, ao tributar o número de trabalhadores e as instalações das empresas, exclui, a priori, da incidência de imposto as empresas offshore. Ademais, o Tribunal aproveitou a oportunidade para rebater o argumento alegado pelo Governo de Gibraltar de que a Comissão havia desenvolvido um novo princípio da seletividade material, violando a sua prática decisória anterior, determinando que, segundo a jurisprudência, o caráter de auxílio de Estado de uma determinada medida só deve apreciado no âmbito das normas relevantes do TFUE e não à luz de uma pretensa prática decisória anterior da Comissão.115

113 British Aggregates v Comissão (C-487/06 P), para. 85.

114 Comissão Europeia v Government of Gibraltar (C-106/09 P e C-107/09 P), para. 87 a 93. 115 Ibid., para. 136.

Todos os motivos já expostos levaram a que o TJUE considerasse que existia na reforma fiscal proposta uma discriminação entre as sociedades que se encontram numa situação comparável à luz do objetivo prosseguido pela mesma, que a tornava incompatível com o direito europeu.

A conclusão que se pode retirar do Caso Gibraltar é a de que o próprio sistema fiscal pode ser seletivo, quando apesar de ser aplicável teoricamente a todas as empresas, na prática, acaba por reduzir a carga fiscal de certas empresas em relação a outras que se encontrem em situação comparável, atribuindo deste modo às primeiras uma vantagem seletiva. Contudo, a decisão em questão levanta vários problemas conceituais. Como identificar a existência de vantagem (o que até este ponto era feito através da identificação de uma derrogação ao sistema “normal”), quando o próprio sistema considerado normal é seletivo?

A postura adotada pelo TJUE pode significar que a seletividade material de uma medida pode resultar não só do facto de esta consistir numa derrogação do regime fiscal normal aplicável num determinado Estado-Membro, mas também do facto de consistir numa derrogação de um padrão mínimo aceitável de tributação estabelecido pela Comissão Europeia com base em normas internacionais ou europeias, que de momento ainda não se encontram claramente identificadas.116