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2.2. A dicção como abordagem

2.2.1 O alfabeto fonético aplicado ao canto

A compreensão geral sobre as dificuldades relacionadas às aplicações do IPA, sobretudo na prática do canto, tem uma série de desdobramentos mais especí- ficos e que vem sendo tratados com grande propriedade pela moderna pedagogia.

Entre os autores que tem se dedicado a esta questão, destacamos Richard MILLER (1986, 1996) e Leslie De’ATH (2013).

Em The structure of singing (MILLER, 1986), obra de referência para a mo- derna pedagogia do canto, observa-se que o autor faz um uso consistente dos re- cursos do IPA, entretanto, sem qualquer discussão sobre este uso. Dez anos mais tarde, On the art of singing (MILLER, 1996) apresenta um subcapítulo cujo título

Thinking phonetically (values and pitfalls of the IPA), poderia dispensar maiores ex-

plicações. Entretanto, é importante relacionar e comentar os seus tópicos principais.

[...] o principal valor para o cantor em relação a pensar foneticamente não está no aperfeiçoamento dos sons da linguagem [verbal] mas no reconhe- cimento de que as posições constantemente mutáveis do trato vocal para a definição das vogais, representadas pelos símbolos do IPA, contribuem di- retamente com o timbre da voz e participa na produção do que os cantores chamam de voz “ressonantes”49. (MILLER, 1996, p. 53-54, tradução nossa) Com as observações acima, Miller revela ao mesmo tempo duas ideias que são muito importantes em relação à abordagem articulatória do canto: o fato de que os objetivos dos estudos relacionados à dicção vão além do desenvolvimento das competências de pronúncia linguística; e o fato de que o IPA, ao oferecer ao cantor um conjunto de orientações precisas quanto aos aspectos acústicos/articulatórios e auditivos dos sons vocais, contribui para que o cantor tenha melhor compreensão sobre os processos funcionais do parâmetro articulatório em relação aos demais pa- râmetros vocais.

Nesse sentido propriamente vocal do uso do IPA, o autor observa que as in- formações sobre os processos articulatórios contribuem para equilibrar o foco de atenção entre os âmbitos da laringe e do trato vocal (uma vez que há uma tendência

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[...] the chief value for the singer in thinking phonetically is not in the improvement of language sounds but in the recognition that the constantly changing postures of the vocal tract for vowel defini- tion, represented by the IPA symbols, contribute directly to the timbre of the voice and participate in producing what singers term a “resonant” voice.

do cantor, sobretudo iniciante, de concentrar esforços no âmbito da fonte glótica); e complementa observando que os fundamentos sobre a articulação, com base nos recursos do IPA, podem efetivamente referenciar diversos processos que frequen- temente tem como base referências subjetivas.

Finalmente com relação aos ‘abismos’ referidos no título do capítulo, seriam dois: o primeiro, com relação à voz, diz respeito aos problemas que o excesso de dados sobre o funcionamento da voz podem trazer à pratica do canto se o cantor orientar demasiadamente a sua atenção para estes dados, durante o ato da perfor- mance; o outro, mais relacionado a questões destacadas pelos próprios princípios do IPA, diz respeito ao fato de que na comparação entre as diversas línguas, a atri- buição de um símbolo para representar um som de uma determinada língua não cor- responde exatamente ao resultado deste mesmo símbolo atribuído a um som de uma outra língua, uma vez que há nuances acústicas/articulatórias que evidenciam na dinâmica das articulações em cada contexto (por exemplo: o som da vogal nasal [õ] no português não corresponde exatamente ao som de [õ] no francês50.

Com relação aos trabalhos de Leslie De’Ath, sobretudo o conjunto de artigos publicados na coluna Language and Diction do Journal of Singing, é importante ob- servar que eles representam uma das principais fontes de referência na atualidade com relação às discussões sobre a dicção lírica que tem como base os estudos da fonologia. Entre estes artigos, destacamos aqui o mais recente e que trata com mai- or especificidade de algumas questões relevantes em relação ao uso da transcrição fonética e dos recursos do IPA. Neste artigo intitulado Phonetic transcription – what it

doesn’t tell us, o autor faz um estudo detalhado sobre as variações da caracteriza-

ção e representação do fonema /r/ e seus alofones51 em inglês (britânico e america- no), francês, alemão e italiano. Para isso toma como base as publicações mais re- centes e reconhecidas que se utilizam dos recursos do IPA como referencia para o estudo da pronúncia destas línguas aplicadas ao canto. Conforme o autor observa, embora o estudo tenha sido focado em um único fonema, seus resultados (conforme o objetivo do estudo) podem ser considerados de maneira genérica.

Uma vez que o objetivo não era o de ressaltar os pontos positivos do uso do IPA neste tipo de aplicação, De’Ath trata diretamente das questões que considera

50 Richard Miller confirma a ideia recorrente no presente trabalho de que o uso do IPA como recurso para a representação fonética aplicada ao canto é, sobretudo, uma prática interpretativa.

51 Os alofones correspondem às diferentesrealizações acústicas/articulatórias de um mesmo fonema, em determinadas condições, como veremos logo adiante.

importantes serem esclarecidas quanto à eficácia deste recurso. Com base em uma concepção fonológica da representação fonética, o autor chama a atenção para o fato de que as transcrições fonéticas não deveriam ser tomadas pelo cantor pela simples compreensão das relações estritas entre um determinado som da língua e um determinado símbolo do alfabeto52. São três os aspectos destacados por De’Ath em relação ao esclarecimento dos aspectos que o IPA, conforme a abordagem, não é capaz de revelar. Um deles é resultado da noção já discutida no presente trabalho, de que o contínuo sonoro não é completamente divisível em segmentos tais como os fonemas uma vez que estes segmentos correspondem à expressão de um con- junto de traços distintivos. Isso nos leva aos outros dois aspectos destacados pelo autor, a saber:

• a ocorrência de alofones, ou seja, variações acústicas/articulatórias de um mesmo fonema por razões (1) contextuais, como é o caso do fonema /l/ que pode ser pro- nunciado como [l] no início da palavra <leite> ou como [ʊ], no final da palavra <mel>; por razões (2) dialetais tais como a pronúncia de /t/ na palavra <tia>, que pode ser realizada como [tʃ] [t]; por razões (3) idioletais ou relacionadas ao caráter pessoal do falante.

• a ocorrência de coarticulações, ou seja, de influências que um determinado seg- mento pode sofrer ou causar, contextualmente, em relação ao segmento anterior ou seguinte do contínuo (por exemplo, o traço de labialização do fonema [u] na articula- ção da palavra <luva> faz com que o fonema [l] seja também labializado, sendo que na palavra <leve>, em função da letra [e], já não acontece esta labialização, que é traço de [u]).

As considerações de ambos os autores acima sobre a representação dos processos articulatórios da voz cantada e, sobretudo, o apontamento dos problemas que podem estar relacionados aos diversos contextos deste tipo de representação, sumarizam algumas das ideias que nos motivaram a realizar o presente trabalho e a proposta de estabelecimento de uma abordagem articulatória como recurso para a prática do canto.

52 Trata-se mais uma vez, agora pelas considerações de Leslie De’Ath, da questão das demandas interpretativas que estão implicadas no uso do IPA como recurso para a dicção aplicada ao canto.

Seguiremos adiante com a apresentação desta proposta e seus fundamen- tos teóricos.