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O antropocentrismo da ética clássica e o humanismo do outro homem

Desde 1970, os eticistas, provocados pela grave crise ecológica em que a civilização ocidental se achou mergulhada, passaram a buscar uma nova ética capaz de regrar nossas relações com a natureza, com a terra, os animais e as plantas, uma vez que tal preocupação esteve ausente nas éticas clássicas de teor predominantemente antropocêntrico. O modelo ético clássico só pensou o limite do agir humano a partir da proibição de não prejudicar outro ser humano. Os seres não humanos

113 que o socialismo burocrático estatal não tenha sido menos danoso ao meio ambiente. Fez-se imperativo então reordenar as premissas filosó- ficas do agir humano em sua relação com o meio ambiente, elaborando uma nova ética e uma nova educação ambientais capazes de responder aos novos desafios ambientais.

No nível da filosofia, as causas que permitiram a degradação ambiental se acham sobretudo na tradição antropocêntrica que con- cebeu o homem como valor superior a todos os demais seres vivos. Tal tradição encontra suas raízes no próprio texto bíblico, nas pági- nas do Gênesis, cuja interpretação resultou na concepção do homem como dominador ou proprietário de toda a natureza. Foi, no entanto, com Descartes que a ética antropocêntrica se estabeleceu de modo definitivo. Tendo seus primeiros indícios no Renascimento, a filosofia humanista encontra em Descartes seu ponto mais alto com a afirmação do paradigma mecanicista e o abandono da concepção organísmica, baseada em Aristóteles. O finalismo aristotélico que concebia a natu- reza como algo vivo e animado, tendendo os seres vivos aos seus fins naturais, foi sendo substituído pela ideia de uma natureza mecânica e sem vida. A ideia de organismo foi substituída pela ideia do relógio. A ciência abandona então a preocupação central com a noção de vida que deixa de ser vista como processualidade a partir do predomínio do paradigma mecanicista. Descartes não estava sozinho nessa tarefa, mas encontrou a companhia de nomes da ciência moderna como os de Galileu, Francis Bacon e Isaac Newton cujo método empírico foi igualmente cruel com a natureza.

Com Descartes e seu mecanicismo, a natureza se torna um objeto da razão que pode dividi-la infinitamente ao passo que o espí- rito permanece indivisível. Enquanto a razão humana ganha autono- mia, a natureza perde a sua. Para dominar a natureza, o homem então se situa fora dela, objetificando-a. Ocorre então uma ruptura total entre sujeito (o cogito) e a natureza, como mundo, se torna seu objeto (dualismo cartesiano). A consequência dessa concepção é um distan- ciamento cada vez maior entre natureza e ser humano, voltando-se este último para o domínio, a posse e a submissão da segunda ao seu poder. Está então consolidado o fundamento epistemológico para uma ética antropocêntrica.

Levinas, por sua vez, também critica o humanismo clássico, acusando de “tragicômico o cuidado de si e as ilusórias pretensões do animal racional de se dar um lugar privilegiado no cosmos” além de situar sua crítica num novo patamar: “a capacidade de dominar e de integrar a totalidade do ser numa consciência de si” (Levinas, 1972, p. 74). Para Levinas, “o mundo fundado sobre o cogito parece humano, tão humano – a ponto de fazer procurar a verdade no ser, numa obje- tividade de qualquer maneira superlativa, pura de toda ‘ideologia’, sem traços humanos” (Levinas, 1972, p. 74). O filósofo franco-lituano aqui alude ao deslocamento do sujeito humano de seu centro no ente para o Ser e a verdade do ser, deslocamento observado por Heidegger desde Platão até Descartes. O humanismo que Heidegger vê nascer em Platão se funda sobre a determinação da essência do homem definido como animal racional e atinge seu ponto culminante em Descartes, que entende a verdade como a exatidão da representação, cujo fundamento se encontra na presença a si e na consciência de si do sujeito humano que assim reúne as representações e assegura sua exatidão. Heidegger então procura deslocar, em seu humanismo metafísico, o homem do centro do ente para a existência onde o homem se acha exposto aos outros entes. No entanto, Heidegger não teria deixado de conferir ao homem uma posição central. O filósofo alemão, na Carta sobre o huma-

nismo designa a existência como um modo próprio e exclusivo do ser humano, situando na ‘existência’ o diferencial humano.3

Levinas, procurando também uma via para fora do humanismo clássico, se distancia da opção heideggeriana e propõe o humanismo do outro homem. Levinas concebe no interior do homem uma aber- tura à alteridade, na contramão de qualquer presença a si. Ele concebe

115 uma subjetividade incapaz de se fechar em si mesma e essa abertura se entende em vários sentidos: em primeiro lugar, ela significa “a abertura de todo objeto a todos os outros, na unidade do Universo”, ou seja, há uma interação ou uma comunidade de substâncias que se comunicam, no universo. Em segundo lugar, essa abertura pode significar também a intencionalidade da consciência ou a abertura da existência, mas lhe interessa um terceiro sentido dessa abertura que não é “a essência do ser que se abre para se mostrar, não é a consciência que se abre à presença da essência aberta e confiada a ela”, mas a abertura de uma “desnudação da pele exposta à abertura e ao ultraje”, “a vulnerabilidade de uma pele oferecida, no ultraje e na ferida, além de tudo que pode se mostrar, além de tudo aquilo que, da essência do ser, pode se expor à compreensão e à celebração” (Levinas, 1972, p. 104). Trata-se de uma abertura que se dá na passividade da sensibilidade que é a vulnerabilidade mesma. “A vul- nerabilidade, é a obsessão pelo outro ou aproximação de outrem”. Logo se vê que a via escolhida por Levinas é a de opor ao sujeito autárquico dos modernos, que, aliás, despreza a sensibilidade, um sujeito passivo, exposto à alteridade. Os modernos teriam deixado escapar os traços dessa responsabilidade pelo outro, no sujeito humano. Levinas entende assim a especificidade da existência humana ou o seu diferencial em rela- ção ao animal como sendo a responsabilidade ética pelo outro.