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CAPÍTULO IV As Investigações e Decisões da Comissão Europeia

3. O Caso Starbucks

O Caso Starbucks diz respeito a um APPT estabelecido em 2008, entre a administração fiscal neerlandesa e uma filial do grupo Starbucks constituída nos Países Baixos, a Starbucks Manufacturing EMEA BV (“SMBV”), com caráter vinculativo durante 10 anos.186

185 A título de curiosidade, em 5 de dezembro de 2017, a Comissão Europeia intentou no TJUE um

recurso, que resultou no Acórdão de 8 de novembro, Comissão v Irlanda, C-678/17, ECLI:EU:C:2018:927, uma vez que a Irlanda não havia recuperado o auxílio estatal no prazo de quatro meses a contar da data da notificação da decisão da Comissão, conforme estabelecido na Decisão da Comissão. Este recurso acabou por ser arquivado em 8 de novembro de 2018, perante o cumprimento do Estado-Membro, na pendência do recurso e a pedida da própria Comissão. Adicionalmente, em 15 de dezembro de 2017, o Tribunal Geral decidiu negativamente quanto à aceitação dos EUA enquanto interveniente no processo, com o fundamento de que aquele Estado teria falhado a tarefa de demonstrar interesse direto no resultado do litígio. Esta decisão consta da Ordem do Tribunal Geral, 15 de dezembro de 2017, no âmbito do Caso T-892/16, Apple Sales International and Apple Operations Europe v

Comissão, ECLI:EU:T:2017:925). 186

Que resultou da decisão relativa ao auxílio estatal concedido à Starbucks (2015), supra n. 6, que deu origem a dois recursos pendentes perante o Tribunal Geral, designadamente, Recurso T-760/15, Países

Baixos vs Comissão, interposto em 23 de dezembro de 2015, e Recurso T-636/16, Starbucks e Starbucks Manufacturing Emea vs Comissão, interposto em 5 de setembro de 2016.

O grupo Starbucks é composto pela Starbucks Corporation, com sede em Seattle, e por todas as outras empresas controladas por essa mesma sociedade. No entanto, a SMBV é a única entidade fora dos EUA totalmente controlada pelo grupo Starbucks.

Figura 2

Estrutura da Starbucks com base na descrição que consta do relatório sobre preços de transferência

* Informação retirada da decisão (UE) 2017/502 da Comissão, de 21 de outubro de 2015, relativa ao auxílio estatal SA.38374.

De acordo com o relatório de preços de transferência que se encontra na base do APPT estabelecido, a SMBV desenvolve a atividade de processamento de grãos de café verde que adquire a uma outra entidade do grupo sedeada na Suíça, a Starbucks Coffee

Trading SARL (“SCTS”), vendendo posteriormente esses grãos a empresas filiadas e

não filiadas. Ademais, a SMBV é também responsável pela distribuição intermediária de vários produtos diferentes (guardanapos, copos, etc.), dando apoio em matéria de abastecimento a várias entidades.

Em 28 de abril de 2008, a SMBV estabeleceu com as autoridades neerlandesas um APPT que determinava que, durante 10 anos, a sua base tributável corresponderia a uma margem de lucro de 9 a 12% da base dos custos relevantes. Para estes efeitos eram

incluídos nos custos relevantes todos os custos com pessoal, incorridos tanto no fabrico como nas atividades da cadeia de abastecimento, as depreciações do equipamento de produção, bem como as despesas gerais de instalações. Eram no entanto excluídos dessa base de custos as despesas com os grãos de café (matéria-prima), de logística e de distribuição dos serviços prestados por terceiros, a remuneração das atividades fornecidas por terceiros no âmbito dos chamados “contratos de fabrico por consignação”, bem como os pagamentos de royalties à Alki LP.

Os royalties pagos à Alki LP diriam respeito ao licenciamento de um conjunto de propriedade intelectual necessário para a realização do processo de torrefação do café (relativos à temperatura e tempo necessários, por exemplo) e ao direito de fornecer café da SMBV. Relativamente à propriedade intelectual o direito cedido pela Alki LP incluía (i) Direitos de marca; (ii) Direitos do Sistema Starbucks; e (iii) Direitos relacionados com o café. Ademais, ao abrigo de um Acordo de Torrefação a Alki LP atuava como responsável principal, assumindo todos os riscos da empresa e executando as atividades conexas.

De acordo com o relatório sobre preços de transferência disponibilizado à Comissão foi escolhido pelo consultor fiscal da SMBV o já referido método da margem líquida da operação (“MLMLT”) para calcular uma remuneração das atividades de torrefação em condições de plena concorrência, uma vez que aquele considerou que no conjunto específico das circunstâncias da Starbucks, a margem líquida era a menos afetada por diferenças de operação e diferenças funcionais. Na aplicação deste método, a base relevante do lucro líquido eram os custos dos serviços prestados pela SMBV, em conformidade com o método do custo majorado, o considerado adequado para serviços da cadeia de abastecimento e de fabrico. No entanto, a margem de lucro apenas era aplicada aos custos a que a SMBV considerava acrescentar valor (custos com pessoal e depreciação).

A seguir à escolha do método foram identificadas as empresas comparáveis, através das quais foi obtida uma mediana da margem de lucro não ajustada de 7,8% sobre os custos totais, sendo depois efetuados dois ajustamentos que combinados

acabaram por reduzir a remuneração estimada para uma mediana estimada de 9,9% dos custos de exploração, resultando num margem de lucro situada entre os 9% e os 12% dos custos de exploração.

3.1 A Decisão da Comissão Europeia

Também na decisão relativa ao APPT concedido à SMBV a Comissão procedeu à análise de todos os requisitos do artigo 107.º, do TFUE.

Em primeiro lugar, quanto à concessão de uma vantagem pelo Estado ou através de recursos estatais, a Comissão Europeia chega mais uma vez à conclusão que o APPT em questão ao ter sido aceite pela administração fiscal neerlandesa, é imputável ao Estado-Membro.

Quanto a ser financiada através de recursos do Estado-Membro, a Comissão mais uma vez relembra a jurisprudência do Tribunal que determina que uma medida através da qual as autoridades públicas atribuem a certas empresas uma isenção que, embora não implique uma transferência de recursos de Estado, coloca os seus beneficiários numa situação financeira mais favorável do que a dos outros contribuintes constitui um auxílio estatal.187

Também no que diz respeito à capacidade do APPT em causa de afetar as trocas comerciais entre os Estados-Membros, a Comissão Europeia considera que uma vez que o grupo Starbucks opera em todos os Estados-Membros, qualquer auxílio a seu favor é suscetível de afetar as trocas intra-União.188

No que se refere à capacidade do APPT em falsear a concorrência, a Comissão considera que, na medida em que este liberta a SMBV de uma obrigação fiscal que em princípio teria de suportar, ao abrigo do regime geral do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas neerlandês, falseia ou ameaça falsear a concorrência ao reforçar a posição financeira da SMBV no mercado.

187 Comissão Europeia, decisão relativa ao auxílio estatal concedido à Starbucks (2015), para. 226. 188 Ibid., para. 227.

No que toca à seletividade, a Comissão leva a cabo o já referido teste de três passos. Em primeiro lugar, considera que o sistema de referência é o regime geral neerlandês do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, que tem por objetivo a tributação do lucro de todas as empresas sujeitas a imposto nos Países Baixos.

Embora a legislação fiscal neerlandesa contenha uma diferenciação entre empresas integradas (pertencentes a um grupo empresarial) e empresas não integradas (empresas autónomas nacionais), a Comissão considera que ambos os tipos de empresas devem ser considerados como estando numa situação factual e jurídica semelhante, tendo em conta o objetivo intrínseco do sistema. Neste sentido, a Comissão considera que “em geral […] todas as empresas que têm um rendimento se encontram numa situação jurídica e factual semelhante na perspetiva da tributação direta das empresas”.189

Quanto a este ponto, tanto a Starbucks como os Países Baixos afirmam que as empresas controladas e as empresas não controladas não pertencem ao mesmo sistema de referência, invocando, tal como a Apple, a já referida decisão da Comissão quanto ao hipotético auxílio “groepsrentbox”190.

Por sua vez, a Comissão defende a sua decisão, clarificando que no caso em questão o objetivo do regime era o de reduzir as diferenças no tratamento fiscal entre a concessão de capital próprio e de capital de empréstimo no contexto de um grupo e, por isso, nesse caso específico, o sistema de referência seria apenas constituído por empresas integradas em grupos. Já no caso do APPT concedido à SMBV, o seu objetivo era a determinação da matéria coletável para o subsequente cálculo da sujeição ao imposto anual sobre o rendimento das pessoas coletivas, sendo que este exercício é aplicável tanto às empresas integradas num grupo, como às empresas autónomas.

A Comissão acrescenta ainda que a atividade desenvolvida pela SMBV, de torrefação e distribuição de café, é subcontratada a terceiros por algumas entidades do

189 Ibid., para. 236.

190 Comissão Europeia, decisão relativa ao regime groepsrentebox que os Países Baixos pretendiam

grupo, ou seja, as atividades da SMBV podem ser realizadas por empresas independentes e não apenas num contexto intragrupo.

A Comissão vai mais longe ao considerar que se aceitasse o argumento dos Países Baixos e da Starbucks de que o “Decreto sobre preços de transferência de 2001” estabelece regras especiais para empresas integradas, a própria existência dessas regras e, consequentemente, de um regime especial para estas empresas seria, por si só, de natureza seletiva.191

A decisão da Comissão contém a demonstração de que o APPT em causa constitui uma derrogação ao sistema de referência identificado, no seu entender, o regime geral neerlandês do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. Neste ponto a Comissão afirma, mais uma vez, que no caso das medidas fiscais, a derrogação ao sistema de referência coincide, regra geral, com a identificação da vantagem concedida ao beneficiário no âmbito dessa medida.

A vantagem atribuída através do APPT concedido à SMBV pelos Países Baixos resultaria assim de um desvio na aplicação do princípio da plena concorrência inadmissível no ordenamento jurídico europeu uma vez que, segundo a Comissão, no já referido Caso Bélgica e Forum 187192 o TJUE subscreveu o princípio da plena concorrência como indicador para aferir se uma empresa inserida num grupo recebe uma vantagem na aceção do artigo 107.º, 1, do TFUE, em consequência de uma medida fiscal (como um APPT) que determina os seus preços de transferência e, consequentemente, a sua matéria coletável.

A Comissão volta neste ponto da análise a referir a sua convicção de que o princípio da plena concorrência faz necessariamente parte da avaliação da seletividade de uma medida fiscal, “independentemente da questão de saber se um Estado-Membro integrou esse princípio no seu sistema jurídico nacional”, acrescentando o esclarecimento, controverso, de que o princípio da plena concorrência que aplica nas suas apreciações não é o contido no artigo 9.º, do Modelo de Convenção Fiscal da

191 Comissão Europeia, decisão relativa ao auxílio estatal concedido à Starbucks (2015), para. 250. 192 Bélgica e Forum 187 v Comissão (C-182/03 e C-217/03).

OCDE, que é um instrumento não vinculativo, mas sim um princípio geral de igualdade de tratamento em matéria de tributação que decorre do artigo 107.º, do TFUE, e que vincula os Estados-Membros.

A Comissão assume que não se trata de conferir se o APPT cumpre o princípio da plena concorrência nacional, previsto tanto no artigo 8.º, do Código do IRC neerlandês, como no “Decreto sobre preços de transferência de 2001”, mas sim examinar se a administração fiscal neerlandesa conferiu uma vantagem seletiva à SMBV ao celebrar um APPT que confirma uma “afetação de lucros que se afasta do montante do lucro que teria sido tributado ao abrigo do regime geral neerlandês de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas se as mesmas operações tivessem sido realizadas por empresas independentes a negociar em circunstâncias comparáveis de plena concorrência. 193

Quanto às afirmações de que a determinação dos preços de transferência, e a aplicação do princípio da plena concorrência não é uma ciência exata, a Comissão refere que o caráter aproximativo de tal princípio não serve de fundamento para análises de preços de transferência que sejam metodologicamente incoerentes ou baseadas em seleções inadequadas de comparáveis.

3.2 O recurso da decisão da Comissão Europeia

A decisão da Comissão Europeia quanto à atribuição de um auxílio de Estado incompatível à SMBV, por parte dos Países Baixos, deu origem a dois recursos perante o Tribunal de Justiça da União Europeia (que deram entrada no Tribunal Geral), o primeiro interposto pelos Países Baixos em 23 de dezembro de 2015, e o segundo interposto Starbucks e SMBV, em conjunto, em 5 de setembro de 2016, com o objetivo de obter a anulação daquela decisão.194

Neste recurso os Países Baixos alegam que a Comissão não só errou ao considerar

que o APPT em causa era seletivo mas também ao utilizar como quadro de referência o

193

Comissão Europeia, decisão relativa ao auxílio estatal concedido à Starbucks (2015), supra n. 6, para. 264 e 265.

194 Recurso T-760/15, Países Baixos vs Comissão, interposto em 23 de dezembro de 2015 e Recurso T-

regime geral neerlandês do imposto sobre as pessoas coletivas, quando o sistema de referência em questão deveria ser o artigo 8.º-B, n.º 1, da Lei do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, bem como o decreto neerlandês sobre os preços de transferência.

Ademais, os Países Baixos consideram que o alegado princípio da plena concorrência do direito da União não existe e não deve integrar a apreciação da existência de um auxílio de Estado e que a Comissão cometeu um erro de apreciação ao considerar que a aplicação do método da margem líquida da operação não seria adequada, atribuindo uma vantagem às SMBV e que não corresponde a uma abordagem fiável de uma solução de mercado.

Por fim, os Países Baixos afirmam que a Comissão não demonstrou que a compensação paga à Alki e o aumento do preço custo dos grãos de café verde não tinham valor.195

Por seu lado, a Starbucks e a SMBV, em sede de recurso, procedem a uma argumentação mais geral, considerando que a Comissão cometeu várias erros de apreciação na sua decisão, entre eles a determinação errónea do sistema de referência e à quantificação do alegado auxílio.

195 É interessante notar que a compensação paga à Alki e a sua sujeição a tributação já havia sido

contestada pelo Reino Unido. Para desenvolvimento deste tema, cfr., KLEINBARD, Edward D., Stateless