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2. A constituição do objecto físico e do corpo somático

2.4. O corpo e a alma

Jamais conseguiremos perceber a alma como percebemos o nosso corpo somático, quer dizer, multiplicando as perspectivas que seria possível obter dela. A alma – ou a psique – não é, também, o lado oculto de um corpo somático. Se tentarmos transpor para a alma a noção de substância, que é própria das coisas, ver-se-á facilmente que a alma não é uma substância, que não se poderá falar do em-si de uma alma que se apresentaria por esboços, que a alma, por conseguinte, não é uma unidade esquematizada321, ou, dito

de outro modo, constituída em resultado de uma síntese que resultaria do recobrimento das suas aparições sucessivas.

Só posso experimentar o meu próprio psiquismo na base da sua relação com o meu corpo somático, que o espacializa e temporaliza. Jamais será possível compreender a natureza da alma se não a captarmos na relação que mantém com a sua base extrapsíquica. Falávamos a este propósito, no início deste ensaio, de uma relação de fundação. Mas é preciso acrescentar que a alma não está localizada num corpo do mesmo modo que as sensações tácteis, nem como se se estendesse sobre ele numa relação de recobrimento. Não há campos anímicos idênticos aos campos sensoriais. Husserl fala, em

321 É, todavia, ainda uma unidade, mas tal significa que têm uma história, para que

nos abre a teoria husserliana das habitualidades e das sínteses passivas. E se o corpo so- mático tem igualmente uma história e não é apenas um conjunto de processos de natu- reza física e química, para os quais seria possível fornecer uma localização no espaço e no tempo objectivos, é porque se trata, justamente, de um corpo animado. Cf. Ideen II, Hua IV, pp. 135-136: «À essência da alma pertence uma continuamente nova configuração, ou reconfiguração, de disposições, sob as conhecidas designações de associação, hábito, memória e, também, modificação sensível motivada, modificação motivada de convicções, de direcções de sentimentos (disposições para tomadas de posição de sentimentos ou para abstenções correspondentes), de direcções da vontade, que, à medida do sentido da capta- ção, não são redutíveis a uma mera associação.»

156 | Sensação, Afecção e Corpo Somático: Perspectivas a partir de Husserl e de Freud

Ideias II, de uma introjecção da alma no corpo, um termo que tinha já utili-

zado anteriormente para outros fins. É verdade, como dirá em Ideias III322,

que estamos em presença de três níveis de realidade, a saber, o corpo físico, o corpo somático e a alma, mas não é a alma que devemos contrapor ao corpo físico, mas sim a unidade concreta de alma e de corpo, quer dizer, o corpo enquanto corpo somático ou corpo animado323.

Perceber esta relação de fundação da alma é essencial para compreender- mos o fenómeno particular que constitui a mobilidade do nosso corpo. Em condições normais, temos o conhecimento imediato da localização de cada uma das suas partes e do que é necessário fazer com elas a cada momento. Sei que movimentos devo executar para levantar um objecto do solo e, em certas condições, saberei mesmo, antecipadamente, pelo menos de uma forma aproximada, a quantidade necessária de esforço que terei de fazer. Por isso, é necessário reconhecer que o corpo somático é mais do que um centro de actividades cinestésicas, pois é já um pólo subjectivo, embora não se trate ainda da subjectividade que realiza actos. Pensamos tratar-se de uma tese fundamental de Husserl, à qual ele constantemente regressa, a de que a experiência que tenho da minha alma, ou de mim enquanto sujeito com propriedades pessoais, é indissociável da experiência que tenho do meu corpo. Aliás, eles estão de tal forma entrelaçados que não posso encontrar- -me a mim mesmo sem que, ao mesmo tempo, encontre o meu corpo. As estruturas temporais destas duas experiências são exactamente as mesmas, como demonstram as análises da lição do semestre de Inverno de 1910-1911 intitulada Problemas Fundamentais da Fenomenologia324. É assim que, enquan-

to me torno outro na duração vivida, continua sendo o mesmo que era no momento que acabou de passar (o que Husserl chama o Soeben) e que está ainda presente na retenção; da mesma forma, o corpo que tenho agora, ou que existe agora enquanto meu corpo, é o mesmo que acabei de ter; e se me encontro de novo a mim mesmo na recordação, da mesma forma, o corpo de que me recordo é o mesmo que agora tenho.

Se é legítimo falar de um excesso de realidade do corpo somático, na medida em que ele é a unidade de um corpo e de uma alma, relativamente ao objecto físico; se não há nenhuma comunidade de essência entre uma vivência psíquica e um objecto físico; e, além disso, se posso pensar o prazer

322 Husserl, Ideen III, Hua V, p. 14.

323 A constituição da alma enquanto tal coloca problema específicos em que não en-

traremos aqui.

324 Idem, Grundprobleme der Phänomenologie (Vorlesung 1910-1911), in Zur Phänomenolo-

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ou a dor sem uma relação com a extensão coisal, tal como posso pensar num efeito sem a relação com a sua causa, à qual ele se encontra, todavia, empiricamente sempre ligado325; este excesso, todavia, não é totalmente se-

parável do plano físico, mas antes nele fundado. Um texto datado de 1905 di-lo a propósito do corpo do outro: se tocar com a minha mão, ou com qualquer outra parte do meu corpo, um outro corpo somático, toco numa unidade psicofísica, e embora o psiquismo do outro não me seja dado do mesmo modo que o seu corpo, ele não me seria dado sob nenhuma forma sem a presença de um corpo326. Mas, de um ponto de vista noemático, nun-

ca terei o aparecimento de algo que possa constituir como se de um simples objecto se tratasse.