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O Encontro com a Cura Acadêmica e a Cura Popular em Juazeiro

Em 2004, ao adentrar no curso de Medicina e na coordenação de Extensão da FMJ, encontrei-me no universo da cura propriamente dita e legitimada pela ciência, com a formação de médicos. Até então, só tinha experiência de ensino-aprendizagem com adultos em Pós-Graduação na ESPCE. Inicialmente, houve a falta de motivação para atuar e uma sensação de incompetência, pois como ministrar uma disciplina que, aparentemente, não tinha qualquer relação com a clínica tão desejada pelos alunos?

Assim, fui entrando nesse novo mundo. Cheio de ritos, símbolos e signos em torno da bata branca, do estetoscópio, do diagnóstico e da ilusão de alguns alunos que entravam no curso com a perspectiva de serem deuses e saírem com essa certeza, enfim, o mito de ser médico. Aos poucos, fui aprendendo com eles, especialmente com a inserção de alunos do PROUNI8, enfim a carência e a realidade refletidas em um mundo cheio de significados e sonhos de ser “doutor”. Por último, a capacidade cognitiva e intelectual de elaborar e estudar profundamente conceitos antropológicos e trazer para o futuro de sua atuação. Conceitos trabalhados na disciplina “Saúde da Família I”, que tem como objetivo de aprendizagem a discussão em torno da Antropologia da Saúde. A disciplina representa uma proposta que responde à nova perspectiva do currículo de Medicina que, aos poucos, adentra o universo da humanização, da subjetividade, das crenças, da cultura, da espiritualidade e da educação em saúde com o objetivo de formar médicos mais humanos e generalistas.

A Faculdade de Medicina de Juazeiro (FMJ) foi aprovada com a proposta do projeto político-pedagógico correspondente às novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação de Medicina, pelo Ministério da Educação, em novembro de 2001. Entre as alterações mais significativas no novo curso de Medicina figura a inserção precoce dos alunos na rede básica de saúde; a disciplina Saúde da Família (I, II, II, IV, V e VI) como eixo estruturante e transversal de todas as outras disciplinas. Oportunizamos o resgate do saber popular ou da medicina popular, em Juazeiro do Norte, bem como no Cariri, para referenciar práticas e discussões das opções de enfoque no processo de cura e cuidados em saúde. A disciplina favoreceu,

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O Programa Universidade para Todos foi criado pela MP nº 213/2004. Tem como finalidade a concessão de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de baixa renda, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior, oferecendo, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas que aderirem ao Programa.

também, a leitura dos alunos sobre as manifestações religiosas locais, da cultura e sua influência no processo saúde-doença.

Este aspecto representou um mergulho no mundo Cariri: os fósseis e a arqueologia, a riqueza da arte, a cultura e o folclore local, a religiosidade popular, assim como a violência, o jogo político-partidário e os interesses comerciais envolvidos, especialmente em romarias. As manifestações de fé e cura foram um grande espaço de aprendizagem da antropologia em saúde, pois ao discutir crenças e cultura os alunos buscavam, em visitas domiciliares nas comunidades e em romarias, a presença da fé e da cura nos altares, assim como a tomada de decisões no adoecer e no viver. Assim, em 2004, a FMJ, por meio do Núcleo de Pós-Graduação, Pesquisa Extensão (NUPPE) e da Liga de Medicina de Família do Cariri (LIMFA), propôs a elaboração de um projeto de extensão denominado “Saúde e Fé” para o desenvolvimento de educação e de ações em saúde durante as romarias em Juazeiro do Norte. A LIMFA é uma entidade formada por estudantes, professores e preceptores com interesse em desenvolver práticas e estudos em torno da estratégia saúde da família. O projeto “Saúde e Fé” tinha o propósito de atuar em três cenários de aprendizagem, pesquisa e extensão: a) o universo hospitalar no serviço de oncologia; b) o universo de rezadeiras, curadores e benzedores de Juazeiro; e, finalmente, c) o universo de romarias.

O primeiro cenário ficou suspenso devido à falta de serviços oncológicos referenciados pelo Hospital-Escola da FMJ, sendo que precisaria de uma negociação para a parceria com o hospital no município vizinho, no caso, Barbalha. Com relação ao segundo, cheguei, junto com os alunos e a ACS local, a catalogar em torno de 102 rezadeiras, 18 curadores e 32 benzedores, além de pessoas que atuavam com profecias e adivinhações através de experiências em torno do inverno e dos acontecimentos locais envolvendo espiritualidade. Mas como esse processo era concomitante às romarias, descobrimos que o universo pesquisado se encontrava permeado pelas práticas de curas tradicionais, como rezadores e benzedores. Assim, centralizamos o nosso foco (dado que havia poucos bolsistas no projeto) para atuar junto aos romeiros como um primeiro momento do projeto. A proposta foi pensada, inicialmente, como uma atividade esporádica de assistência e serviço de saúde por meio de exames de glicemia, medida de pressão arterial e informação sobre algumas epidemias, como dengue, hanseníase e doenças sexualmente transmissíveis.

No início de julho de 2004 algumas dificuldades surgiram, pois não havia um lugar definido para essas atividades, além do difícil acesso ao exame glicêmico em razão da grande demanda de romeiros. Ademais, aos poucos fomos percebendo que diante daquele universo de rituais de cura a nossa perspectiva de atuação não estava encontrando respostas, pois o saber tão fragmentado da Medicina, centrado na doença, não dava conta de tantas representações e metáforas em torno da saúde que os romeiros manifestavam. As falas, as cantigas, as orações, os rituais de sacrifício, o mundo das promessas, enfim, da busca da cura e de troca de conhecimentos, da medicina popular, de remédios e receitas caseiras em torno do Padre Cícero representavam revelações que refletiam a nossa limitada compreensão diante daquela realidade.

Considerei, então, que a proposta de educação em saúde numa perspectiva tradicional, centrada em informações e serviços de saúde escassos, pouco acrescentava àquela população, bem como aos participantes do projeto. Assim, iniciamos um exercício de superar a visão centrada no modelo biomédico aliado ao enfoque pedagógico voltado apenas para a transmissão de conhecimentos, não considerando as necessidades reais da vida dos indivíduos, para a perspectiva da educação popular em saúde.