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CAPÍTULO 3: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO CONTEMPORÂNEO:

3.3 O Conhecimento Contemporâneo: Complexidade e Integração

3.3.3 O Estatuto Epistemológico das Ciências Humanas e Sociais

Preliminarmente, é oportuno destacar que, embora se reconheça a necessidade e a existência de fundamentos epistemológicos gerais, considerando a multiplicidade e as particularidades dos campos científicos, faz-se necessário buscar explicitar alguns elementos da epistemologia das ciências humanas e sociais. Acontece que, se durante os séculos XVIII e XIX as reflexões nesse domínio tiveram como referencial as ciências exatas e da natureza, em virtude de sua reconhecida maturidade epistemológica; a ciência contemporânea vem procurando assumir suas particularidades, desmistificando algumas concepções sobre as suas condições de desenvolvimento e de consolidação epistemológica.

Nos espaços do progresso do conhecimento científico, é preciso considerar as condições e as possibilidades de conhecimento desse conjunto sistematizado, em suas particularidades e similitudes com as diversas disciplinas científicas. Nesse sentido, conforme destacam Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2007), há, pelo menos, duas frentes para compreensão do campo epistemológico das ciências sociais, a primeira que, no intuito de definir as condições gerais de conhecimento dessas ciências, procura aproximá-las das ciências exatas e da natureza; e a segunda que, por sua vez, dedica-se às especificidades das ciências sociais, notadamente, a particularidade do seu objeto complexo que, concomitantemente, fala e interpreta o mundo. Esta procura estabelecer um conjunto de critérios científicos nos espaços das ciências compreensivas.

De acordo com Wallerstein e colaboradores (1996), algumas ciências sociais procuraram estabelecer sua base de compreensão da realidade a partir das ciências nomotéticas, privilegiando, principalmente aquilo que as distinguem da história, que se constituiu na primeira ciência social. Os primeiros cientistas sociais de orientação nomotética – economistas, cientistas políticos e sociólogos – procuraram logo o estabelecimento dos seus respectivos territórios e de suas estruturas disciplinares fortemente orientados pelo paradigma natural. Esse grupo de pesquisadores elegeu, respectivamente, as seguintes áreas de atuação: as operações de mercado, as estruturas governamentais formais e a problemática social. Essa primeira aproximação com o modelo natural decorre, principalmente, da busca de distanciamento da filosofia especulativa. Essas ciências tiveram seu maior impulso no período subsequente à Segunda Guerra Mundial, aproveitando os prestígios e a influência conquistados pelas ciências naturais.

Dessa aproximação resultou a definição dos contornos teórico-metodológicos iniciais das ciências sociais, dentre os quais se destacam: a procura por leis gerais que supostamente regem o comportamento humano; a predisposição na identificação dos fenômenos a estudar como casos, em detrimento de entidades individualizadas; a necessidade de segmentar a realidade humana para posterior análise; a possibilidade e a vantagem de recorrer a métodos estritamente científicos, tais como a formulação de hipóteses teóricas testáveis, a busca de provas disponíveis, definição de procedimentos rigorosos e, se possível, quantitativos; e a sistematização de provas, notadamente, por intermédio de observação controlada (WALLERSTEIN et al, 1996).

Em uma perspectiva mais crítica, a segunda frente de estudos procura estabelecer o estatuto epistemológico das ciências sociais em consonância com as características das ciências compreensivas, isto é, suas práticas científicas são embasadas na construção de

sentido em detrimento do estabelecimento de leis. As construções científicas procuram estabelecer uma intersubjetividade, em detrimento da objetividade definida por intermédio de experimentação e comprovação dos fenômenos estudados. A reflexão hermenêutica possibilitada pela segunda vertente tem, de acordo com Santos (1989), ao mesmo tempo, a função de tornar compreensível o que as ciências sociais são na sociedade e o que elas dizem sobre a sociedade. Dessa forma, a compreensão hermenêutica das ciências sociais é precisamente a autocompreensão do estar no mundo técnico-científico contemporâneo.

Santos (1989, p. 14) esclarece que “enquanto práticas de conhecimento, as ciências sociais transformam a sociedade em múltiplos objetos teóricos e, nesse sentido, objetivam (coisificam) a sociedade. Contudo, o conhecimento social desse conhecimento faz com que tal objetivação seja apropriável e, nessa medida, subjetivável”. Isso se deve ao fato de os objetos teóricos se transformarem em objetivos sociais dos sujeitos que, por sua vez, possibilitam o investimento no conhecimento científico da esfera social e, por conseguinte, de sua apropriação. De modo mais preciso, para o autor, a subjetividade científica, nos espaços das ciências sociais, apresenta-se progressivamente como um produto da objetivação social.

A partir de uma base compreensiva, Ortiz (2002) destaca como de maior importância para as ciências sociais as questões conceituais nas suas especificidades em detrimento da unidade e universalidade procuradas pela objetividade do modelo natural. Trata-se, sobretudo, da compreensão de que cada pesquisa e, por conseguinte, cada objeto estudado se refere a uma realidade distinta. De acordo com o autor, essa perspectiva da construção sociológica obriga o pesquisador, independentemente da temática e do problema de pesquisa, a sempre começar do zero, refazendo os passos iniciais de toda a prática científica: pesquisa empírica, pesquisa em diversas fontes de informação, leituras, anotações, seleções, elaborações dos conceitos e produção do texto.

Essa compreensão se coaduna com o entendimento da ciência desunificada de Lenoir (2004), na medida em que cada campo científico se inscreve em um espaço epistêmico particular desenvolvendo seus fundamentos teórico-metodológicos e sua infraestrutura de institucionalização, de forma ampla, conforme suas características e seus projetos disciplinares. Isso, contudo, não significa desconsiderar a tradição intelectual e a produção científica já existente, mas faz-se necessário considerar que o equacionamento do problema é sempre de ordem particular.

O cume da arte, em ciências sociais, está sem dúvida em ser-se capaz de pôr em jogo “coisas teóricas” muito importantes a respeito de objectos ditos “empíricos” muito precisos, frequentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco irrisórios. Tem-se demasiada tendência para crer, em ciências sociais, que a importância social ou política do objeto é por si mesmo suficientes para dar fundamento à importância

do discurso que lhe é consagrado [...]. O que importa, na realidade, é a construção de objectos, e a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de construir objectos socialmente insignificantes em objetos científicos ou, o que é o mesmo, na capacidade de reconstruir cientificamente os grandes objectos socialmente importantes apreendendo-os de um ângulo imprevisto [...] (BOURDIEU, 1998, p. 20, grifo do autor).

Pimenta (2003), a partir de uma abordagem específica sobre a complexidade e a interdisciplinaridade, rejeita, de forma ampla, a classificação de ciência e, em específico, o agrupamento das ciências que estudam o homem em sociedade, individual ou coletivamente. Isso se deve ao fato de o autor, nessa perspectiva complexa, “[...] considerar que cada ciência, independente do grau de desagregação em que estejamos, tem um conjunto de características que têm de ser estudadas em si mesmo” (PIMENTA, 2003, p. 10, grifo do autor). Não se pode desconsiderar, contudo, a existência de características comuns nos diversos campos epistemológicos das ciências. Ao mesmo tempo em que um campo científico deve ser estudado em suas especificidades, faz-se também necessário considerar o atual estado do progresso de conhecimento científico e, portanto, a proposta da noção de complexidade e da integração de saberes.

As ciências sociais têm, por natureza, essa característica recursiva, que tem como fundamento a unidade do social, embora ampla, enquanto fenômeno a ser estudado e a pluralidade de abordagens desenvolvidas pelas diversas disciplinas científicas (SANTOS, 1989). Além do seu objeto que fala e interpreta, essa diversidade de abordagens desenvolvidas pelas ciências sociais, como um todo, apresenta-se como uma das questões mais complexas na construção de bases teórico-metodológicas mais particularizadas e, por conseguinte, da legitimidade e da autonomia científica de algumas ciências sociais.

Em que pesem as exigências do rigor do método científico historicamente construído no interior das ciências exatas e da natureza, em ciências sociais, faz-se necessário observar, ao mesmo tempo, a multiplicidade de abordagens possíveis e, consequentemente, a diversidade de critérios de avaliação disponível. Mais que em qualquer outro campo científico, em ciências sociais, os critérios de cientificidade estão relacionados diretamente às forças que governam a comunidade científica e que definem, como explica Kuhn (2007), os acordos e, pelo menos, o consenso aparente. Embora não deixe de considerar o progresso científico ocorrido naquelas ciências, em toda a modernidade, por outro lado, é condição essencial o alargamento da concepção de ciência para além do modelo predominantemente analítico.

A epistemologia das ciências sociais tem atualmente uma grande relevância porque possibilita a compreensão da possibilidade de inteligibilidade do social por intermédio de uma

totalidade (realidade social) e das possibilidades de conhecimento no interior das diversas disciplinas que as compõem. Mais que isso, segundo Santos (1989, p. 16), “a compreensão do real social proporcionado pelas ciências sociais só é possível na medida em que estas se autocompreendam nessa prática e nô-la desenvolvem, duplamente transparente, a nós que somos o princípio e o fim de tudo o que se diz sobre o mundo”. Há, portanto, uma ampliação da noção de ciência, uma vez que quebra o círculo vicioso objeto-sujeito-objeto.

Há nessas condições de produção epistêmica o modelo reticular, que caracteriza as práticas sociais, políticas e econômicas contemporâneas. Nesse contexto, trata-se de considerar a complexidade das diversas manifestações da natureza e integrar, em maior ou menor medida, os elementos que compõem essa complexidade nos diversos campos científicos. Longe de perseguir a unidade da ciência, essa nova forma de conceber e realizar a prática científica corresponde, segundo Morin (2006, 2007), ao desenvolvimento de uma ciência mais consciente. Essa postura epistemológica exige, nas palavras do autor, uma reforma do pensamento, que se traduz em uma postura crítica na prática científica, considerando, essencialmente, os entraves às reflexões epistemológicas.