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O EXERCÍCIO DO ENTERRADO VIVO

No documento O Diário de um Mago (páginas 57-61)

Deite-se no chão e relaxe. Cruze as mãos sobre o peito, na postura de morto.

Imagine todos os detalhes de seu enterro, se ele fosse realizado amanhã. A única diferença é que você está sendo enterrado vivo. À medida em que a história vai se desenrolando – capela, caminhada até o túmulo, descida do caixão, os vermes na sepultura – você vai tensionando cada vez mais todos os músculos, num desesperado esforço de se mover. Mas não se move. Até que, quando não agüentar mais, num

movimento que envolva todo o seu corpo, você atira para os lados as táboas do caixão, respira fundo, e está livre. Este movimento terá mais efeito se for acompanhado de um grito, um grito saído das profundezas de seu corpo.

– Você só deve fazê-lo uma vez – disse ele, enquanto eu me lembrava de um exercício de teatro muito parecido. – É preciso que você desperte toda a verdade, todo o medo necessário para que o exercício possa surgir das raízes da sua alma, e deixar cair a máscara de horror que cobre a face gentil de sua Morte.

Petrus levantou-se, e eu vi sua silhueta contra o fundo do céu incendiado pelo pôr-do-sol. Como eu permanecia sentado, ele dava a impressão de uma figura imponente, gigantesca.

– Petrus, tenho ainda uma pergunta. – O que é?

– Hoje de manhã você estava calado e estranho. Pressentiu antes de mim a chegada do cão. Como é que isto foi possível?

– Quando experimentamos juntos o Amor que Devora, compartilhamos do Absoluto. O Absoluto mostra a todos os homens o que realmente eles são, uma imensa teia de causas e efeitos, com cada pequeno gesto de um, refletindo na vida do outro. Hoje de manhã esta fatia do Absoluto ainda estava muito viva na minha alma. Eu estava percebendo não apenas você, mas tudo que existe no mundo, sem limite de espaço ou de tempo. Agora, o efeito já está mais fraco, e só voltará da próxima vez que eu fizer o exercício do Amor que Devora.

Lembrei-me do mau-humor de Petrus aquela manhã. Se era verdade o que dizia, o mundo estava passando por um momento muito difícil.

– Estarei esperando você no Parador – disse enquanto se afastava. – Deixo o seu nome da portaria.

Acompanhei-o com os olhos enquanto pude. Nos campos à minha esquerda, os lavradores tinham acabado o serviço e voltavam para casa. Resolvi fazer o exercício assim que a noite caísse por completo.

Eu estava tranqüilo. Era a primeira vez que ficava completamente sozinho desde que tinha começado a trilhar o Estranho Caminho de Santiago. Levantei e dei um passeio pelas imediações, mas a noite estava caindo rápido e resolvi voltar para a árvore, com medo de me perder. Antes que a escuridão caísse por completo, marquei mentalmente a distância da árvore até o Caminho. Como não havia qualquer luz que pudesse me ofuscar, seria perfeitamente capaz de ver a picada e chegar até Santo Domingo apenas com o brilho da pequena lua nova que começava a mostrar-se no céu.

Até aquele instante eu não estava com nenhum medo, e achava que seria preciso muita imaginação para despertar em mim os receios de uma morte horrível. Mas não importa quantos anos a gente viva; quando a noite cai ela traz consigo temores escondidos em nossa alma desde criança. Quanto mais ficava escuro, mais eu me sentia desconfortável.

Estava ali sozinho no campo e, se gritasse, ninguém iria me escutar. Lembrei-me de que poderia ter tido um colapso aquela manhã. Nunca, em toda a minha vida, havia sentido meu coração tão descontrolado.

E se eu tivesse morrido? A vida teria se acabado, era a conclusão mais lógica. Durante o meu caminho na Tradição, eu já conversara com muitos espíritos. Tinha absoluta certeza da vida após a morte, mas nunca me ocorrera perguntar como é que esta transição se dava. Passar de uma dimensão para a outra, por mais preparado que a gente esteja, deve ser terrível. Se eu tivesse morrido aquela manhã, por exemplo, não teria o menor sentido o Caminho de Santiago, os anos de estudo, as saudades da família, o dinheiro escondido no meu cinto. Lembrei-me de uma planta que eu tinha em cima da mesa de trabalho, no Brasil. A planta continuaria, como continuariam as outras plantas, os ônibus, o verdureiro da esquina que sempre cobrava mais caro, a telefonista que me informava os números fora do catálogo. Todas estas pequenas coisas – que podiam desaparecer se eu tivesse tido um colapso naquela manhã – ganharam de repente uma enorme importância para mim. Eram elas, e não as estrelas ou a sabedoria, que me diziam que eu estava vivo.

A noite agora estava bem escura, e no horizonte eu podia distingüir o brilho débil da cidade. Deitei no chão e fiquei olhando os galhos de árvore acima de minha cabeça. Comecei a ouvir estranhos ruídos, ruídos de toda espécie. Eram os animais noturnos que saíam para a caçada. Petrus não podia saber tudo, se ele era tão humano quanto eu. Que garantia eu podia ter de que realmente não existiam serpentes venenosas, E os lobos, os eternos lobos europeus, não podiam ter resolvido passear aquela noite por ali, sentindo o meu cheiro? Um ruído mais forte, semelhante a um galho quebrando, me assustou e o meu coração disparou de novo.

Estava ficando muito tenso, o melhor era fazer logo o exercício e ir para o hotel. Comecei a relaxar e cruzei as mãos sobre o peito, na postura de morto. Alguma coisa ao meu lado se mexeu. Eu dei um pulo e fiquei imediatamente de pé.

Não era nada. A noite tinha invadido tudo, e tinha trazido consigo os terrores do homem. Deitei-me de novo, desta vez decidido a transformar qualquer medo em um estímulo para o exercício. Percebi que apesar da temperatura haver baixado bastante, eu estava suando.

Imaginei o caixão sendo fechado, e os parafusos colocados no lugar. Eu estava imóvel, mas estava vivo, e tinha vontade de dizer para a minha família que estava vendo tudo, que os amava, mas nenhum som saía da minha boca. Meu pai, minha mãe chorando, os amigos à minha volta, e eu estava sozinho! Com tanta gente querida ali, ninguém era capaz de perceber que eu estava vivo, que ainda não tinha feito tudo que desejava fazer neste mundo. Tentava desesperadamente abrir os olhos, fazer um sinal, dar uma pancada na tampa do caixão. Mas nada em meu corpo se movia.

Senti que o caixão balançava, estavam me transportando para o túmulo. Podia ouvir o ruído de anéis roçando nas alças de ferro, os passos das pessoas atrás, uma ou outra voz conversando. Alguém disse que tinha um jantar mais tarde, outro comentou que eu havia morrido cedo. O cheiro das flores em torno de minha cabeça começou a me sufocar.

Lembrei-me que eu havia deixado de cortejar duas ou três mulheres, temendo ser rejeitado. Lembrei-me também de algumas ocasiões em que eu tinha deixado de fazer o que queria, achando que podia fazer mais tarde. Senti uma enorme pena de mim, não só porque estava sendo enterrado vivo, mas porque havia tido medo de viver. Qual o medo de levar um “não”, de deixar uma coisa para fazer depois, se o mais importante de tudo era gozar plenamente a vida? Ali estava eu trancado num caixão, e já era tarde demais para voltar atrás e demonstrar a coragem que eu precisava ter tido.

Ali estava eu, que tinha sido o meu próprio Judas e traído a mim mesmo. Ali estava sem poder mover um músculo, a cabeça gritando por socorro e as pessoas lá fora imersas na vida, preocupadas com o que iam fazer à noite, olhando estátuas e edifícios que eu nunca mais tornaria a ver. Um sentimento de grande injustiça me invadiu, por haver sido enterrado, enquanto os outros continuavam vivendo. Melhor teria sido, uma grande catástrofe, e todos nós juntos no mesmo barco, em direção ao mesmo ponto negro para o qual me carregavam agora. Socorro! Eu estou vivo, não morri, minha cabeça continua funcionando!

Colocaram meu caixão na borda da sepultura. Vão me enterrar! Minha mulher vai me esquecer, vai casar com outro e vai gastar o dinheiro que lutamos para juntar durante todos estes anos! Mas que importância tem isto? Eu quero estar com ela agora, porque estou vivo!

Ouço choros, sinto que dos meus olhos também rolaram duas lágrimas. Se eles abrissem o caixão agora, iam ver e iam me salvar. Mas tudo que sinto é o caixão baixando na sepultura. De repente, tudo fica escuro. Antes entrava uma frestinha de luz pela borda do caixão, mas agora a escuridão é total. As pás dos coveiros estão cimentando o túmulo, e eu estou vivo! Enterrado vivo! Sinto o ar ficar pesado, o cheiro das flores é insuportável, e ouço os passos das pessoas indo embora. O terror é total. Não consigo me mexer, e se forem embora agora em breve vai ser de noite e ninguém vai me escutar batendo na tumba!

Os passos se afastam, ninguém ouve os gritos que dá meu pensamento, estou sozinho e a escuridão, o ar abafado, o cheiro das flores começam a me enlouquecer. De repente, ouço um ruído. São os vermes, os vermes que se aproximam para me devorar vivo. Tento com todas as minhas forças mover alguma parte do corpo, mas tudo permanece inerte. Os vermes começam a subir pelo meu corpo. São oleosos e frios. Passeiam pelo meu rosto, entram pelas minhas calças. Um deles penetra no meu ânus, outro começa a se esgueirar pelo buraco do meu nariz. Socorro! Estou sendo devorado vivo e ninguém me escuta, ninguém me diz nada. O verme que entrou pelo nariz desce pela minha garganta. Sinto outro entrando pelo ouvido. Preciso sair daqui! Onde está Deus, que não responde? Começaram a devorar minha garganta e eu não vou poder nunca mais gritar! Estão entrando por todas as partes, pelo ouvido, pelo canto da boca, pelo buraco do pênis. Sinto aquelas coisas gosmentas e oleosas dentro de mim, tenho que gritar, tenho que me libertar! Estou trancado neste túmulo escuro e frio, sozinho, sendo devorado vivo! O ar está faltando, e os vermes estão me comendo! Tenho que me mover. Tenho que arrebentar este caixão! Meu Deus, junte todas as minhas forças, porque eu tenho que me mover! EU TENHO QUE SAIR DAQUI; TENHO . EU VOU ME MOVER! VOU ME MOVER!

CONSEGUI!

As táboas do caixão voaram para todos os lados, o túmulo desapareceu, e eu enchi o peito com ar puro do Caminho de Santiago. Meu corpo tremia da cabeça aos pés, empapado de suor. Me mexi um pouco e percebi que meus intestinos haviam se soltado. Mas nada disto tinha importância: eu estava vivo.

A tremedeira continuava e eu não fiz o menor esforço para controlá-la. Uma imensa sensação de calma interior me invadiu, e eu senti uma espécie de presença ao meu lado. Olhei e vi o rosto de minha Morte. Não era a morte que eu havia experimentado minutos antes, a morte criada pelos meus terrores e pela minha imaginação, mas a minha verdadeira Morte, amiga e conselheira, que não ia mais me deixar ser covarde nem um dia de minha vida. A partir de agora, ela ia me ajudar mais do que a mão e os conselhos de Petrus. Não ia mais permitir que eu deixasse para o futuro tudo aquilo que eu podia viver agora. Não me deixaria fugir das lutas da vida, e ia me ajudar a combater o Bom Combate. Nunca mais, em momento algum, eu iria me sentir ridículo ao fazer qualquer coisa. Porque ali estava ela, dizendo que quando me pegasse nas mãos para viajarmos até outros mundos, eu não devia carregar comigo o maior pecado de todos: o

Arrependimento. Com a certeza de sua presença, olhando seu rosto gentil, eu tive a certeza de que ia beber com avidez da fonte de água viva que é esta existência.

A noite não tinha mais segredos nem terrores. Era uma noite feliz, uma noite de paz. Quando a tremedeira passou, eu levantei, e caminhei em direção às bombas de água dos trabalhadores do campo. Lavei a bermuda e coloquei a outra que trazia na mochila. Depois, voltei para a árvore e comi os dois sanduíches que Petrus havia deixado para mim. Era o alimento mais delicioso do mundo, porque eu estava vivo e a Morte não me assustava mais.

No documento O Diário de um Mago (páginas 57-61)