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O futuro deformado: sobre a polêmica da guerra atômica

II. O futuro impensável: imaginando o futuro deformado

II.1. O futuro deformado: sobre a polêmica da guerra atômica

A produção das duas bombas atômicas ocorreu, por um lado, conforme a crença de seus inventores, de que ela seria um meio para findar a guerra. Por outro lado, havia também a consciência de seu poder inédito. Essa consciência se mostrou menor do que a realidade quando, nos testes, foi percebido o perigo enorme da nova arma, o que se confirmou com seu uso sobre Hiroshima e Nagasaki. Esse potencial de destruição aumentou com o advento da bomba de hidrogênio, em 1952, inaugurando uma nova arma absoluta. O desenvolvimento dessas armas criou problemas sérios para planejar a defesa dos EUA. O OTW foi o início de uma abordagem polêmica adotada por Kahn, ainda na RAND Corporation, para expor seu ponto de vista sobre a defesa dos EUA frente à possibilidade das novas armas. O TATU e o OE continuaram essa abordagem, fornecendo novos elementos para ela, respondendo algumas críticas e definindo e cravando alguns métodos e técnicas.6

A bomba H7 tinha um poder destrutivo muito forte, indo além do da bomba atômica. Ela superava a destruição física, pois também deformava o futuro. Um primeiro sentido dessa deformação era a própria guerra. Para Kahn, a guerra termonuclear retomaria a brevidade da guerra, porém, de forma inédita, uma vez que as guerras durariam entre algumas horas a até, no máximo, dois meses. Outra alteração seria em relação aos alvos, que não seriam mais civis ou bases industriais, já que exércitos, pessoas e produção industrial não fariam diferença estratégica ou tática em uma guerra como essa – não seriam necessários mais exércitos, ou mais tanques uma vez realizado o primeiro ataque.8

O advento dessas bombas também implicou em uma deformação na concepção de tática e de estratégia. A consideração dessas armas como armas absolutas, como Kahn percebera, já no advento da bomba atômica, levou muitos a decretarem o fim de ambas as

6 STEVENSON, J., 2008, p. 9-10,12.

7 Em 1952, Kahn estava envolvido com a pesquisa da Bomba H, GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 64-65. 8 KAHN, H. A escalada, 1969, p. 265; KAHN, H., 1968, 168-169.

artes militares, uma vez que a destruição de nações não era objeto nem de tática, nem de estratégia. Isso, para Kahn, fez com que muitos considerassem a guerra atômica como inconcebível, sem pensar nos detalhes dela. Outros tentaram pensar tal guerra, porém, com conceitos obsoletos da II Guerra. Quem pensou e propôs estratégias e táticas para lutar tais guerras foram os think tanks como, no caso da Força Aérea, a RAND Corporation, por exemplo. 9

Portanto, os problemas enfrentados por Kahn ainda são os da tecnologia atômica e do futuro incerto que ela criava, uma vez que, segundo ele, “a simples existência da tecnologia moderna constitui um risco para a civilização, o qual não se poderia imaginar há vinte e cinco anos”10 e, mais além, decreta: “… a manutenção da atual ordem internacional é incompatível com as prováveis conquistas tecnológicas”.11 O ponto de partida para compreendermos a proposta de Kahn é a manutenção daquilo que já era realizado pela SA e a OR.12

Kahn mantinha a defesa do trabalho de antecipação, de prevenção e de preparação para as crises e os problemas, pois o que estava em jogo, para ele, não era a simples opção entre o risco ou a certeza do desastre, entre o bem e o mal. Buscava, portanto, um guia frente a um futuro escuro e ameaçador e um paliativo contra as incertezas. A resposta para isso, proposta por Kahn, foi delinear meios para orientar o processo de escolha, os quais ponderariam os diferentes resultados conforme seus riscos. Além disso, o processo de escolha teria que se basear em informação e conjecturas que resultariam na opção por um curso de ação, entre vários possíveis delineados e imaginados, que estivesse preparado para a possibilidade de se fazer a escolha errada ou para eventos que pudessem se desdobrar em um caminho inexorável, apesar das escolhas. Ou seja, as ferramentas, conforme Kahn, para o homem ter o controle do seu destino e não ficar largado ao acaso ou às atitudes irracionais já estavam disponíveis. A partir dali, era uma questão de vontade e prática, já que, como Kahn decreta: “a sobrevivência da nossa civilização pode depender de nossos esforços”.13

O OTW e as análises de Kahn caíram sobre a sociedade americana como uma bomba de alguns megatons, uma vez que abordava de forma fria, crua e objetiva a questão da guerra

9 KAHN, H. A escalada, 1969, p. 307-309; KAHN, H., 1968, p. 197-198.

10 KAHN, H., 1971, p. 20 "the mere existence of modern technology involves a risk to civilization that would

have been unthinkable twenty-five years ago” KAHN, H., 1962, p. 23.

11 KAHN, H., 1971, p. 237, “(…) a continuation of the present international order is incompatible with probable

technological developments”. KAHN, H., 1962, p. 209.

12 Ainda que haja uma restrição cada vez maior ao uso de computadores e dos métodos do MC. KAHN, H.,

1971, p. 11; KAHN, H., 1962, p. 13.

13 “the survival of our civilization may depend on our making this effort” (tradução nossa), KAHN, H. On

thermonuclear war, 1969, p. 576, 119, 233, 576, xv; KAHN, H., 1962, p. 13, 22-23, 26; KAHN, H., 1971, p. 11,19-20, 24.

atômica e seus resultados. O OTW, o TATU e o OE eram propostas de aplicação prática e que alcançaram o grande público, em oposição aos relatórios de 1957, que eram discussões do estado da arte da SA e que ficaram restritos à RAND e aos setores mais ligados a ela. Há, também – como Kahn reconhece no prefácio à segunda edição do OTW – uma preocupação internacional mais ampla que aquela exposta nos escritos de SA. Nesse mesmo prefácio, Kahn aumenta o alarme sobre a questão atômica, defendendo que esse problema era maior do que o da pobreza e o do provimento de necessidades básicas, os quais existiam em algumas regiões da Europa e dos EUA. A questão das armas nucleares era mais imediata aos EUA – uma vez que, para Kahn, em menos ou mais tempo, a pobreza seria resolvida – por causa da preocupação da tecnologia nuclear ou cair na mão de países imprevisíveis ou servir ao expansionismo das nações comunistas, podendo, com isso, representar uma ameaça aos EUA e ao Ocidente. Posteriormente, Kahn acrescentou que até por finalidades pacíficas, era possível esse poder nuclear aumentar.14

Portanto, o que estava em questão, para Kahn, era mais do que a segurança dos EUA – e, em alguma instância, do Ocidente – era o triunfo do progresso material e da segurança humana. Nesse sentido, a revisão e a análise das posturas militares dos EUA, ponderando riscos e benefícios, eram defendidas como importantes, já que os EUA dispunham de um estabelecimento defensivo letal e caro. Dessa forma, os livros não abandonam totalmente o enfoque militarista defendendo e realizando a ponderação de resultados prováveis e improváveis de uma guerra, abrangendo desde guerra acidentais até comportamentos não autorizados. Com isso, Kahn entrava em um tema que contribuiu muito para o aspecto polêmico de suas análises: o pensamento e a exposição detalhistas sobre a guerra nuclear.15

Kahn diagnosticava um pensamento que considerava a guerra nuclear inconcebível e, por isso, impossível, o que fazia com que quem pensasse sobre ela fosse considerado um imoral. Com isso, a guerra era pensada como o fim da humanidade, sem maiores detalhes e distinções. Kahn achava simplista e contraproducente pensar a guerra nuclear como uma aniquilação automática. Para ele, a guerra teria diferentes níveis de dano. Destarte, a defesa de Kahn por um trabalho analítico da guerra se assenta na refutação da máxima “antes não pensar do que pensar mal”, que guardava inferências como: se um homem estuda guerra é por que deve gostar de guerra. Esse tipo de pensamento indicava um envolvimento emocional que, para Kahn, o analista não deveria possuir. Kahn defendia uma empatia disciplinada, ou

14 KAHN, H. On thermonuclear war, 1969, p. xv, xvi-xvii; KAHN, H., 1971, p. 19-20; KAHN, H., 1962, p.

22-23; BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 56.

seja, esvaziar a mente das tragédias associadas aos problemas que são estudados. Portanto, Kahn defende uma abordagem mais colorida, desapaixonada e factual, com uma linguagem simples, transmitindo, com isso, todo o sentimento de choque que a situação possui. A prática do estudo de guerra também ajudaria desmistificar seu estudo, quebrando, assim, o tabu de sua impossibilidade. Tudo isso, para Kahn, era em prol da sobrevivência do Ocidente. A defesa de Kahn por esse enfoque trouxe o reconhecimento público para ele, tanto positivo quanto negativo e representou uma guinada significativa em sua trajetória profissional.16