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O Liberalismo e o Direito à Representação

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 49-51)

1. O CAPITALISMO E A ESTRUTURA DE SEUS DISCURSOS

1.6 O Liberalismo e o Direito à Representação

As formas de legitimação do exercício do poder político, baseadas no nascimento e na tradição, a reforma protestante, as revoluções burguesas com a acirrada defesa de seus privilégios, contribuíram para gerar um clima político e intelectual propenso ao contratualismo, como tentativa de construir outra ordem política sobre alicerces mais seguros. É indubitável que o contrato constitui o emblema da ordem burguesa e a referência fundadora do liberalismo. O contrato acarreta, portanto, um conjunto de operações destinadas a instaurar uma ordem consensual organizada em torno da abstração jurídica.

Bobbio (1986 apud CIRIZA, 2006), aponta para as diferenças e semelhanças entre os contratualistas clássicos: Hobbes, Locke e Rousseau. Os três filósofos se unem na centralidade da importância do contrato como forma de regulação da ordem social, mas mantêm diferenças em relação a três aspectos essenciais. O primeiro se refere às características atribuídas ao estado de natureza. Segundo Hobbes, a natureza humana é essencialmente egoísta, transformando o homem no inimigo do homem (homo homini lúpus), caracterizando-se como um estado de guerra permanente (bellum ommium contra omnes). Locke se contrapõe a Hobbes por uma lei racional, eventualmente inspirada pela natureza divina, que o leva a uma visão antropológica otimista. O homem natural da Inglaterra rural não é um selvagem hobbesiano e sim um gentleman, um virtuoso anarquista, racional, possuidor de propriedades, que respeita as posses alheias e vive em paz e prosperidade. Em Rousseau o estado de natureza é de autossuficiência e solidão (paz, mas com isolamento). O segundo aspecto se refere à forma e ao conteúdo do contrato. Quanto à forma, Locke e Rousseau pensam no contrato como sendo uma associação entre indivíduos em benefício da coletividade. Em Hobbes o contrato é de sujeição, ou seja, a sociedade civil não pode constituir-se sem a intervenção coerciva do estado, o que implica que os homens renunciem a sua própria liberdade. Daí o Leviathan. Quanto ao conteúdo, Hobbes advoga que o contrato não pode ser anulado sob pena do retorno à barbárie, enquanto tanto em Locke quanto em Rousseau isso é possível sob algumas condições. Em Hobbes os indivíduos renunciam totalmente aos direitos naturais, em Locke não há nenhuma renúncia e, em Rousseau, há renúncia que é resultado de muito esforço subjetivo. O terceiro aspecto se refere à natureza do poder político que, em Hobbes é absoluto, irrevogável, incondicionado e ilimitado e, em Locke e Rousseau, é condicionado, limitado e revogável.22

22 Já fizemos acima uma citação de Locke a respeito da revogabilidade. Também Rousseau no “O Contrato” indica que: “não há no Estado nenhuma lei fundamental que não se possa revogar, nem mesmo o pacto social;

Embora Locke tenha se inspirado em Hobbes, o homem natural da Inglaterra rural não é um selvagem hobbesiano e sim um gentleman, um virtuoso anarquista, racional, possuidor de propriedades, que respeita as posses alheias e vive em paz e prosperidade. Por isso não estaria submisso ao poder político. Hobbes e Locke eram parlamentaristas, mas não eram republicanos e nada democráticos, o que marca a diferença dos dois em relação à Rousseau, que era republicano e pensava a soberania popular como centralizadora da relação da sociedade com o Estado.

É Rousseau (2003) que demonstra toda a dificuldade no caráter paradoxal do contrato, pensado como capaz de articular de forma simultânea o consenso e as tensões inerentes à defesa dos interesses particulares. O contrato impediria que o individualismo se tornasse ameaça extrema e desembocasse na selvagem guerra de todos contra todos. Ele diz que, no entanto, o problema do qual se trata é o de uma tensão não resolvida enquanto “a vontade particular, por sua própria natureza, tende às predileções, a vontade geral propende para a igualdade.” (ROUSSEAU, 2003, p. 34).

O contrato é, simultaneamente, a instância de salvaguarda dos interesses particulares e da propriedade. O próprio Rousseau nos adverte no Discurso sobre a origem e os

fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1755, mostrando que a questão da propriedade é uma inesgotável fonte de conflitos. Rousseau diz:

[...] foi assim que as usurpações dos ricos, as pilhagens dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, ao abafarem a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça [...]. Levantava-se entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante um conflito perpétuo que só terminava por combate e assassínios. À sociedade nascente seguiu-se um terrível estado de guerra; o gênero humano, aviltado e desolado, já não podendo voltar atrás nem renunciar às infelizes aquisições que fizera e trabalhando apenas para sua vergonha, pelo abuso das faculdades que o dignificam, colocou a si mesmo às portas de sua ruína. (ROUSSEAU, 2003, p.122 ).

A regulação das relações entre economia e política aparece então como um dos nós problemáticos do contrato. Se, do mesmo modo que a natureza permite a cada um o domínio do próprio corpo, a vontade geral, como expressão estritamente política do acordo, há de governar o mundo das paixões particulares e da sede de riqueza, é inevitável a regulação preventiva da acumulação que inclua a regulação das relações mercantis.

A igualdade rousseauniana está organizada sobre a renúncia aos interesses particulares e inclusive ao corpo real, inaugurando um sujeito sem substância. É preciso considerar a igualdade enquanto igualdade jurídica. “O pacto social estabelece tal igualdade entre os porque, se todos os cidadãos se reunissem para romper esse pacto de comum acordo, não há dúvida de que ele seria muito legitimamente rompido” (ROUSSEAU, 2003, p. 121-122).

cidadãos que todos eles se comprometem sob as mesmas condições e devem gozar dos mesmos direitos” (ROUSSEAU, 2003, p. 41). De uma maneira clara Rousseau rompe com Locke quando postula que é a lei, e não a propriedade, o que nos faz iguais.

Ameaçado pela fragilidade que a tensão entre as vontades particulares introduz em seu seio, o recurso rousseauniano ao caráter impessoal da lei permite solucionar teoricamente a questão da ordem social que, ao mesmo tempo em que considera os indivíduos como se fossem iguais, não pode se imiscuir no espaço da economia, exatamente onde as desigualdades foram historicamente instituídas.

Esse é um tema caro a Freud em seu texto Mal estar na civilização, de 1931, no qual argumenta que o homem sacrifica grande parte de sua liberdade individual em função de preservar a segurança coletiva. O destino das pulsões e suas vicissitudes existem para proteger os homens dos inúmeros perigos impostos pela natureza, pelo nosso corpo e na difícil relação entre os homens, ou seja, a civilização oferece libertação do medo ou, pelo menos, tornando-o menos assustador e intenso do que de outra forma. Bauman (2000, p. 24) observa que atualmente é a segurança e a união da coletividade que está ameaçada pelo radicalismo da liberdade individual, e nos alerta de que temos nos acostumado a ouvir cada vez mais que a segurança vai contra a natureza da dignidade humana, de que é traiçoeira demais para se desejar, de forma que é o medo que nos atormenta na atualidade.

No documento Paula Angela de Figueiredo e Paula (páginas 49-51)