• Nenhum resultado encontrado

O “lugar antropológico” como espaço de interação espontânea

CAPÍTULO III – AMANTANÍ E O DESEJO COLONIAL

2. O significado do conteúdo das interações sociais existentes entre a população

2.1. O “lugar antropológico” como espaço de interação espontânea

A etnografia efetuada na ilha de Amantaní nos leva a enxergar a nova situação turística proposta pelo turismo rural como uma nova forma de configuração da ordem colonial num espaço cada vez mais estreito, privado e íntimo. Nesta configuração, Amantaní nos leva a refletir em torno da noção do lugar e do espaço. Observamos como o espaço íntimo se encontra profundamente transformado, adaptado, modificado e reconstituído de maneira diferenciada em vista das experiências turísticas, as quais marcam o quotidiano da população local. Essas transformações, além de serem perceptíveis dentro da paisagem insular compartilhada por todos os moradores, transcorrem dentro do âmbito privado da casa de cada família, transgredindo as fronteiras sociais normalmente estabelecidas dentro do espaço privado. Assistimos assim à reorganização de um espaço que contribui em constituir lugares dentro dos quais se estabelecem novas práticas sociais.

Para teorizar a nossa reflexão em torno da noção de lugar, remetemo-nos ao conceito de ―lugar antropológico‖ definido por Augé (1992), em que o lugar seria uma ―construção concreta e simbólica do espaço, a qual não poderia dar conta das vicissitudes e das contradições da vida social, más à qual se referem todos aqueles aos quais ela atribui uma colocação, por humilde ou modesta que seja.‖ 80 (AUGÉ, 1992, p. 68). Neste sentido, o ―lugar antropológico‖, na medida em que é significativo para quem o habita, também é significativo para quem procura entendê-lo. Ele é simultaneamente princípio de sentido e princípio de

inteligibilidade (AUGÉ, 1992, p. 68), o que faz dele no âmbito da análise etnográfica um

elemento privilegiado para entender o comportamento dos atores que o frequentam.

80 ―(...) construction concrète et symbolique de l‘espace qui ne saurait à elle seule rendre compte des vicissitudes

et des contradictions de la vie sociale mais à laquelle se réfèrent tous ceux à qui elle assigne une place, si humble ou modeste soit-elle.‖ (AUGÉ, 1992, p. 68), tradução minha.

151 Se o ―lugar antropológico‖ é uma construção concreta e simbólica do espaço, não cabe tentar entender a realidade social desses atores como se produzida pelo espaço que eles frequentam. Ao contrário, o ―percurso cultural‖ dos signos instituídos pela ordem social é aquele que define o espaço social (AUGÉ, 1992, p. 68). Entendemos assim os espaços constituídos e observados no âmbito da etnografia como produtos de dinâmicas desencadeadas pela atividade turística na ilha.

O ―lugar antropológico‖ possui três características: identidade, relacionamento e história (AUGÉ, 1992, p. 69). Interessa-nos aqui o caráter histórico deste lugar, o qual, de acordo com o autor, se diferencia dos ―lugares de memória‖ definidos por Pierre Nora (NORA, 1989, p. 18). Dentro dos ―lugares de memória‖, o indivíduo se enxerga com respeito aquilo que o difere do passado, ou seja, sua autoimagem no presente é construída com base nos elementos/características que foram se modificando ao longo do tempo: ―a imagem daquilo que nós não somos mais.‖ 81

(AUGÉ, 1992, p. 71). Em contraposição, o habitante do ―lugar antropológico‖ não estabelece dicotomia nenhuma entre uma situação diferente no passado e no presente, uma vez que a sua vida faz parte de um contínuo histórico: ―o habitante do lugar antropológico vive na história, ele não faz história.‖ 82

(AUGÉ, 1992, pp. 71-72).

Desta forma, pode-se dizer que a transformação dos espaços de vida íntima não proporciona às famílias um olhar crítico sobre o presente. Na convivência com o turismo, elas agem espontaneamente e se adaptam às novas realidades da vida quotidiana. Apesar do fato de que o espaço testemunha transformações que fazem com que não sejam mais aqueles onde se vivia, as famílias continuam ali convivendo, sem atribuir ao espaço o valor de nostalgia relacionado com o conceito de ―lugares de memória‖. De acordo com a definição do ―lugar antropológico‖, as famílias que se encontram envolvidas com o turismo no âmbito de suas próprias casas podem ser vistas, dessa forma, como atores espontâneos do seu quotidiano. Neste aspecto, eles não se constroem no âmbito turístico, como exóticos. Pode-se dizer que a sua realidade é tornada exótica somente por meio do discurso sobre autenticidade ao qual são associados, mas que, não necessariamente, representa sua realidade. Assim, em seu convívio quotidiano, a dinâmica criada pelo turismo acaba tornando a sua interação com o turista em representação.

81 ―l‘image de ce que nous ne sommes plus.‖ (AUGÉ, 1992, p. 71), tradução minha. 82

―l‘habitant du lieu anthropologique vit dans l‘histoire, il ne fait pas d‘histoire.‖ (AUGÉ, 1992, pp. 71-72), tradução minha.

152 Nos capítulos anteriores, vimos como a vida das famílias amantanenhas se transforma em espetáculo para quem visita a ilha. Recorremos também ao conceito de Dean MacCannell que mostra como a realidade está apresentada de acordo com a ―autenticidade encenada‖. As zonas de frente e traseira de Goffman são complementadas por MacCannell nos espaços turísticos pela existência das zonas intermediárias articuladas ao redor de um contínuo dentro do qual, ao encenar a cultura em zonas traseiras, acabamos presenciando a criação de novas zonas de frente criadas espontaneamente pelas famílias que reagem à demanda do turista pelo desejo de autenticidade, mas também de comodidade. Assim, vimos como o espaço está em constante transformação, uma transformação diferenciada dependendo da origem social das famílias que propõem assim um cenário diferente nas suas casas. Daqui decorre a heterogeneidade dos espaços de interação existentes na ilha.

Mas até que ponto a interação social vivenciada leva a uma representação do outro que pode ser considerada estereotipada? É preciso enxergar a dimensão simbólica desta interação para entender o seu significado.

2.2. A representação das famílias diante dos turistas observadores e o

Documentos relacionados