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CAPITULO III. O NEOLIBERALISMO E AS NOVAS RURALIDADES EM

3.1 As discursividades do neoliberalismo e as novas ruralidades

3.1.1 O neoliberalismo como prática governamental

Buscando nossa coerência teórica, vamos analisar o neoliberalismo como uma discursividade a partir das elaborações conceituais que fizera Michel Foucault em seus cursos, as quais foram apresentadas no livro Nascimento da biopolítica. Precisa-se aclarar que para Foucault o neoliberalismo corresponde a um tipo de governamentalidade, isto é, uma racionalidade na prática de governar. Nesse sentido, o Estado não é considerado como se fosse uma essência, para Foucault a pergunta a fazer-se não é o que é o Estado, para ele o Estado é mais um correlato de certa maneira de governar, logo a pergunta de Foucault é por saber qual é essa maneira de governar que implica um tipo de racionalidade que vai apresentar ao Estado tanto como um Estado dado quanto um Estado por se construir, assim o Estado é menos uma realidade autônoma do que um tipo de racionalidade na prática governamental.

Levando em conta essa clarificação, no seguinte, nos propomos mostrar a maneira em que Foucault entende a conformação histórica do neoliberalismo como prática governamental, tendo primeiro que clarificar quais são para Foucault as diferenças existentes, em termos de governamentalidade, entre o liberalismo clássico que aparece na Europa desde meados de século XVIII e o neoliberalismo que começa a constituir-se como discursividade na segunda metade do século XX, primeiro na Alemanha e depois nos Estados Unidos.

Para Foucault, no sentido de prática judiciaria, o direito civil é constitutivo do Estado, mesmo que se apresente como se estivesse fora dele. Nesse paradoxo, o direito fica como o principio delimitador da soberania de Estado, e caso o soberano ultrapasse os limites impostos pelo direito, o governo poderá ser considerado como ilegítimo, isto é, um governo que não faz o que convêm, segundo leis naturais que vem de Deus ou duma história remota.

Com o aparecer do liberalismo como razão governamental, segundo Foucault por volta do meado de século XVIII, não vai ser mais o direito a forma de racionalidade que autolimita a

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razão governamental, e sim a economia política que não vai ter mais a posição de exterioridade que a racionalidade jurídica tinha, pois a economia politica criou-se como sendo parte dos objetivos que a razão governamental liberal estabeleceu, isto é, procurar o enriquecimento do Estado. Logo, o limite à razão governamental não vai ser mais um problema da legitimidade a partir de leis fundantes do Estado, senão dos efeitos dessa governamentalidade ao interior da soberania mesma. Por outras palavras, a natureza humana, que para o direito tem origem divina e leis que precedem ao Estado, no caso da racionalidade da economia politica ela decorre ao tempo que a prática da governamentalidade mesma, logo a prática governamental não vai poder fazer o que tem a fazer se não respeitar essa natureza que seria a outra face do seu agir.

Assim, para o liberalismo o problema já não é a legitimidade ou ilegitimidade da soberania, mas sim o sucesso ou fracasso da governamentalidade conforme seja respeitada ou atropelada essa natureza que agora decorre ao tempo da governamentalidade mesma. Para Foucault, essa razão do Estado vai encontrar o sentido do seu agir, mas também seu limite, num regime de verdade estruturado segundo o mercado, logo se o Estado agir conforme a sua natureza, assim mesmo permite ao mercado formar os preços, os quais passaram a serem chamados de verdadeiros.

Esses preços verdadeiros vão-se constituir como um padrão de verificação que vai possibilitar discernir nas práticas governamentais as certas das erradas, pois o poder público quando assegura a concorrência aos mercados e a formação natural dos preços, o faz sob o principio da utilidade, logo se o poder é útil ele é certo. Assim, se cria um espaço econômico que vai ser garantido pela prática governamental. No Estado liberal não será mais o direito e sim o crescimento econômico quem limite ou justifique o agir do Estado.

É o que, desde uma perspectiva fenomenológica, falando de ideologias, entendidas elas como formas de consciência parciais sobre o dado (os fenômenos) e não de discursividades em procura da hegemonia; Louis Dumont vai a assinalar a preeminência que tem o econômico na ideologia moderna como fundamento ontológico de uma ordem politica edificada pelo consentimento. Assim, para Dumont, o aporte que faz Adam Smith na busca por essa preeminência é não só reafirmar a atividade econômica do individuo que persegue seus próprios interesses como causa do progresso e a prosperidade das nações, mas também, e através de sua teoria dos sentimentos morais, fazer uma justificativa da atividade econômica como a única atividade humana que não precisa da simpatia, mas do egoísmo para atingir o

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bem comum. Desse jeito, para Dumont, Adam Smith logra emancipar o âmbito econômico da moral como antes John Locke tinha logrado apresentar o âmbito econômico como fundamento do politico, ao colocar a defesa da propriedade, o produto do trabalho individual,

como razão de ser da conformação por consenso da sociedade politica (Dumont, 2000). Para Foucault, as crises do liberalismo como prática governamental encontram-se ligadas às

crises da economia do capitalismo. Serão com as crises capitalistas das primeiras décadas do século XX que aparecera o intervencionismo do Estado na economia, mas, sobretudo, será depois da segunda guerra mundial, com as exigências de planificação y reconstrução para se estabelecer uma nova hegemonia na ordem mundial com a liderança de Estados Unidos, que as politicas de intervenção instalaram-se como prática governamental para atender tensões sociais produzidas pelo mercado e contestadas pelos trabalhadores desde o Estado mesmo, sob a forma de direitos sociais indispensáveis e para evitar tanto os fascismos quanto a ameaça do socialismo de Estado.

Tratava-se apenas de intervir a economia para que o Estado ajudasse com investimento no crescimento econômico (Foucault, 2008: 65). Na Europa o intervencionismo como prática governamental dá para a consolidação do chamado Estado de bem-estar que será predominante até 1973, ano em que a queda dos preços do petróleo e o rompimento do padrão ouro-dólar produzem mais uma crise na acumulação do capital.

Como já analisamos, nos países de América latina será o Estado desenvolvimentista, um Estado planejador da economia baseado nos empréstimos e nas ajudas internacionais, que se impõe hegemonicamente na procura de articular a região na nova ordem mundial do capitalismo.

Para Foucault, como resposta à crise do Estado de bem-estar, por volta da década dos setenta do século XX, aparece a prática governamental do neoliberalismo que apresenta diferenças significativas quanto ao liberalismo clássico. No neoliberalismo, sendo que o mercado ainda é o lugar de veridição da razão do Estado, a liberdade do mercado torna-se principio organizador do Estado e não ao contrário, como acontecia no liberalismo. “Não se trata apenas de deixar a economia livre. Trata-se de saber ate onde se vão poder estender as poderes de informação políticos e sociais da economia de mercado” (Foucault, 2008:160). Assim, segundo Foucault, a prática governamental neoliberal não vai governar para a economia, mas para a própria sociedade, “No fundo, ele tem de intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais [do mercado], a cada instante e em cada ponto da

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espessura social, possam ter o papel de reguladores” (Foucault, 2008:199). Procura-se uma sociedade submetida à dinâmica concorrencial como poder enformador da sociedade. Na procura disso, são dos eixos sobre os quais, segundo Foucault, age o neoliberalismo: a formalização da sociedade em base ao modelo da empresa e a redefinição da instituição jurídica e das regras do direito. “Um jogo de empresas regulado no interior de uma moldura jurídico-institucional garantida pelo Estado”. (Foucault, 2008: 238).

Em suma, na perspectiva de Foucault, o neoliberalismo faz uma crítica aos excessos do governo, mas também constitui o alvo de uma intervenção governamental permanente, só que não para restringir no prático as liberdades formalmente concedidas: concorrência aos mercados, poder de contratar, defesa da propriedade; mas para produzir, multiplicar e garantir essas liberdades que o sistema liberal necessita.

Na procura por multiplicar a forma empresa na espessura da sociedade, para o neoliberalismo o salário é renda, um rendimento do capital, e inversamente o capital é tudo o que pode ser renda futura. Desse modo, o trabalho comporta um capital, isto é, uma aptidão, uma competência que pode virar renda; assim, em relação a seu trabalho, o trabalhador passa a ser uma espécie de empresa para si mesmo, “sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de sua renda” (Foucault, 2008: 311). Nessa lógica, a sociedade seria não já constituída por indivíduos com interesses, mas por unidades empresas em concorrência.

Levando em conta que para o neoliberalismo é a concorrência do mercado e sua natural formação de preços o que deve ser salvo pela prática governamental, se aparecer o desemprego, ele não deve ser motivo para intervir o mercado, pois do que se trata não é atingir o pleno emprego, como no Estado de bem estar, mas incentivar a autogestão e o investimento em si mesmo para melhorar o rendimento do capital humano, isto é, melhorar aquilo que no individuo possa virar renda, num cenário onde a procura é pela concorrência. Um desempregado para o neoliberalismo “é um trabalhador em trânsito” (Foucault, 2008:191), alguém trabalhando em se mesmo para melhorar sua empregabilidade (Vasquez, 2005: 93). Por conseguinte, no neoliberalismo tem-se uma população flutuante entre a assistência e o emprego, uma perpetua mão de obra que se poderá usar ou enviar-se de volta para ser assistida caso fosse necessário, só que essas assistências não serão mais subsídios à população, senão concessões condicionadas ao rendimento de cada um e estipuladas de modo contratual.

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Para possibilitar a prática governamental neoliberal se precisa gerar processos de subjectivização na procura por estabelecer um Ethos social empresarial de acordo como os valores de autonomia, iniciativa própria, intrepidez, flexibilidade e polivalência (Vasquez, 2005). Trata-se de construir um sujeito que assuma tanto seu sucesso quanto seu fracasso social como sendo a sua própria responsabilidade. O capital humano e o empreendedorismo vão ser os novos valores sociais.