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CAPÍTULO II – UM APORTE CRIMINOLÓGICO NA COMPREENSÃO DA

2.1 O Porquê e os Parâmetros da Reflexão Criminológica

A despeito de minoritários posicionamentos diversos, é pressuposto desta reflexão o caráter científico da criminologia, embora a reflexão não se justifique por isso. Parte-se, assim, da assunção da criminologia como um saber empírico e interdisciplinar que se dedica à compreensão do desvio em todos os seus elementos: desviante, vítima, controle e reação social ao desvio a fim de oferecer um estudo sobre a gênese e a dinâmica que envolvem o crime ou desvio, quer como

um problema individual, quer como um problema social 90

Essa compreensão da criminologia como uma ciência de muitos objetos visa reafirmar o reconhecimento de um valor a todo saber criminológico, historicamente, produzido e, sobretudo, ressaltar a complexidade do estudo da criminalidade. Assim, tornam-se objeto da criminologia, não só o delito ou o delinqüente ─ alvos dos primeiros estudos criminológicos ─ mas a vítima, o contexto socioeconômico e cultural dos protagonistas e a reação social ou controle social, exercido através das definições do crime e dos processos de criminalização.

A interdisciplinaridade, que caracteriza o saber criminológico, integra este capítulo, sobretudo, pela presença dos estudos sociológicos, confirmando assim a condição de saber ─ síntese da criminologia em relação aos “diversos saberes

empíricos ou, pelo menos, não dogmáticos, dedicados ao problema penal.”91 Em

verdade, percebe-se essa interdisciplinaridade como de especial relevância na compreensão da criminalização da violência familiar contra a mulher, percepção que fica bastante evidenciada na seção destinada à criminologia feminista.

Destaca-se, desde logo, porém, que a despeito dessa condição de saber síntese, entende-se, que a criminologia não engloba a política criminal, enquanto saber não dogmático dedicado ao problema penal. Certamente, a criminologia crítica, sobre a qual se fala adiante, aproximou-se bastante da política criminal, ao ultrapassar o limite da observação fática, mas esta não é susceptível de ser

90 GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: uma introdução aos seus fundamentos teóricos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 28. Cf. FREITAS, Ricardo de Brito A. P. Ciências criminais e filosofia política: as possibilidades de diálogo interdisciplinar. In:

Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 63, ano 14, p. 188-230, nov./dez. 2006, p.

209-210.

91 FREITAS, Ricardo de Brito A. P. Ciências criminais e filosofia política: as possibilidades de diálogo interdisciplinar. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 63, ano 14, p. 188-230, nov./dez. 2006, p. 209-210.

abarcada pelo saber criminológico em razão do seu caráter eminentemente valorativo e não determinado pela observação empírica.

Certo, porém, é que não se pode é prescindir da integração entre esses saberes criminais, quer na ótica de um modelo integrado, quer na ótica de espaços

de integração entre esses saberes, como propõe Salo de Carvalho92, para o qual a

ideia da integração de saberes teria uma pretensão totalizante, o que o leva a defender não um modelo integrado de saberes criminais, mas espaços para integração entre esses saberes. Não se pretende aqui aprofundar a distinção, mas reafirmar a necessidade da integração sem subordinação. Assim, embora a principal referência histórica dessa integração seja o conceito de “ciência conjunta do Direito Penal” ou global de Franz von Liszt, pelo qual se tentava uma unidade coerente e

harmoniosa entre os saberes criminais,93 deve-se destacar que a opção deste

trabalho é mais próxima da perspectiva aprimorada do modelo integrado de saberes proposto por Alessandro Baratta.

Na concepção liszteana esses saberes, embora relativamente autônomos, obedeciam a uma hierarquia na qual a dogmática penal, por ser considerada a ordem de proteção do indivíduo perante o poder estatal, possuía primeiro e indisputado lugar. Logo, o papel destinado à criminologia e à política criminal era o

de “ciências auxiliares” da dogmática jurídico-penal.94 Embora von Liszt defendesse

que só o conjunto dessas ciências pudesse garantir o controle e o inteiro domínio do crime, defendia que era competência exclusiva da dogmática “determinar ‘o que’, ‘o

se’ e ‘o como’ da punibilidade.”95 Esse pensamento de Liszt refletia o modelo vigente

de estrito do juspositivismo e a herança liberal de maximização da segurança do

cidadão, defendendo um direito penal que interviesse ativamente na sociedade.96

Na perspectiva de Baratta, porém, a relação entre os saberes se constrói de modo distinto, sendo a ciência social, isto é, a criminologia, que deve orientar o momento técnico-jurídico: a preparação legislativa, interpretativa e dogmática, tendo

92 CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 40. 93 DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 93.

94 DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 94.

95 DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 94.

96 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 95.

em vista as opções político-criminais que os juristas conscientemente perseguem.97 Essa necessária consciência dos efeitos práticos das escolhas político-criminais, que são intrínsecas as opções dogmático-penais é também destacada por Zaffaroni, para quem um discurso jurídico penal desvinculado da política e indiferente a seus

efeitos sociais reais põe em risco a própria dogmática jurídico-penal como método.98

Portanto é, com base na necessidade de integração entre os saberes penais ─ em que o jurista deve ser, necessariamente, um cientista social consciente dos efeitos práticos de suas escolhas dogmático-penais e apto a fazer valorações políticas ─ que se julga necessário um estudo criminológico acerca da violência familiar contra a mulher, a fim de se defender com maior precisão um modelo de gestão para enfrentamento desse conflito.

Na perspectiva da integração de saberes aqui defendida, a criminologia, destaque-se desde já, possui dois atributos essenciais: a autonomia e a criticidade. O primeiro refere-se à independência dessa ciência em relação aos demais saberes criminais, o que implica que a criminologia não está circunscrita aos limites da norma jurídico-penal. Muñoz Conde e Hassemer, por exemplo, reconhecem que essa autonomia pode mesmo implicar numa ampliação do objeto da criminologia que passaria a se ocupar “da conduta desviada em geral e de suas formas de controle

social, formal e informal”.99 Sobre essa possibilidade de ampliação, deve-se afirmar

que parece ser mais adequada à tendência de compreender o delito como um ato semelhante a muitos outros decorrentes de situações conflituosas e, que por razões políticas não foram definidos como crimes.

O segundo atributo refere-se à criticidade, pois uma atividade, sendo científica, não pode prescindir da crítica, nesse caso, ao próprio objeto por excelência: o direito penal. Essa crítica nasce, necessariamente, da confrontação entre a regulação penal e a realidade, na qual se analisam a eficácia e também os

efeitos sociais das normas penais.100

Diante da exigência desses dois atributos e, principalmente, dos pressupostos adotados para se defender a proposta deste trabalho, o estudo criminológico poder-

97 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 156.

98 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En torno de la cuestión penal. Buenos Aires: IBdeF, 2005, p. 72. 99 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 9.

100 MUÑOZ CONDE, Francisco. HASSEMER, Winfried. Introdução à criminología. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.8.

se-ia iniciar a partir da chamada virada sociológica, iniciada no final do século XIX, quando os modelos sociológicos, que criariam o contexto para a criminologia crítica, começam a ganhar espaços num terreno em que predominavam as teorias positivistas bioantropológicas, as quais, deve-se admitir, careciam de autonomia e criticidade. No entanto, opta-se por incluir na reflexão uma abordagem sobre os clássicos e positivistas a fim de ressaltar observações como as seguintes: de que é tendência a ampliação do objeto da criminologia; de que cada teoria surge para explicar um problema particular de uma época precisa e, ainda; de que essas teorias

espelham as conveniências dos contextos em que surgem.101

Também, para que se possa compreender o valor de uma teoria, é necessária a contraposição dela à outra ou às outras que se proponham a explicar o mesmo objeto ou objetos correlacionados. Assim, para que se compreenda o valor do paradigma da reação social para a criminologia, em especial aquele que integra a criminologia crítica feminista, faz-se necessário abordar as teorias que enfatizam aspectos individuais, bioantropológicos ou decorrentes dos defeitos de socialização, principalmente para que se possa constatar que o discurso oficial do direito penal ainda é fundado, primordialmente, na criminologia positivista.

É importante registrar que, embora a virada sociológica tenha como principal marco teórico, inclusive na apresentação deste trabalho, a sociologia criminal de Durkheim, desenvolvida em fins do século XIX, estudos sociológicos do crime já haviam sido anteriormente empreendidos. Desde as teorias de Ferri, focadas na gênese do crime, sobre o qual se fala adiante, que identificava entre as causas antropológicas e físicas do delito, também motivações sociais; até teorias que anteciparam métodos específicos da sociologia criminal contemporânea, como a escola franco-belga. Os autores dessa escola, por exemplo, buscavam estudar a

distribuição geográfica diferencial de taxas e de tipos de crime102, que seriam mais

adiante retomadas pelos estudos da sociologia criminal americana. Além da França e da Bélgica, a Grã-Bretanha e a Alemanha também conheceram, entre fins do século XIII e meados do século XIX, alguns estudos de viés sociológico, nos quais

101 ROBERT, Philippe. Sociologia do Crime. Trad. de Luis Alberto Salton Peretti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p.123.

102 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 21.

investigavam, por exemplo, a relevância de fatores educacionais, econômicos

políticos e morais na criminalidade.103

Tais estudos, porém, foram suplantados pela tomada do poder do

Lombroso104, isto é, pela perspectiva positivista de base bioantropológica, a seguir estudada, não tendo, a despeito de seu valor, maiores repercussões político- criminais, logo não foram alvo de estudo na pesquisa aqui esboçada.

Não sendo possível, nem conveniente abordar aqui todas as teorias criminológicas, far-se-á uma digressão sobre as raízes do paradigma etiológico- explicativo, sobretudo nas teorias bioantropológicas, para em seguida serem apresentadas as contribuições do modelo sociológico, em especial quando se passa a investigar também a reação social, que são bases para a criminologia feminista, que é o cerne deste capítulo.

Destaque-se aqui a opção consciente de não se tomar como objeto de estudo as teorias próprias do modelo psicológico e psicanalítico, com ressalvas a teoria do vínculo social ou do controle, dado o método ser sociológico, como se verá. Embora se reconheçam o valor científico dessas teorias e uma tendência contemporânea de aproximação entre os campos do direito e da psicanálise, entende-se inoportuno enfrentá-las, uma vez que a criminologia feminista não as tem como fundamento, antes lhe são caras as teorias de cunho sociológico e, em especial, a criminologia crítica.

2.2 A Gênese da Criminologia: entre o livre arbítrio e os determinismos