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O positivismo científico: a foraclusão do sujeito e o direito sem-fundamento

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 163-167)

O POSITIVISMO JURÍDICO COMO ATO DISCURSIVO E CONDIÇÃO DA CRÍTICA NA RAZÃO JURÍDICA

4.1 DUAS VERTENTES DO POSITIVISMO JURÍDICO E UM CAMPO DISCURSIVO

4.1.2 O positivismo científico: a foraclusão do sujeito e o direito sem-fundamento

A jurisprudência dos conceitos do direito alemão do século XIX não é um movimento unívoco. A construção teórica e sua fundamentação apresentam grande variação. O ideal científico, que converge nos juristas alemães dessa época, é, entretanto, um fator comum e característico da jurisprudência dos conceitos. A preocupação é com a construção do sistema jurídico como sistema científico.

O sistema não é um simples conjunto ou reunião de elementos, no sentido de um aglomerado desordenado. Ao contrário, ele pressupõe a idéia de uma ordenação, segundo critérios que lhe garantem unidade. Aqui, entretanto, o princípio ordenador e unificador, condição de uma representação (e)unívoca, não se confunde com a vontade ou intenção do legislador, como no positivismo legal, mas tem um caráter propriamente metódico, que remete ao que Christian Wolf entendeu como nexus veritatum42.

Isso faz do sistema um sistema fechado, dotado de uma unidade imanente e regulado pelos princípios da lógica formal. O sistema, que supostamente dispõe de uma identidade contínua, essencial e sem contradições, com fundamento na natureza do homem, se supõe assim capaz de garantir a correção das decisões e a perfeição formal, “[...] através de uma dedução exaustiva dos princípios de direito natural a partir de axiomas superiores até os mínimos detalhes [...]”43, segundo o esquema euclidiano da demonstração more geometrico.

A partir de Wolf, portanto, a noção de sistema se determina em duas direções: de um lado, reporta-se preponderantemente ao método sintético, num desvio em relação ao método analítico da ciência moderna, enfatizado por Descartes44; de outro, sofre um desdobramento e detalhamento que vai permitir a sua passagem à jurisprudência dos conceitos.

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FERRAZ JR., A Ciência do Direito, 1980, p. 23. Para uma articulação do que estamos discutindo com A Ordem do Discurso de Foucault (1998, p. 29 et seq., grifos do autor), destaco especialmente a distinção entre “[...] o princípio do autor [que] limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu [...]” e o que Foucault chama de disciplina.

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Cf. WIEACKER, História do Direito Privado moderno, 1993, p. 362. 44

Sobre isso, consultar, por todos, Koyré (Considerações sobre Descartes, 1992, p. 39 et seq.) e Loparic (Descartes heurístico, 1997, p. 129 et seq.). Retomaremos essa questão nos Capítulos 6 e 7desta tese.

O caráter sintético do sistema deve-se à relação do jusracionalismo com o iluminismo, que na Alemanha se vinculou ao absolutismo ilustrado. O direito natural se transformou em uma teoria dos deveres morais extraídos dedutivamente da natureza do homem, realizada através do direito positivo, e com uma função político-social, ou seja, promover o bem-estar do cidadão. O direito positivo participa assim do mecanismo sistêmico e serve à legitimação do poder, no momento mesmo em que se faz instrumentalizado por uma moral categórica, vinculada à razão de estado, estruturante do funcionamento do estado e do direito — e é por isso que a simples denúncia de seu caráter insano, ilimitado, absoluto, não funciona, senão como anteparo à radicalidade e ao sem-sentido da voz supereuóica45.

É nesse contexto que o pensamento sistemático de Christian Wolf se estendeu à ciência do direito através da transformação dos princípios jusnaturalistas em conceitos jurídicos fundamentais, em especial os de sujeito de direito, autonomia da vontade e negócio jurídico. Esses conceitos não são propriamente novos, mas a função sistemática que passam a exercer faz da ciência do direito uma teoria dogmática, com ponto de partida no conceito jurídico sintético que, logicamente encadeado a conceitos de menor generalização, permite, conforme o positivismo científico, a demonstração more geometrico e a conseqüente aplicação do direito positivo. Isso supostamente garante a legitimação do poder, ou seja, a correção da decisão jurídica, resultado da operação lógica da subsunção, que se realiza através do raciocínio silogístico. A representação que se tem do juiz é, pois, a de um operador neutro. O sistema jurídico é, por sua vez, representado como um sistema fechado e pleno, sendo a lacuna entendida como uma falta suscetível de integração desde dentro do sistema, através da construção conceitual.

Desse modo, pode-se supor que o positivismo científico permite o conhecimento jurídico e propicia uma nova forma de codificação — diferente daquela do positivismo legal, justamente por dispor de uma parte geral com a função de assegurar a unidade do sistema, entendido como sistema interno46. Ele realiza o controle da historicidade do direito que, como se vê dos próprios desdobramentos do historicismo, é condição do pensamento jurídico- sistemático. A Escola Histórica não se opõe, com efeito, ao movimento de sistematização do

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A propósito disso, citamos a seguinte afirmação de Lacan (O aturdito, 2003e, p. 497, grifo do autor): “É sabido que o termo absoluto tem obcecado o saber e o poder — derrisoriamente, convém dizê-lo: nele ao que parece, persistia uma esperança, representado pelos santos em outros contextos.”

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direito, mas o possibilita47. Nesse sentido, Savigny é, se não um integrante, um precursor da jurisprudência dos conceitos:

[...] o que veio a influir mais tarde foi, além da perspectiva histórica, a idéia de sistema como sistema ‘científico’ construído a partir de conceitos jurídicos – idéia que serviu de ponto de arranque para a ‘Jurisprudência dos conceitos’, em que não deve incluir-se, ou apenas com reservas, o nome do próprio SAVIGNY.48

A herança de Wolf, que repercute na Escola Histórica e alcança Windscheid49, tem sua realização máxima na pirâmide dos conceitos de Puchta, que consolida o desenvolvimento no sentido de uma jurisprudência dos conceitos, jurisprudência formal50.

O direito popular de Savigny é transformado e consciencializado pelo ideal científico. Agora, além de não mais se tratar de um nexo orgânico dos institutos, mas de um nexo lógico que permite a interligação das proposições jurídicas de um povo, a relação entre as fontes do direito preconizada por Savigny é reelaborada, para enfatizar o direito da ciência, direito dos juristas51. A ênfase é colocada no nexo lógico e científico — nexo entre conceitos.

O sistema jurídico é então um sistema fechado, informado pelo dogma da subsunção52. A

lacuna não é senão uma aparência53. A fonte de conhecimento jurídico não é mais orgânica, in-consciente, mas efeito de uma operação lógico-científica do jurista e, pois, plenamente sistemática. Ou como diz Puchta:

É missão agora da ciência reconhecer as proposições jurídicas no seu nexo sistemático, como sendo entre si condicionantes e derivantes, a fim de poder seguir- se a sua genealogia desde cada uma delas até ao princípio comum e, do mesmo modo, descer do princípio até ao mais baixo dos escalões. Neste empreendimento, vêm a trazer-se à consciência e à luz do dia proposições jurídicas que, ocultas no espírito do direito nacional, não se tinham ainda exprimido, nem na imediata convicção e na actuação dos elementos do povo, nem nos ditames da própria lei escrita, ou seja, que patentemente só se vêm a revelar enquanto produto de uma dedução da ciência.54

A genealogia das proposições jurídicas defendida por Puchta é, pois, uma genealogia supostamente científica, resultado de uma dedução materialmente orientada. É isso que Puchta quer significar com sua pirâmide conceitual. Construída nos termos da lógica formal,

47

Como diz Ferraz Jr. (Introdução ao estudo do Direito..., 1988, p.74, grifo nosso): “[...] a Escola Histórica aumentou o abismo, entre teoria e práxis, que vinha do jusnaturalismo, com influências até o dia de hoje no ensino universitário.” (grifamos para marcar que essa problemática remete ao discurso universitário lacaniano). 48

Cf. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 1989, p. 18. 49

Cf. WIEACKER, História do Direito Privado moderno, 1993, p. 427. 50

Ibid., p. 363; 426; 470; 491-492. 51

Cf. HABERMAS, Direito e democracia, 1997, v. II, p. 243-244. 52

FERRAZ JR., A Ciência do Direito, 1980, p. 33-4. 53

Ibid., p. 33. 54

ela estabelece relações de fundamentação e derivação entre os conceitos, de tal modo que um conceito inferior se subsume a um conceito superior, que é determinante por seu conteúdo mais abrangente.

Se a noção de pirâmide aponta para a noção de um conceito supremo, é porque deve existir um conceito de cujo conteúdo se deduzem todos os demais. Para Puchta, tal conceito, que encima a estrutura piramidal, é dotado de um conteúdo superior, porque procede, se fundamenta na filosofia do direito, ou seja, corresponde a um a priori filosófico.

O direito, portanto, deve corresponder, segundo Puchta, a um conteúdo mínimo. Isso vale para o direito positivo, já que a decisão do legislador não é autônoma na definição do que é o Direito. E vale para o direito científico, cuja noção-chave de sujeito de direito (deduzida daquele a priori jusfilosófico) tem um sentido ético-substancial. No sistema de Puchta, o sujeito de direito deve ser, com efeito, entendido eticamente como pessoa e, nesse sentido, dotado de um direito subjetivo pessoal, definido como o poder jurídico sobre um objeto – um poder jurídica e eticamente fundamentado55.

A partir dessa noção de sujeito de direito, Puchta constrói o seu sistema conceitual e acede ao direito positivo. Mas esse movimento de cima a baixo — da filosofia do direito ao direito positivo, através da mediação conceitual — deixa transparecer um limite à operação do jurista: “[...] a substância ética do conceito-chave se reduz progressivamente a tal ponto que vem a tornar-se, em último termo, irreconhecível.”56.

Trata-se de um limite, de uma falha constitutiva do sistema de Puchta e do seu projeto de garantir significação ao direito. Ela é entendida, entretanto, como uma falta excepcional e perfeitamente superável: ela não invalida a representação do sistema como sistema ético-substancial, ou a pretensão de conhecimento total que o informa. Não inaugura um questionamento radical dos efeitos do sistema na realidade, mas reforça e reproduz a demanda de conhecer. Isso não significa dizer que o sujeito de direito é o sujeito do conhecimento, senão que ele se inscreve como sujeito foracluído. Ora, isso introduz a dimensão do gozo, fazendo do sistema jurídico umsistema não simplesmente descritivo, mas contrafático57, que serve à sustentação da função legitimante da ciência e do operador do

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PUCHTA apud LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 1989, p. 23. 56

Cf. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 1989. 57

Como vimos na Introdução, Luhmann relativiza a distinção entre expectativas cognitivas e normativas, o que possibilita a questão do contrafático não apenas em relação às normas, mas também na ciência em geral, inclusive a ciência do direito. Para uma articulação disso com a psicanálise, ver, sobretudo, Introdução e Capítulos 5, seção 5.3, e 8, seção 8.2.3.

direito na relação com o poder, marcada, aliás, pela extensão da jurisprudência dos conceitos ao direito público58.

Essa função legitimante se repete com a modificação do fundamento jurídico, ou seja, com a passagem do racionalismo ao empirismo, já que essa operação desconhece — um desconhecimento estruturante do funcionamento do campo do direito — que a razão jurídica

é, como vimos, sem-fundamento. A oposição entre racionalismo e empirismo, ou entre

dedutivismo e indutivismo, é interna à jurisprudência dos conceitos, que se situa justamente nesse registro categórico de alternativas excludentes. Não é suficiente, pois, trocar o fundamento ético-jurídico do sistema de Puchta por uma proposta científica, com fundamento empírico (Jhering) ou psicológico (Windscheid), já que o resultado é a reprodução da razão jurídica, enquanto razão categórica.

Ora, isso coloca a questão de como operar a crítica e a modalização da razão jurídica. Veremos a seguir que há dois caminhos possíveis. Um primeiro caminho relaciona-se com a crítica do direito, uma crítica da ideologia jurídica... para sair do positivismo jurídico. Essa crítica, que ainda procede sinteticamente, desconhece, entretanto, que ela não é neutra, mas ideológica, ou melhor, ela se inscreve como via de gozo. E desconhece ainda que para sair... há de se entrar59.

É desse modo que procederemos à crítica na razão jurídica... para inscrição discursiva do positivismo — assim como de sua crítica e demais discursos jurídicos — no dispositivo analítico, como condição da modalização da/na razão jurídica.

No documento O DIREITO COMO CAMPO DE GOZO E O LAÇO SOCIAL (páginas 163-167)