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2. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMONIO CULTURAL DAS FAMÍLIAS

2.2. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E

Embora a metodologia do INRC tenha sido tomada como referencial teórico, não estava previsto no Programa a sua utilização, nem o envolvimento oficial do IPHAN, o que faria com que o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural mantivesse as mesmas características de outros implementados em contextos de construção de usinas hidrelétricas, tais como Nova Ponte, Aimorés e Itá. No âmbito do licenciamento desses empreendimentos foram realizados levantamentos detalhados dos aspectos culturais dos municípios e comunidades afetadas e desenvolvidas ações junto às populações, tais como implantação de museus com a história das comunidades atingidas, como no caso de Itá e Nova Ponte, ou elaboração de livros sobre o histórico da ocupação na região, como no caso de Aimorés. Cabe ressaltar que foram utilizadas as metodologias mais atuais à época de implantação de cada um deles. Em Aimorés, por exemplo, a utilização dos aspectos ligados aos bens de natureza imaterial foi uma tônica importante do trabalho desenvolvido.

Entretanto, com a assinatura do Termo de Acordo, em 2002, foi previsto em seu Anexo III (Programa de Reconhecimento, Preservação e Valorização do Patrimônio Cultural das Comunidades Impactadas pela UHE Irapé), na página 42, que

A implementação deste Programa seguirá as orientações do IPHAN para a preservação do patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico, e de bens móveis e, no tocante ao patrimônio imaterial, deverá seguir o marco teórico e a metodologia desenvolvida pelo IPHAN para implementação do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, consolidado no Manual de Aplicação do INRC e respectivos questionários e fichas.

A CEMIG entrará em contato com o IPHAN/Brasília para recebimento das instruções e material que se fizerem necessários, devendo esclarecer às comunidades impactadas e seus representantes os objetivos a serem atingidos e a metodologia a ser utilizada, de modo a incorporar sugestões e desenvolver um trabalho participativo desde o início do Programa. Atenção especial deverá ser dada a participação permanente de membros das comunidades impactadas nos trabalhos de campo a serem realizadas. (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2002).

O Ministério Público Federal, que contava com uma assessoria em antropologia para o acompanhamento dessa e outras questões da UHE Irapé, inseriu, então, uma nova característica ao projeto, na medida em que demandou que fosse utilizada outra metodologia, diferente daquela já prevista no âmbito do Programa. Entretanto, manteve a mesma itemização original, no tocante aos projetos e subprojetos, do Programa de Preservação do

Patrimônio Cultural, o que desencadeou uma série de problemas durante sua execução, porque as metodologias, a equipe e os objetivos específicos eram diferentes. Além disso, o tempo entre a contratação do programa e o acesso ao Inventário Nacional de Referências Culturais foi dessincronizado, tal como será relatado a seguir.

Em primeiro lugar, o acesso ao Manual de Aplicação do INRC somente pôde ser feito após assinatura de um Termo de Compromisso entre a CEMIG e o IPHAN, por norma do próprio IPHAN. Para que fosse assinado este documento, foi necessário, por sua vez que a CEMIG contratasse a empresa responsável pela condução dos trabalhos. Esse processo de contratação se deu utilizando a estrutura do Programa de Preservação proposto no PCA e acrescentando-se as novas demandas postas no Termo de Acordo, correspondente ao trecho apresentado acima. A empresa vencedora atendeu aos itens propostos no edital.

Foi apresentada a seguinte equipe técnica para a execução do Programa, por formação:

• dois pesquisadores com comprovada experiência em patrimônio (nesse caso, foram apresentados um arquiteto, funcionário do IPHAN e um historiador, ex-funcionário do IEPHA)

• um cinegrafista

• um diretor de documentários • um musicólogo

• um arquiteto restaurador

• um auxiliar para levantamento cadastral • três fotógrafos

• um desenhista

• um auxiliar para as oficinas de educação patrimonial • um transcritor

• um cartógrafo

• um profissional experiente em educação patrimonial. • um sociólogo. • um engenheiro civil • um engenheiro eletricista • um paisagista • um museólogo • um maqueteiro

• um restaurador de bens móveis

Após a assinatura do Termo de Compromisso entre CEMIG e IPHAN, foi repassado o Manual de Aplicação do INRC, que deveria ser lido previamente e discutido durante a realização de um treinamento a ser conduzido pelo IPHAN, para capacitação dos técnicos executores do projeto.

A leitura deste documento suscitou uma série de questionamentos por parte da equipe da CEMIG, os quais estavam relacionados às diferenças entre o previsto no Manual do INRC e o estabelecido e contratado no Programa de Preservação do Patrimônio Cultural de Irapé. Durante este treinamento, foram discutidos estes problemas, que apresento a seguir, e tomadas decisões, entre os técnicos do IPHAN e da CEMIG, para a continuidade do Programa.

O primeiro problema vinha expresso na Introdução do próprio Manual de aplicação do INRC, o qual afirmava que esta metodologia não se aplica em casos de emergência, tais como comunidades impactadas por empreendimentos. Essa afirmação, se tomada a rigor, já inviabilizaria a utilização deste instrumento no trabalho a ser desenvolvido em Irapé. Entretanto, a utilização da metodologia naquele caso era de interesse das duas instituições, motivo pelo qual o trabalho seguiu adiante. Isto porque, por um lado, segundo entrevista realizada com a técnica da CEMIG, o empreendedor tinha o compromisso, expresso no Termo de Acordo, de utilização da metodologia, sob a pressão das penalidades previstas naquele instrumento. Por outro lado, para o IPHAN, esta era uma oportunidade de testar possibilidades outras da metodologia, uma vez que as demandas para sua utilização em comunidades que se encontravam em situação semelhante estavam aumentando. Assim, foi estabelecido um acordo entre as duas instituições de aplicar a metodologia naqueles aspectos em que fosse pertinente. Além disso, acordou-se que seria cumprida, apenas, a primeira etapa da metodologia que era a do “Levantamento Preliminar”.

Esse foi um outro problema a ser enfrentado, a saber: os objetivos e metodologia propostos eram distintos entre o Programa de Preservação e o INRC. No Programa de Preservação do Patrimônio Cultural não estava prevista a realização de um levantamento bibliográfico, que corresponde ao “Levantamento Preliminar” da metodologia do IPHAN. Por outro lado, segundo a metodologia do IPHAN, o levantamento deve ser executado para um único bem, em nível de aprofundamento, e não, conforme seria executado pela CEMIG, em termos de um levantamento censitário em toda a Área Diretamente Afetada. Segundo a fala de uma das técnicas do IPHAN durante o treinamento realizado, esta questão foi equacionada entre as duas instituições como: “o compromisso é para a realização do levantamento preliminar, o que for feito a mais, em termos de levantamentos, é lucro”.

Além disso, havia uma grande parte do Programa que não estava focado nos “aspectos imateriais”, mas nos aspectos materiais daquela região, por meio dos inventários de bens edificados e de bens móveis. Ficou acordado que este levantamento somente seria aproveitado para o Inventário de Bens de Natureza Imaterial naqueles casos em que os bens imóveis

inventariados se enquadrassem no conceito de “lugar”, tal como previsto na metodologia do INRC; os outros seriam considerados em um levantamento à parte.

A composição da equipe técnica também foi uma das questões debatidas durante o treinamento. O INRC prevê que o coordenador dos trabalhos seja um antropólogo. Como o programa já havia sido contratado e o acesso ao Manual de Aplicação só se deu após a contratação, o programa já contava com um coordenador, um arquiteto, com vasta experiência em patrimônio material. Foi feita exigência por parte do IPHAN de que fosse contratado um antropólogo. Essa contratação nunca aconteceu tendo assumido a coordenação dos trabalhos referentes ao patrimônio imaterial um historiador, que já fazia parte do projeto e era o responsável pela realização de entrevistas de História Oral. Na prática, o projeto acabou tendo dois coordenadores, um para o patrimônio material e outro para o patrimônio imaterial.

Outro aspecto referente à equipe é que o INRC prevê que a execução seja feita por pessoas da própria comunidade. Isso não foi conduzido dessa maneira, uma vez que o escopo contratado pela CEMIG já contava com um número mínimo de bens e manifestações a serem inventariados e entrevistas a serem realizadas, bem como o perfil da equipe técnica, itens necessários para uma contratação de serviços, em que se faz o dimensionamento do trabalho e do preço a ser pago. As pessoas da comunidade foram contatadas para prestar apoio na identificação dos bens e como informantes-chave para a obtenção de informações sobre os bens culturais da região. Esta definição havia sido estipulada no âmbito do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, em sua versão original, antes do Termo de Acordo. Ficou acertado que o trabalho seria executado com a equipe que havia participado do treinamento e conforme previsto no Programa de Preservação do Patrimônio Cultural.

Houve, ainda, uma resistência, por parte da equipe contratada ligada ao patrimônio material, em relação aos técnicos do IPHAN e ao INRC. Segundo os técnicos da empresa contratada para executar o trabalho, houve certo boicote ao treinamento conduzido pelo IPHAN por terem dúvidas quanto à eficácia do instrumento do IPHAN, pressupondo-se que essa seria mais uma ação do IPHAN que não surtiria efeito. Neste ponto, há uma demonstração da postura de alguns profissinais em relação às políticas implementadas pelo governo como não passíveis de crédito, principalmente daqueles ligados ao patrimônio considerado de “pedra e cal”, no que diz respeito às questões de tombamento e de continuidade das ações de proteção ao patrimônio.

Esses fatores fizeram com que a metodologia de trabalho preconizada no Manual do INRC não fosse seguida tal como proposta, porque o coordenador não possuía o perfil designado, a equipe não contava com pessoas locais e mesmo o preenchimento das fichas

referentes aos bens imateriais não foi executado como estabelecido na metodologia. Durante o treinamento foi dito que as fichas do INRC deveriam ser preenchidas tão logo fossem coletadas as informações ou realizado os inventários (ao final do dia de trabalho). Como os profissionais não consideraram este aspecto metodológico, as fichas foram preenchidas após o término de todo o levantamento, com aqueles registros e informações armazenados nos documentos resultantes desses levantamentos. Na realidade, nem os roteiros de entrevistas seguiram o estabelecido nas fichas do INRC.

Nota-se, portanto, que embora o inventário proposto pelo Programa de Preservação do Patrimônio Cultural estivesse em consonância com os pressupostos teóricos preconizados pelo PNPI, a metodologia utilizada, assim como os objetivos finais diferiam consideravelmente. Em primeiro lugar, porque ainda que o objetivo do PNPI seja de realizar inventários dos bens de natureza imaterial, seu foco acaba por se estabelecer naqueles bens imateriais passíveis de registro, os quais se tornam os alvos das políticas preservacionistas e de ação do poder público. Estes bens considerados “registráveis”, devem, dadas as próprias características das políticas públicas, possuir uma representatividade tal que justifique seu registro. Esse não era o caso dos bens a serem inventariados em Irapé, uma vez que o objetivo do programa era um levantamento exaustivo e não voltado para o seu registro.

Por outro lado, essas manifestações, que eram tradicionais naquela região, e o modo de vida característico daquelas populações se encontravam em risco de desaparecimento dado que todas as condições materiais necessários para sua realização seriam alteradas, quando da realocação das comunidades. Por isso mesmo, o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural de Irapé tinha como objetivo um levantamento que permitisse ampliar o conhecimento acerca das práticas tradicionais aí realizadas sem o foco no registro, mas como processo de coleta de informações, as quais deveriam ser utilizadas pelos municípios de entorno e pelos Centros de Referência e Memória, em processos de educação patrimonial e de apropriação dessas informações por parte das comunidades em seu processo de remanejamento.

Neste ponto, há um aspecto que merece ser ressaltado, qual seja: a realização do inventário não se coloca ela mesma como ação suficiente ao processo de preservação desses bens. Ao se analisar as estruturas de trabalho propostas, tanto da metodologia do IPHAN quanto a da CEMIG nota-se que há o reconhecimento de que o processo de preservação dos bens culturais requer ações práticas posteriores ao processo de inventário e de registro (no caso do IPHAN). Estas ações são tão diversas quanto podem ser as comunidades e os bens registrados. Por exemplo, em algumas comunidades preservar determinados “fazeres

tradicionais” significa garantir a existência de determinado recurso natural utilizado nesses

processos; em outras, implica em auxiliar em processos de educação e capacitação de elementos mais jovens da comunidade naqueles referenciais tradicionais que somente os mais velhos possuem. Para o IPHAN, essas ações são desenvolvidas após o registro do bem imaterial, que ao ser registrado passa a ser alvo de políticas de preservação. Para a CEMIG, essas ações ocorreriam após o término do levantamento com o desenvolvimento de ações de educação patrimonial, a serem realizadas nos dois Centros de Referência e Memória construídos no âmbito do projeto, na comunidade de Porto Coris e próximo ao eixo da usina.

2.3. A intervenção dos antropólogos e o Inventário Nacional de Referências Culturais: