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O Relacionamento Entre os Órgãos a Partir da um Modelo Constrastante

2.3 O RELACIONAMENTO ENTRE O CSNU E O TPI: TRÊS MODELOS POSSÍVEIS

2.3.2 O Relacionamento Entre os Órgãos a Partir da um Modelo Constrastante

Nesse segundo modelo, a ideia do TPI como uma ferramenta do CSNU vai de encontro com a preocupação existente de que o TPI deveria ser uma jurisdição independente e com a necessidade da separação entre as esferas jurídica e política126. Ruiz Verduzco127 chama esse modelo de ‘autonomia institucional’, mas em razão dos contrastes entre as decisões políticas do CSNU interferindo no funcionamento do TPI e a necessidade de autonomia institucional do TPI, esse trabalho denomina esse modelo de “constrastante”.

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122 ONU. United Nations Diplomatic…, p. 95, §59.

123 Ibid., p. 212, §9.

124 RUIZ VERDUZCO, Deborah. op. cit, p. 32.

125 Idem. 126 Ibid., p.33. 127 Idem.

Segundo a autora, as primeiras negociações em torno daquilo que veio a ser o TPI já destacavam a necessidade de uma separação entre as missões e operações do futuro tribunal e do CSNU. Para a Comissão de Direito Internacional, que já preparava um projeto de Estatuto, a manutenção da paz e da segurança internacional era incompatível com a instituição de procedimentos criminais128.

Essa visão, no entanto, sofreu mudanças após o estabelecimento do TPII e do TPIR, uma vez que se baseavam na convergência entre a justiça penal internacional e a manutenção da paz e da segurança internacional129. Apesar de uma nova visão que reconhecesse uma ligação entre o campo da justiça penal internacional e o papel do CSNU, desde o início das negociações da Conferência de Roma já se partia do pressuposto de que o TPI seria um tribunal autônomo e independente da ONU130.

Nas negociações do Estatuto de Roma, a concepção do relacionamento entre o CSNU e o TPI a partir desse modelo fica clara a partir da oposição de Estados como a Índia. O Estado deixou de assinar o Estatuto porque entendeu que: i) o TPI deveria ser inteiramente imparcial e independente de processos políticos131; ii) não existiria base legal que justificasse a possibilidade do CSNU de remeter situações ao tribunal ou que pudesse vetar sua ação; iii) o papel do CSNU em acionar a jurisdição do tribunal seria contra o princípio da soberania e da igualdade perante à lei; iv) o poder de remessa era desnecessário, uma vez que, diferentemente de quando os tribunais ad hoc foram criados, existiria agora um tribunal de caráter permanente de forma que a ação do CSNU nesse sentido seria desnecessária. Na mesma linha, um grupo de Estados conhecidos como Países Não Alinhados132 declarou antes da Conferência de Roma que priorizariam a ideia do TPI enquanto uma jurisdição independente de influências políticas de qualquer tipo, incluindo das Nações Unidas e, particularmente, do seu Conselho de Segurança133.

Como visto anteriormente, o mecanismo de adiamento de investigações ou procedimentos criminais, especialmente na sua primeira versão apresentada pela CDI, foi _______________

128 Idem. 129 Idem.

130 WHITE, Nigel; CRYER, Robert. op. cit., p. 457. 131 ONU. United Nations Diplomatic.., p. 81, §51

132 Grupo de Estados que fazem parte de um movimento iniciado na Conferência de Bandung em 1955 e que

inicialmente tinha como objetivo criar um espaço próprio para esses países “não-alinhados” no mundo bipolar da época e promovendo a coexistência pacífica. O movimento conta com países como a Índia, o Egito e a África do Sul. Sobre o assunto: BISSIO, Beatriz. Bandung, não alinhados e a mídia: o papel da revista “cadernos do terceiro mundo” no diálogo sul-sul. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, v.4 n.8, p. 21 - 42, 2015.

altamente criticado por abrir caminho para a interferência política do CSNU na atuação do TPI. No entanto, até mesmo o mecanismo de remessa de situações, que era razoavelmente aceito pelos Estados que participaram da Conferência de Roma, foi questionado por aqueles que partiam desse modelo. Delegações como as mencionadas acima e diversos autores se opuseram às remessas por argumentar que o mecanismo iria submeter o funcionamento do TPI a decisões de um corpo político e, portanto, minar a independência do tribunal e sua credibilidade134. Para além disso, entendia-se que em decorrência dos procedimentos de participação e votação do CSNU, as remessas só seriam utilizadas contra Estados que não fizessem parte do P5 (em razão do veto) e o mecanismo acabaria por propagar profundas desigualdades entre os Estados, o que seria injustificável no processo de acionamento de uma jurisdição penal internacional135.

Além dos Estados que se opuseram fortemente contra a concessão de prerrogativas ao CSNU, vários autores criticavam essa possibilidade, pois entendiam que ainda que fosse permitido pelo CSNU a remessa de situações, baseado em um interesse de manter a paz e a segurança internacional, isso não mudaria o fato do CSNU ser um órgão no qual, em decorrência a seus procedimentos de participação e votação, se propagavam profundas desigualdades entre Estados136. Para além disso, nota-se que apesar do poder que os cinco membros permanentes do CSNU possuem no regime estatutário do TPI, em decorrência do seu poder de veto, apenas dois países do P5 (França e Reino Unido) são Estados-parte do ETPI137. Nesse sentido, Aloisi138 aponta que “o poder de remessa dado ao CSNU veio com um alto custo para a legitimidade e o funcionamento da justiça internacional”.

Uma das maiores preocupações daqueles que entendem a relação entre ambos os organismos a partir desse modelo é o fato de que um corpo político agindo em uma jurisdição como o TPI poderia acabar com a confiança na imparcialidade e independência do tribunal, consequentemente prejudicando a sua credibilidade139. De fato, acredita-se que “tecnicamente, cortes internacionais são mais competentes para criar e interpretar direito internacional,

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134 YEE, Lionel. The International Criminal Court and the Security Council. In: LEE, Robert. The International

Criminal Court: The Making of the Rome Statute. Haia: Kluwer, 1999, p. 146 - 147.

135 GARGIULO, Pietro. op. cit., p. 104 - 105. 136 Idem.

137 TPI. The States Parties to the Rome Statute. Disponível em: <https://bit.ly/3aUounS>. Acesso em:

10/01/2020.

138 ALOISI, Rosa. A Tale of Two Institutions: The United Nations Security Council and the International Criminal

Court. International Criminal Law Review, vol. 13, p. 149.

139 Ibid., p.32. Ver também: WILMSHURST, Elizabeth. Jurisdiction of the Court. In: LEE, Robert. (Ed.) The

julgar crimes de um ponto de vista imparcial e garantir padrões legais universais”140 (ainda que tribunais penais internacionais tenham falhado notoriamente nessa questão)141.

Nesse sentido, um tribunal penal internacional que se demonstre tanto parcial quanto dependente das grandes potências por trás do CSNU certamente implica na sua legitimidade perante seus Estados-membros e, atualmente, esse modelo também se reflete no criticismo da relação entre os órgãos nos pedidos por uma maior autonomia institucional142 e na crise de legitimidade do TPI no continente africano143.

É possível apontar algumas características ou pressupostos da relação entre o CSNU e o TPI a partir desse modelo. Primeiro, a atuação do CSNU no TPI seria sempre guiada por motivações políticas, do CSNU e de seus Estados membros. Segundo, existiria uma necessidade da separação entre as esferas jurídica e política, o que se daria com uma separação entre ambos os órgãos e da autonomia institucional do TPI. Terceiro, a relação entre o TPI e o CSNU teria um impacto direto na credibilidade e na legitimidade do TPI, o que seria decorrência da dúvida acerca da sua imparcialidade e independência.