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2. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMONIO CULTURAL DAS FAMÍLIAS

2.4. O RESGATE DO PATRIMÔNIO CULTURAL EM PEIXE CRU

A aplicação do INRC na comunidade de Peixe Cru, abre espaço para a discussão das dificuldades inerentes ao processo de utilização desta metodologia em casos de remanejamento compulsório, independentemente dos problemas institucionais ou de formas de desenvolvimento da metodologia, mas da própria natureza das relações num processo de implantação de empreendimentos e das condições das comunidades nessa situação.

Pode-se dizer que houve um importante trabalho de registro das manifestações culturais em Peixe Cru. Uma possível explicação para esse fato é o de que não haviam outras comunidades, afetadas pela UHE Irapé, que fossem estruturadas em torno de um núcleo, a não ser Peixe Cru e Porto Coris, o que provavelmente tornava estas duas comunidades foco de manifestações mais concentradas, em relação ao restante da área afetada, e mais atraentes sob o ponto de vista do registro, por parte da equipe. Foram realizadas 08 entrevistas, das 80 realizadas, em Peixe Cru, registradas 18 músicas ligadas à Festa do Bom Jesus de Peixe Cru, e, dos três vídeos produzidos, grande parte das imagens são de representantes desta comunidade. Das cinco maquetes produzidas, 2 são da comunidade, sendo uma do conjunto arquitetônico do antigo núcleo do povoado e uma da Igreja. Houve a reconstrução da capela do Bom Jesus de Peixe Cru e a restauração de um dos seus crucifixos. Além disso, uma das Oficinas de Educação Patrimonial foi realizada na nova Peixe Cru.

Segundo entrevista realizada com a proprietária da empresa responsável pela execução do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, uma dificuldade do trabalho, de maneira geral, e não exclusivamente em Peixe Cru, foi o fato da questão do patrimônio cultural não fazer parte das preocupações dos afetados pela usina. Ou seja, havia no processo de execução do trabalho uma forte e simultânea interveniência das questões de negociação com a CEMIG e de definição das áreas de reassentamento, valores de indenização e garantias de direitos.

Nessa medida, não foi possível uma grande mobilização dessas pessoas em torno da questão patrimonial.

Em relação a esta dificuldade, algumas considerações podem ser feitas. A primeira delas é a possibilidade de que o processo de inventário dos bens culturais fosse “imposto” e não fizesse parte do universo daquelas pessoas considerar suas atividades cotidianas, o fazer do trabalho, as canções, as conversas, as festas, a Igreja, como “patrimônio”. De repente, sem uma construção prévia com eles, esses elementos do cotidiano ganham importância e valor, tornam-se algo institucionalizado, adquirem um status que não possuíam antes. Uma fala interessante que permite perceber o estranhamento desse tipo de prática foi registrada no vídeo “Sabenças”, editado pela CEMIG, que trata dos saberes e fazeres das comunidades atingidas por Irapé:

E quem pensava que ia aparecer um tipo de serviço desses, igual que ocês tá fazendo aí.

Eh, fazê um serviço desses aqui e levá pra esse mundo afora.

Ninguém sabe nem onde é que vai esbarrar a finalidade dessa filmação, né?

Pode chegar um tempo em que essas coisa que nós tamo fazendo aqui pode acaba mesmo, né.

Então os netos da gente pode num conhecer o modo como nós vivia.

Pessoal novo de hoje em dia, muita coisa que tinha antigamente hoje pra eles num é nada, que eles nem viu aquilo e nem sabe pra quê que é Peixe Cru (torrando café). (Depoimento Verbal) 8.

Nota-se que esta fala já incorpora o que foi ouvido dos técnicos, mas com um certo estranhamento. Afinal, “ninguém sabe onde é que vai esbarrar a finalidade dessa filmação,

né”? Ou seja, este tipo de consideração não faz parte do cotidiano deles e, mais do que isso,

não é isso que garante a continuidade das tradições.

Uma outra questão é que numa situação tão drástica de mudança o presente e, mais ainda o futuro, é hierarquicamente superior ao passado. Ou seja, há uma inversão na lógica do patrimônio em que o passado é mais importante. Isto porque, nesse momento, as questões que, de fato, importam estão relacionadas à garantia de condições materiais de existência no presente imediato e no futuro próximo.

Assim, o foco dos atingidos, durante a implantação da Usina, são as questões de negociação com o empreendedor, o conhecimento das terras para o reassentamento, as

indenizações a serem pagas, a mudança propriamente dita e as condições de sobrevivência nas novas terras.

Entretanto, a categoria patrimônio, como defendida por Gonçalves (2005), mostra-se como um importante elemento a ser utilizado nesse processo em que as referências das comunidades impactadas são postas em risco. Na medida em que pode servir como base para as discussões que perpassam todas as preocupações existentes:viabilidade das novas áreas de reassentamento, processos de indenização justos e adequados a cada uma das populações afetadas, condições materiais de reprodução dos seus modos de vida.

Retomo o artigo de Fernandes (2005) para finalizar este capítulo e reforçar o que já foi anteriormente dito, no sentido de que o fundamental para o desenvolvimento desta prática é uma mudança no foco de atuação do antropólogo (bem como daqueles envolvidos em processos de licenciamento de empreendimentos de infra-estrutura), da noção de “produto” para a de processo. Não se pode conduzir um reassentamento compulsório tendo em mente produtos pré-estabelecidos em programas e projetos, como: construção das casas, implantação de programas de reestruturação socioeconômica, melhoria de acessos, construção de postos de saúde, implantação de programas de preservação do patrimônio cultural. Estes têm um papel fundamental e dizem respeito a uma longa história de lutas em busca da garantia de direitos dessas populações ribeirinhas e constituem-se como pontos pacíficos a serem considerados em casos de licenciamento. Não se trata de desconsiderar isto. Mas, trata-se, sobretudo da adoção de uma postura metodológica que incorpore a importância do processo pelos quais estas ações são implementadas. Já que é unicamente durante o processo de implementação das ações que as comunidades têm a oportunidade de refletir sobre a implantação do empreendimento e reconstruir novas formas de existência naqueles lugares de destino. Nesse sentido, a atuação de um antropólogo é fundamental para que os vários “pontos-de-vista” sejam considerados e possam se colocar na trama de interações que aí ocorrem.