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3 O PAPEL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO NA ADMINISTRAÇÃO

4.1 DEVIDO PROCESSO LEGAL: PREMISSAS GERAIS À COMPREENSÃO DO

4.2.3 A decomposição analítica da expressão

4.2.3.2 O termo “processo”

Não é difícil perceber que o emprego do termo “processo”, diretamente no corpo da aludida expressão constitucional, revela a indisfarçável intenção do constituinte de fazer oposição explícita à possibilidade de atos pontuais ou auto-executórios serem capazes de atentar, em nosso sistema, contra a liberdade ou os bens de particulares. Tanto é verdade, que, por força mesmo do próprio sentido literal conferido ao termo, restou efetivamente robustecida aos administrados, com sua inserção, reconheça-se, a garantia constitucional de

155 Ou, como genericamente busca definir Bockmann Moreira, “não será devido o processo que desatenda a

qualquer aspecto da relação de dever-poder que orienta toda atividade da Administração Pública, com base na exata compreensão de um Estado Democrático de Direito” (MOREIRA, Egon Bockmann. Processo

que não haverá, sem que ocorra a conclusão de prévio processo, aplicação de medida estatal que tenha por objetivo a invasão de sua esfera jurídica.

A inequívoca vantagem decorrente dessa inclusão, conforme se pode deduzir, é que, desde então, passou o cidadão a dispor, enfim, de um dispositivo constitucional expresso que, atuando em sua proteção, reforça-lhe a necessária certeza de que não será surpreendido por eventuais ações a serem patrocinadas pelo poder público, benefício este que, tendo o condão de induvidosamente elevar, sobremaneira, a sensação de segurança ofertada à coletividade como um todo, ajuda com certeza a promover um dos fins colimados pelo Estado de Direito, qual seja, a previsibilidade do comportamento estatal156.

No que toca, especificamente, ao âmbito administrativo, entretanto, imprescindível se faz que esteja atento o intérprete à imperiosa necessidade de conciliar-se a prefalada garantia com os tradicionais atributos de que são portadores os atos administrativos, tais como o da imperatividade, o da exigibilidade e o da auto-executoriedade. Afinal, tanto aquela primeira quanto estes últimos constituem regras integrantes de um mesmo sistema jurídico, obrigatoriamente uno, o que torna compulsório serem compreendidos em plena harmonia157.

Desta forma, parece evidente que, da necessária compatibilidade que deve haver entre esses preceitos, resultarão inalteradas, de um lado, as prerrogativas mencionadas - todas inerentes aos atos administrativos que condicionem ou restrinjam a situação jurídica de administrados -; e, do outro, serão os particulares sempre dotados, inevitavelmente, de legítima competência para questionar, na própria seara administrativa, os atos que tenham por

156 A previsibilidade do comportamento estatal como característica marcante do modelo de Estado de Direito é

realçada na doutrina de Geraldo Ataliba: “O Estado não surpreende seus cidadãos: não adota decisões inopinadas que os aflijam. A previsibilidade da ação estatal é magno desígnio que ressuma de todo o contexto de preceitos orgânicos e funcionais postos no âmago do sistema constitucional” (ATALIBA, Geraldo. República e

Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 145-146).

157 Recorde-se aqui, por oportuna, a clássica lição de Carlos Maximiliano: “Deve o Direito ser interpretado

inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 166).

fim a privação ou diminuição de sua liberdade ou de seus bens. Assim, tomando-se por base uma espécie de união conciliadora que se faça entre tais enunciados, o que se conclui é que “não se exige que a Administração instale processo todas as vezes que pretenda agir – mas que a ele se submeta, desde que cumpridamente requerido pelo particular”158.

É claro que haverá situações onde, dada a natureza dos interesses em disputa, será exigida, à validade do ato, a instauração de processo anterior. O que na verdade se deve entender é que, em atos inevitavelmente instantâneos por sua própria natureza (multa de trânsito, apreensão de mercadorias na aduana, etc.), onde não há qualquer viabilidade prática para se proceder de modo diferente, sempre existirá, para utilizar uma expressão empregada por Bockmann Moreira, “processo em potência”159, significando, em outras palavras, que sua instauração estará condicionada a requerimento nesse sentido do particular afetado160.

Dignos de ressalva, também, se mostram os variados casos que reclamam do poder público a aplicação de medidas urgentes. Afinal, não se mostra razoável que se admita, com relação a estes, que constitua a exigência do devido processo legal um óbice à pronta intervenção do Estado no sentido de fazer cessar o dano causado ou o perigo provocado ao interesse público161. Ademais, é evidente que não cabe, em nenhuma hipótese, que tenha o

158 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999. 4ª

ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 294.

159 Ibid., p. 294.

160 Esclareça-se, no entanto, que, nesses casos, uma vez instaurado o processo por iniciativa do particular, não

dependerá sua tramitação de qualquer ato a ser praticado por este último, uma vez que vige, a partir daí, o princípio do impulso oficial, pelo qual é atribuída à Administração a responsabilidade por seu regular e contínuo andamento, até a prolação de decisão final. “Se a Administração o retarda, ou dele se desinteressa, infringe o princípio da oficialidade e seus agentes podem ser responsabilizados pela omissão” (MEIRELLES, Hely Lopes.

Direito Administrativo brasileiro. 36ª ed. Atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo

e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 722).

161 Confira-se, a esse respeito, trecho transcrito da obra de Rafael Munhoz de Mello: “O princípio do devido

processo legal não pode ser interpretado de modo desarrazoado, impedindo em casos de absoluta urgência e necessidade a edição, sem prévio processo administrativo, de atos administrativos que atinjam o patrimônio dos particulares. Se assim fosse o interesse público restaria prejudicado, pois há medidas que se fazem necessárias de imediato. Trata-se de medidas acauteladoras ou preventivas, que têm por escopo impedir ou sustar comportamentos danosos ao interesse público. Não seria razoável, por exemplo, exigir da autoridade administrativa a instauração de um processo prévio para desconstituir passeata que se realize em desconformidade com as regras de ordem pública. Ou, ainda, para vedar o acesso de pessoas a construção que apresente risco iminente de desabamento. Em casos dessa natureza a exigência de prévio processo tornaria inútil a providência administrativa, que só seria adequada ao interesse público se praticada de imediato” (MUNHOZ

princípio em tela desvirtuadas suas finalidades a ponto do mandamento nele contido representar, para o Estado, um impedimento à “adoção imediata de providências da mais extrema urgência requeridas insubstituivelmente para salvaguardar interesses públicos relevantes que, de outra sorte, ficariam comprometidos”162.

É de se registrar, também, que a própria Lei 9.784/1999, diploma responsável pela regulamentação do trâmite do processo administrativo na esfera federal, vem a conferir guarida, em seu art. 45, ao entendimento conciliatório aqui esposado, à medida que reconhece, expressamente, à Administração Pública, toda vez que enfrente esta situações de risco iminente, a possibilidade da adoção, sem antes ter havido manifestação do interessado, inclusive, de providências que denomina acauteladoras163.

Cumpre, no entanto, lembrar, diante do risco que representa essa permissividade legal a várias das garantias constitucionais dos administrados, a advertência que fazem Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari acerca dos cuidados de que deve o poder público se revestir, obrigatoriamente, caso necessite se utilizar de tais medidas:

Tais medidas são excepcionais, e sua adoção depende sempre de robusta motivação. Além disso, havendo possibilidade material de ouvir quem for afetado por elas, isso deve ser obrigatoriamente feito, sob pena de nulidade do ato. Somente em último caso, de comprovada extrema urgência, de perigo iminente devidamente demonstrado, de situação em que não for logicamente possível agir de outra maneira, é que se admitirá a adoção de medida cautelar sem audiência da parte afetada. Em caso de controvérsia sobre essa questão, o Poder Judiciário sempre pode e deve examinar profundamente as circunstâncias de fato, para aferir a razoabilidade e a proporcionalidade da medida adotada164.

Imperioso se faz chamar a atenção, ainda, para o fato de que não se trata essa possibilidade, em última análise, de uma suposta inexigibilidade quanto à observância do

DE MELLO, Rafael. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador. As sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 243-244).

162 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros,

2010, p. 115-116.

163 Art. 45 da Lei 9.784/1999, in verbis: “Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá

motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado”.

164 FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007,

devido e anterior processo, uma vez que, na verdade, continuará o princípio valendo normalmente para essas hipóteses, ocorrendo apenas uma alteração pontual e excepcional quanto ao momento da instauração do feito, que é realizada somente após a prática do ato reputado urgente. Desta forma, o que ocorre é que, nessas situações, “o processo é devidamente instalado, mas alguns atos urgentes são praticados anteriormente ao ingresso do particular na relação jurídico-processual”165.

O cenário em torno do tema, então, pode assim ser resumido: a depender da natureza do ato a ser expedido e do interesse que venha este a atingir, situações haverá em que a existência de processo estará condicionada à manifestação do particular, que terá o ônus, portanto, de requerer sua instauração na defesa de seus direitos, os quais se revelam, quase sempre, nestes casos, integralmente disponíveis; já outras hipóteses, por sua vez, exigirão da Administração, invariavelmente, o cumprimento inescusável do dever da necessária instalação do feito, seguido, claro, da obrigação, comum em toda e qualquer ocasião, de lhe conferir regular andamento.

Em suma, o que irá importar, na verdade, é que o processo administrativo efetivamente se mostre, em qualquer caso, como uma possibilidade viável e acessível, oferecida pelo ordenamento, à disposição do particular, de modo que sempre seja concedida a este último, toda vez que se sentir indevidamente lesionado ou ameaçado, em sua esfera jurídica, por ação da Administração Pública, a liberdade de decidir por sua abertura.

165 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999. 4ª