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Oito fundamentações

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 148-155)

Direitos humanos sem metafísica?*

1.2. A FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

1.2.2. Oito fundamentações

O campo não-cético é tudo menos homogêneo, o que certamente não exclui de modo algum formas distintas de conexões. Devem ser aqui distin- guidas oito abordagens.

1.2.2.1. A fundamentação religiosa

A primeira é a abordagem religiosa. Uma fundamentação religiosa é capaz de dar uma fundamentação muito forte aos direitos humanos. Quem acredita que os seres humanos foram criados por deus à sua imagem tem uma boa razão para vê-los como algo que possui um valor ou uma dignid- ade. Um tal valor ou uma tal dignidade constitui um fundamento sólido dos direitos humanos. Essas fortes razões possuem porém uma desvantagem decisiva. Elas são razões somente para aqueles que acreditam em deus e no fato de os seres humanos terem sido criados à imagem de deus. Por isso a fundamentação religiosa, enquanto tipo mais forte de fundamentação metafísica, falha pelo fato de não ser obrigatória para todos que se en- volvem em uma fundamentação racional. Isso vale para toda forma reli- giosa de fundamentação dos direitos humanos.

1.2.2.2. A fundamentação biológica

A contraparte radical do modelo religioso é a abordagem biológica ou sociobiológica. A metafísica é aqui integralmente substituída pela obser- vação da natureza. De acordo com esse modelo a moral é uma forma de al- truísmo. Assim, no centro está a observação de que determinadas formas de comportamento altruísta são melhores para a sobrevivência do patrimônio genético de um indivíduo que a indiferença ou até mesmo a agressividade mútuas. Isso é correto especialmente no que diz respeito ao cuidado com os próprios filhos e ao apoio a familiares, mas é verdade também em relação a formas recíprocas de altruísmo que levam à ajuda mútua.7Ora, pode até ser

que a tendência de maximizar o sucesso reprodutivo leve, em uma série de casos, ao respeito e à ajuda a algumas pessoas. Decisivo é porém que com isso se trata de um modelo de comportamento que, como formula Patzig, está “frequentemente conectado à indiferença ou à hostilidade em relação aos excluídos”.8Isso é incompatível com o caráter universalista dos direit-

os humanos. Se os direitos humanos podem ser justificados, eles não podem sê-lo então através da observação da natureza biológica dos seres humanos, mas somente através de uma explicação de sua essência cultural.

1.2.2.3. A fundamentação intuitiva

A terceira abordagem se baseia nas intuições. O modelo intuicionista afirma que os direitos humanos são justificados porque sua existência ou validade seriam evidentes. A evidência não é porém uma boa razão se é possível não compartilhar experiências sobre evidências sem se expor a uma outra acusação além daquela de que não se acha evidente aquilo que é evidente. Se o intuicionismo não está contido em uma argumentação ele não pode, por fim, ser diferenciado do emotivismo. Se ele estiver porém contido em uma argumentação, não se trata mais de intuicionismo. Evidên- cias não podem substituir argumentos.

1.2.2.4. A fundamentação consensual

A quarta abordagem é o consensualismo. De acordo com ela os direit- os humanos são justificados quando encontram a concordância de todos. A existência dos direitos humanos se apoia então na existência de um con- senso que os sustenta. Se esse consenso é concebido como nada mais que um acordo sobre convicções, o consensualismo não é diferente de um intui- cionismo coletivo. A única fonte da validade é o fato do acordo. Ora, não se deveria menosprezar um acordo sobre os direitos humanos que abranja todos os seres humanos, quando esse acordo é suficientemente estável. Porém, mesmo quando um tal acordo existe, podem ser exigidas razões para as respectivas convicções. Quando porém o consenso não é apoiado por todos, o que no caso dos direitos humanos é exatamente o que ocorre, são indispensáveis argumentos. Quando se trata de fundamentações, argu- mentos contam mais que meras maiorias. Por essa razão um consensual- ismo apoiado exclusivamente no fato da concordância ou congruência não é suficiente para a fundamentação dos direitos humanos. Para isso são ne- cessários argumentos. Porém assim que eles entram em jogo o campo do puro consensualismo é abandonado.

1.2.2.5. A fundamentação instrumental

A quinta abordagem fundamenta os direitos humanos instrumental- mente. Uma fundamentação dos direitos humanos é instrumental quando se afirma que o reconhecimento dos direitos humanos é necessário se se quer maximizar vantagens individuais. Essa abordagem é uma candidata bastante promissora a uma fundamentação dos direitos humanos sem metafísica. Se fosse possível forjar direitos humanos a partir da maximiza- ção das vantagens individuais, certamente teria sido alcançado um funda- mento sem metafísica.

A abordagem instrumental aparece tanto em uma forma elementar quanto em uma forma altamente sofisticada. Um exemplo da versão ele- mentar é o argumento “se você não quer ser morto, você deve respeitar o direito dele à vida”. Argumentos desse tipo fracassam quando surgem situ- ações em que é possível que algumas pessoas maximizem suas vantagens também por um longo período através da violação de direitos humanos de outras pessoas. A história mostra que essa possibilidade de qualquer modo não pode ser excluída enquanto os direitos humanos não são transformados em direito positivo apoiado por sanções efetivamente organizadas. Mode- los altamente sofisticados foram sugeridos por James Buchanan e David Gauthier. Esses modelos trabalham com condições que devem excluir aquilo que é inaceitável ou aceitam abertamente aquilo que é em si in- aceitável. Gauthier oferece um exemplo para a primeira, quando afirma que “direitos fornecem o ponto de partida para o acordo e não o resultado do acordo. Eles são aquilo que cada pessoa traz para a mesa de negociação, não aquilo que ela leva dela”.9Buchanan toma o caminho oposto, quando

afirma que o resultado, em caso de uma diferença de poder suficientemente grande, pode ser um tipo de contrato de escravidão: “nesse cenário, o con- trato de desarmamento que pode ser negociado pode ser algo similar a um contrato de escravidão em que os ‘fracos’ concordam em produzir bens para os ‘fortes’ em troca da permissão de manter algo mais e acima que a mera subsistência, que eles podem ser incapazes de manter no cenário anarquista.”10O modelo de Gauthier poderia em princípio ser compatível

com os direitos humanos, pagando porém como preço essencialmente a

inclusão de elementos não-instrumentais. Assim não se pode falar, em seu caso, de uma fundamentação dos direitos humanos somente através de ar- gumentos instrumentais. Buchanan oferece, ao contrário, um argumento puramente instrumental e assim certamente não-metafísico, mas deve para isso pagar o preço de que resultados como o contrato de escravidão, que não são compatíveis com os direitos humanos, sejam possíveis. Tudo isso não significa que a abordagem instrumental seja completamente inútil. Na medida em que pode fornecer razões para o reconhecimento dos direitos humanos, ela deve ser incluída em um modelo abrangente.11Esse modelo

abrangente deve porém ser determinado através de princípios, que não po- dem ser fundamentados por uma argumentação puramente instrumental.

1.2.2.6. A fundamentação cultural

A sexta abordagem é a cultural. Ela afirma que a convicção pública de que existem direitos humanos é uma aquisição da história da cultura hu- mana. Radbruch apresenta uma conexão desse argumento com um argu- mento consensual quando, em vista dos “princípios do direito, que são mais fortes que qualquer estatuto jurídico”, afirma que “certamente eles são isol- adamente cercados de muita dúvida, mas o trabalho de séculos elaborou um grupo sólido, reunido com tão ampla aceitação nas denominadas de- clarações de direitos do homem e do cidadão, que no que diz respeito a muitos deles só um ceticismo deliberado pode ainda manter dúvidas.”12

Também o modelo cultural é, na verdade, útil, mas não suficiente. Nem em todas as culturas os direitos humanos são o resultado da história própria. O mero fato de eles terem sido elaborados em uma ou mais culturas não é su- ficiente para justificar sua validade universal, que está incluída em seu con- ceito. A história da cultura só tem um significado na fundamentação na me- dida em que ela é um processo em que experiências se conectam a argu- mentos. A validade universal não pode se apoiar somente na tradição, mas, no fim das contas, somente em uma argumentação.

1.2.2.7. A fundamentação explicativa

A sétima abordagem deve ser denominada “explicativa”. Uma funda- mentação dos direitos humanos é explicativa se ela consiste em que se ex- presse aquilo que está necessariamente contido implicitamente na prática humana. A ideia de fundamentar algo através da expressão daquilo que está necessariamente contido em juízos e ações segue a linha da filosofia tran- scendental de Kant. Com isso aparece no horizonte a possibilidade de uma metafísica imanente.

Há algum tempo procurei desenvolver o argumento explicativo no contexto de uma fundamentação teórico-discursiva dos direitos humanos.13

Aqui podem ser abordadas apenas algumas características importantes para o problema da metafísica. O argumento começa com uma análise da prática discursiva, que é entendida como prática de afirmar, questionar e apresent- ar razões.14Essa prática pressupõe regras necessárias que expressam as

ideias de liberdade e igualdade dos participantes do discurso enquanto par- ticipantes do discurso. Esse conteúdo normativo implícito pode se tornar explícito através de sua negação explícita. Exemplos disso são as expressões:

(1) a razão G, que eu apresento a favor da minha afirmação, natural- mente não é para mim uma boa razão; dada a sua pouca inteligên- cia você deveria porém aceitar G como uma boa razão a favor dessa afirmação.

(2) Se minhas razões não te convencerem, o seu contrato não será prolongado.

(3) Se nós excluirmos A, B e C de nossa discussão e esquecermos suas objeções, poderemos nos convencer de que a razão G, por mim in- troduzida, é uma boa razão.

O caráter absurdo dessas expressões é um sinal da necessidade das re- gras que elas violam.

Suponha-se que seja verdadeira a tese de que a liberdade e a igualdade dos participantes do discurso enquanto participantes do discurso é um pres- suposto que não pode ser evitado se o reino da argumentação deve ser tril- hado. Os direitos humanos ainda não estão, com isso, fundamentados. O fato de ser necessário tratar os outros no discurso como igualmente legitim- ados não implica que seja necessário também reconhecê-los como livres e iguais no campo da ação. É possível discutir com escravos. Isso mostra que são necessárias premissas adicionais quando se quer passar da liberdade e da igualdade do mundo aéreo do discurso à liberdade e à igualdade no es- paço restrito da ação. Há várias candidatas a tais premissas adicionais. Grande significado possui uma premissa que conecta o conceito de parti- cipação séria no discurso com o conceito de autonomia. É autônomo aquele que age de acordo com regras e princípios que ele, após considerações sufi- cientes, julga serem corretos. Participa com seriedade15de discursos morais

aquele que quer solucionar conflitos sociais através de consensos criados e controlados discursivamente. O participante sério ou genuíno do discurso conecta suas capacidades discursivas com o interesse de fazer uso dessas capacidades para o agir. Essa conexão entre capacidade e interesse implica o reconhecimento do outro como autônomo. Tudo o mais é uma conexão entre conceitos que não expressam algo distinto, mas somente aspectos dis- tintos da mesma coisa. Quem reconhece o outro como autônomo o recon- hece como pessoa. Quem o reconhece como pessoa atribui a ele dignidade. Quem atribui a ele dignidade reconhece seus direitos humanos. Com isso chegamos ao objetivo da fundamentação.

1.2.2.8. A fundamentação existencial

Naturalmente também a fundamentação explicativa possui flancos abertos. Dois são rapidamente identificados. O primeiro diz respeito à ne- cessidade das regras do discurso. É possível evitar essa necessidade na me- dida em que se renuncia à participação na prática de afirmar, questionar, apresentar e aceitar razões. Entretanto o preço disso é alto. Os seres hu- manos enquanto, como os denomina Brandom, “criatura[s] discursivas”,16

renunciariam, com essa renúncia à participação, àquilo que se pode

considerar a forma de vida mais geral dos seres humanos.17Esse preço

pode contudo ser consideravelmente diminuído quando se renuncia à dis- cursividade não em geral, mas apenas parcialmente. Assim, alguém pode discutir em seu grupo e em seus limites passar à propaganda, a ordens e à violência. Uma tal conexão entre discursividade interna e violência externa padece contudo do fato de a discursividade ser intrinsecamente conectada à universalidade, o que sempre ameaça romper todos os limites. A força de rompimento dos universais adotados no discurso depende contudo essen- cialmente do interesse em uma participação séria no discurso. Esse flanco é ainda mais aberto que o primeiro. Pode-se apoiar fundamentações em in- teresses? Nesse ponto é preciso distinguir dois interesses: aquele na max- imização das vantagens individuais e aquele na correção. Maximizadores de vantagens que devem contar com pessoas que possuem um interesse na correção podem se ver obrigados a fingir que também estão interessados na correção e simular assim respeito à autonomia dos outros. Isso é mais que nada, mas não deverá mais ser abordado aqui.18Interessa aqui somente o

interesse na correção. Esse interesse é o interesse de atribuir realidade às possibilidades discursivas. Esse interesse está, como todo interesse, con- ectado a decisões sobre se ele prevalece sobre outros interesses opostos. Nessas decisões trata-se da questão fundamental sobre se aceitamos nossas possibilidades discursivas. Trata-se de se nos queremos como criaturas dis- cursivas. Elas são decisões sobre aquilo que somos. Por isso a oitava forma de fundamentação é denominada existencial. Pode-se assim falar em uma fundamentação, porque não se trata de quaisquer preferências que se en- contram ou não aqui e ali, mas sim de uma confirmação de algo que já está a caminho da explicação como possibilidade necessariamente provada.

No documento Alexy, Robert - Teoria Discursiva Do Direito (páginas 148-155)