• Nenhum resultado encontrado

2. O PROBLEMA SOCIAL E JURÍDICO DA MORADIA DO TRABALHADOR

2.4. A omissão no plano convencional

A correlação histórica entre moradia inadequada e migração em virtude do trabalho encontra espaço para se perpetuar na recorrente ausência de disposição patronal de assumir qualquer responsabilidade sobre a adequação da moradia de seus funcionários, bem como na falta de interesse ou, sobretudo, de força de mobilização dos trabalhadores e respectivos sindicatos para oferecer reivindicação robusta acerca do tema.

Todavia, é certo que o problema social em discussão comporta tratamento pela via convencional, a qual, no caso das relações de emprego, ancora-se tanto na autonomia privada individual, pela regulação no contrato de trabalho e no regulamento da empresa, quanto na autonomia privada coletiva, pela pactuação em acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Esclarece Ronaldo Lima dos Santos que “a autonomia privada se traduz na capacidade de auto-regulação pelos particulares de seus próprios interesses”, podendo-se

169“Construir ou reconstruir a casa de tijolos e de telhas, segundo os padrões das classes sociais mais elevadas, representa para o migrante a consecução de um sonho de ascensão social e também um lugar seguro para si e para a família. Todos os entrevistados manifestaram o desejo de voltar ao Maranhão e lá construírem sua casa” (SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Expropriação da terra, violência e migração: camponeses do nordeste do Brasil nos canaviais paulistas, cit., p. 177).

afirmar “por isso, que o contrato é a expressão da autonomia privada”.170 Importante a

percepção segundo a qual

[...] os efeitos jurídicos decorrentes do auto-regramento, além de concretos e divisíveis, exaurem-se na esfera jurídica de seus destinatários, somente excepcionalmente, em benefício ou prejuízo de terceiros.

O vocábulo individual não está, assim, vinculado à ideia de pessoa física, mas indica a restrita circunscrição dos efeitos normativos à esfera jurídica, concreta e divisível, dos sujeitos que exercem o auto- regramento. Assim, também é fruto de autonomia individual o negócio jurídico aperfeiçoado por pessoas jurídicas, associações, pessoas jurídicas de direito público etc, em derredor de interesses próprios.171

Já a autonomia privada coletiva, nos dizeres de Enoque Ribeiro dos Santos, é o poder conferido pelo Estado, “a determinados indivíduos e grupos sociais, de auto- regularem amplamente seus próprios interesses, ou seja, de agir com independência no contexto do ordenamento jurídico, produzindo normas jurídicas próprias”.172

Aliás, é no exercício da autonomia privada coletiva, impulsionada pelos sindicatos profissionais, que se espera possam os trabalhadores alcançar, no contexto mais amplo da categoria, a satisfação de seus direitos e o avanço das condições de trabalho, por pretensamente conseguirem mitigar o poder econômico com a força da reivindicação coletiva; afinal de contas, pode-se afirmar ser a negociação coletiva

[...] o melhor meio para a solução dos conflitos ou problemas que surgem entre o capital e o trabalho. Por meio dela, trabalhadores e empresários estabelecem não apenas condições de trabalho e de remuneração, com todas as demais relações entre si, por meio de um procedimento dialético, previamente definido, que se deve pautar pelo bom senso, proporcionalidade, boa-fé, razoabilidade e equilíbrio entre os atores sociais.173

Não obstante, no que se refere aos fatos tratados neste estudo, não há uma cultura geral, ou mesmo de determinados setores, no sentido da previsão contratual, regulamentar

170SANTOS, Ronaldo Lima dos. Teoria das normas coletivas. São Paulo: LTr, 2007. p. 119.

171Id. Ibid., p. 118. Na medida em que o regulamento da empresa, embora unilateralmente estabelecido pelo empregador, adere ao contrato de trabalho do funcionário, sua estipulação dá-se no âmbito da autonomia privada individual.

172SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Direitos humanos na negociação coletiva: teoria e prática jurisprudencial. São Paulo: LTr, 2004. p. 72.

173Id. Ibid., p. 151. Como destaca Ronaldo Lima dos Santos, na perspectiva particular do Direito do Trabalho, “a autonomia privada coletiva não surgiu como antítese do princípio protetor; ela objetiva exatamente uma maior efetivação desse princípio, ante as mudanças fáticas que apontam para a necessidade de incrementar outros instrumentos de tutela dos interesses dos trabalhadores, diante da insuficiência, historicamente demonstrada, do ordenamento jurídico estatal para essa missão” (SANTOS, Ronaldo Lima dos. op. cit., p. 135).

ou negocial coletiva da obrigação do empregador em face do direito à moradia do seu empregado. Em muito essa realidade pode ser creditada à visão liberal-capitalista segundo a qual a condição de moradia é resultado direto de mérito pessoal.174

Nem sequer nos setores rural e da construção civil, — onde a inadequação da moradia é fato corriqueiro, em especial pela abundante utilização de mão-de-obra migrante temporária — foi possível obter avanços consideráveis quanto à matéria, pela via da autonomia privada coletiva.

Pesquisa realizada junto ao banco eletrônico de dados do Sistema Mediador do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE175, tendo por critérios seletivos os instrumentos

negociados vigentes para as categorias profissionais “rural” e “construção civil”, que contenham cláusula em cujo título constem as palavras “moradia” e “alojamento”176, revela

o quão tímida é a regulação negociada do problema social em questão.

No Brasil, no que se refere ao trabalho rural, encontram-se registrados e em vigor junto ao MTE apenas 30 (trinta) acordos ou convenções coletivas com cláusulas que contêm o termo “moradia” em seu título e 13 (treze) que contêm “alojamento”, várias das quais dizendo respeito ao mesmo documento, já que contam com título onde estão consignadas ambas essas palavras.

Dessas cláusulas, a ampla maioria, ainda que com redação distinta, reproduz a norma contida no § 5.º do art. 9.º da Lei n.º 5.889, de 8 de junho de 1973177, dispondo

174Assunto retomado no Capítulo 3, 3.6.

175Segundo a previsão do art. 614 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, há obrigatoriedade de depósito dos acordos e convenções coletivas de trabalho no MTE, de modo a permitir a verificação dos requisitos formais exigidos para a sua celebração e publicidade. Por força do art. 2º da IN n.º 11/ 2009, editada pela Secretaria das Relações de Trabalho do MTE, “os requerimentos de registro de convenções e acordos coletivos de trabalho e seus respectivos termos aditivos deverão ser efetuados por meio do Sistema MEDIADOR, disponível no endereço eletrônico do MTE na internet (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Disponível em: <www.mte.gov.br>), por qualquer das partes signatárias, observados os requisitos formais e de legitimidade previstos na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 e nesta Instrução Normativa” (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Secretaria das Relações de Trabalho. Instrução Normativa n.º 11, de 24 de março de 2009. Dispõe sobre o depósito, registro e arquivo de convenções e acordos coletivos de trabalho nos órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego. Diário Oficial da União, Brasília-DF, 25 mar. 2009.

Seção 1, p. 46. Disponível em:

<http://portal.mte.gov.br/data/files/FF8080812BD96D6A012BE3BA01F954EC/in_20090325_11.pdf> Acesso em: 1º nov. 2012).

176Termos aqui escolhidos ainda sem uma distinção semântica.

177“§ 5º A cessão pelo empregador, de moradia e de sua infra-estrutura básica, assim como, bens destinados a produção para sua subsistência e de sua família, não integram o salário do trabalhador rural, desde que caracterizados como tais, em contrato escrito celebrado entre as partes, com testemunhas e notificação obrigatória ao respectivo sindicato de trabalhadores rurais.”

sobre valor de aluguel e prazo para desocupação pelo empregado rural, em caso de término do contrato de trabalho.

No que tange à obrigação do empregador rural de conceder moradia a seu funcionário, algumas poucas cláusulas a preveem e somente para as hipóteses em que o empregado resida na propriedade em que se dá a prestação dos serviços.178 Há, igualmente, pontuais previsões a respeito da infraestrutura básica da moradia ou alojamento disponibilizado.179

Em relação ao alojamento, a maioria dos poucos registros encontrados cuida do fornecimento pelo empregador rural de local para uso apenas durante o período de intervalo intrajornada. Dentro desse critério de pesquisa, encontrou-se uma única cláusula, já expirada, que, sem mais detalhes, abordava a obrigação patronal ventilada, nestes termos: “CLÁUSULA 7ª - ALIMENTAÇÃO E ALOJAMENTO. A empregadora fornecerá alimentação e alojamento aos empregados sem ônus decorrente”.180

Em termos quantitativos, na área da construção civil, o número de acordos e convenções coletivas de trabalho com cláusulas que versam sobre moradia ou alojamento é sobremaneira superior àquela estatística atinente ao setor rural. Com maior concentração de instrumentos negociados na região Sudeste do País, encontram-se registrados e em vigor junto ao MTE, para todo o Brasil, 13 (treze) acordos ou convenções coletivas com cláusulas que contêm o termo “moradia” em seu título e 82 (oitenta e dois) que contêm “alojamento”, algumas das quais, também neste caso, dizendo respeito ao mesmo documento, já que com título onde estão consignadas ambas essas palavras.

178Cf., exemplificativamente, “CLÁUSULA 5ª - ALOJAMENTO E MORADIA. A empresa fornecerá alojamento gratuito aos empregados bem como residências individuais para os empregados que residem com seus familiares na propriedade” (ACORDO Coletivo de Trabalho 2012/2013, firmado entre Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paracatu/MG e A. C. Agro Mercantil Ltda. Disponível em: <http://www3.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR038508/ 2012>. Acesso em: 1º nov. 2012).

179Cf., exemplificativamente, “CLÁUSULA VIGÉSIMA SEGUNDA - FORNECIMENTO DE MORADIA. A moradia do empregado será dotada de luz elétrica, água encanada e a instalação sanitária. Fornecidos gratuitamente pelo empregador, não serão esses valores (moradia, luz elétrica, água encanada e instalação sanitária) integrados à remuneração do empregado, nem como salário "in natura". PARÁGRAFO PRIMEIRO: A energia elétrica fornecida pelo empregador como consta no “caput”, será gratuita até no limite mensal de 150 kwh do titular da residência, desde que tenham medidores individuais para cada residência e mesmo que a conta da propriedade seja uma única para todas as residências” (CONVENÇÃO Coletiva de Trabalho 2012/2013, firmada entre Sindicato dos Empregados Rurais de Tapiratiba e Caconde/SP e Sindicato Rural de Caconde/SP. Disponível em: <http://www3.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR026313/ 2012>. Acesso em: 1º nov. 2012).

180ACORDO Coletivo de Trabalho 2011/2012, firmado entre Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paracatu/MG e Riber Sementes Ltda. Disponível em: <http://www3.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR042075/ 2011>. Acesso em: 1º nov. 2012.

Neste contexto, a disposição normativa convencionada mais recorrente trata do direito do trabalhador alojado pela empresa de construção civil de, uma vez tendo seu contrato de trabalho encerrado, permanecer no alojamento até que receba a integralidade das verbas rescisórias.181

A respeito da obrigação patronal de disponibilização de abrigo aos funcionários, em especial os migrantes, há a uma única cláusula, estabelecida no Estado do Amazonas, que a prevê, expressamente:

Quando as empresas recrutarem mão-de–obra em outras localidades fornecerão alojamento aos trabalhadores e deverão fazer de acordo com as normas nela contida, de acordo com a legislação em vigor.182

Há acordos coletivos de trabalho que estabelecem a obrigação do empregador quanto ao fornecimento de alojamentos “aos trabalhadores que residem no local de trabalho”, fixando as condições mínimas que devem ostentar os locais oferecidos, como por exemplo:

CLÁUSULA 42ª - TRABALHADORES QUE RESIDEM EM ALOJAMENTOS. Aos trabalhadores que residem no local de trabalho deverão ser oferecidos alojamentos que apresentem adequadas condições sanitárias em cumprimento a NR-24 tais como:

A - Ventilação e luz direta suficiente. B - Armário individual.

C - Dedetização a cada 6 (seis) meses. D - Limpeza diária.

E - Proibição de aquecimento ou preparo de refeição no interior do alojamento.183

181Cf., exemplificativamente, “CLÁUSULA 23ª - GARANTIA DE PERMANÊNCIA NO ALOJAMENTO. O trabalhador alojado, ao ser dispensado, terá a garantia e permanência no alojamento da empresa e direito a refeição quando e nas condições oferecidas pela empresa, até o dia do pagamento pela empresa das verbas referentes à sua rescisão contratual.” (CONVENÇÃO Coletiva de Trabalho 2012/2013, firmada entre Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil e do Mobiliário de Nova Iguaçu/RJ e Sindicato das Indústrias da Construção/RJ. Disponível em: <http://www3.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR032914/ 2012>. Acesso em: 04 nov. 2012).

182CONVENÇÃO Coletiva de Trabalho 2011/2013, firmada entre Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil e do Mobiliário de Manacapuru/AM e Federação das Indústrias do Estado do

Amazonas/AM. Disponível em:

<http://www3.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR039736/ 2011>. Acesso em: 04 nov. 2012.

183CONVENÇÃO Coletiva de Trabalho 2011/2013, firmado entre Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil e do Mobiliário de Santos/SP e Sindicato das Indústrias da Construção e do Mobiliário

de Santos/SP. Disponível em:

<http://www3.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR023806/ 2011>. Acesso em: 04 nov. 2012.

Ainda no ramo da construção civil, há registros do MTE de diversas disposições alusivas às condições dos alojamentos acaso fornecidos pelas empresas.184

A leitura das estipulações resultantes de negociação coletiva, tanto no setor rural quanto no da construção civil, revela que, em regra, os instrumentos coletivos não declaram, de modo explícito, a existência da obrigação do empregador quanto ao fornecimento de moradia ao seu empregado, deixando espaço para o entendimento, na prática prevalecente entre os empresários, segundo qual, quanto ao tema, há liberalidade e não verdadeira obrigação legal.

Mesmo no caso dos instrumentos coletivos do setor da construção civil, que preveem o dever de disponibilização de alojamento para o funcionário que “reside no local da obra”, a redação da cláusula já sugere interpretação restritiva da expressão “local da obra”, de modo que a obrigação recaia sobre as situações em que os funcionários literalmente residam no canteiro de obras e não, por exemplo, na cidade em que a obra esteja acontecendo.

Em sendo assim, tanto do ponto de vista quantitativo, como do qualitativo, os avanços obtidos pela via da autonomia privada coletiva mostram-se sobremaneira tímidos e insuficientes para o encaminhamento de uma efetiva solução ou, ao menos, de uma mitigação importante do problema da moradia digna do trabalhador migrante.

Isto não quer dizer que a negociação coletiva não permaneça sendo, em tese, a ferramenta mais habilitada para as reivindicações e para a obtenção do compromisso patronal em torno das providências voltadas ao enfrentamento da situação em estudo.

Todavia, para além do poder da criatividade jurídica ostentado pela autonomia privada coletiva, há que se verificar a questão da obrigação do empregador em disponibilizar moradia

184Cf., exemplificativamente, “CLÁUSULA 38ª - ALOJAMENTOS. As empresas se comprometem a manter os alojamentos de acordo com as normas regulamentadoras de saúde, medicina, e higiene do trabalho, aplicáveis à espécie aos trabalhadores alojados, inclusive nos finais de semana e feriados, considerando-se o seguinte: I – Os banheiros dos alojamentos deverão, necessariamente, ter chuveiros com a opção de água quente; II – Os trabalhadores alojados receberão da empresa, quando da admissão, um kit contendo um lençol, um travesseiro, um cobertor/manta, além de produtos de higiene, quais sejam: um tubo de creme dental; um sabonete; um frasco de xampu e um rolo de papel higiênico. Parágrafo Primeiro - O empregado será responsável pela limpeza, pelo bom uso e conservação dos itens recebidos. Quando do desligamento ou rescisão de contrato de trabalho, deverá o funcionário devolver todos os itens que estão em seu poder, sob pena dos valores correspondentes serem descontados em sua remuneração ou nas verbas rescisórias. Parágrafo Segundo - Convencionam as partes que os trabalhadores que estiverem nos alojamentos farão jus a um armário individual.” (CONVENÇÃO Coletiva de Trabalho 2011/2012, firmada entre Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil e do Mobiliário de Betim/MG e Sindicato das Indústrias da Construção Civil no Estado de Minas Gerais/MG. Disponível em: <http://www3.mte.gov.br/internet/mediador/relatorios/ImprimirICXML.asp?NRRequerimento=MR077139/ 2011>. Acesso em: 04 nov. 2012).

ao seu empregado, sob a ótica do ordenamento jurídico posto pelo Estado, e na perspectiva da imputação deste dever a ele, independentemente de sua aquiescência.