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orgânica da administração pública das águas – 1917a / 1917b

No documento O valor da água como bem público (páginas 142-148)

Capítulo IV Uma (re) Visão Critica das Políticas Públicas da Água

Mapa 4: orgânica da administração pública das águas – 1917a / 1917b

143 Tornavam-se evidentes, no decurso das sucessivas alterações apresentadas, as dificuldades sentidas pelo Estado em ordenar o seu quadro institucional, assim como em tornar eficaz o cumprimento das funções que considerava essenciais ao exercício do seu domínio sobre as águas. E em lugar de servir os propósitos que as orientavam, as políticas hídricas constituíam-se cada vez mais como um problema em si mesmo, não se produzindo resultados práticos da utilização das águas, e descurando-se funções que se vinham considerando essenciais à sua administração.

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Uma reforma estruturante

Do ponto de vista político, os primeiros 35 anos de políticas hídricas em Portugal parecem ter servido essencialmente para a enunciação dos seus pressupostos, assim como para a delimitação objectiva dos domínios em que o Estado considerava necessário intervir, e que materializavam os propósitos das políticas hídricas: a criação das condições necessárias ao aproveitamento do seu potencial de utilização económica (portos, rega e produção de energia), a satisfação de necessidades sociais (essencialmente a criação de condições sanitárias nas cidades) e a resolução de problemas ambientais (essencialmente as cheias). Não se afirmava ainda de forma consistente, no quadro da actuação do Estado à escala de todo o território96, o abastecimento de água às

populações urbanas, nem tão pouco a poluição das águas parecia justificar referências legislativas ou a criação de serviços próprios no quadro da orgânica do Estado.

No entanto, e no que diz respeito à forma como esses pressupostos se materializaram em linhas de actuação funcionais e coerentes ao longo deste primeiro período histórico, apresentavam-se uma série de problemas recorrentes: a revisão da legislação hídrica, que deveria servir como base jurídica à apropriação das águas por parte do Estado, revelou-se insuficiente; a produção de um cadastro das águas que contribuísse para a sua delimitação e administração nunca foi concluído; o desenho da orgânica que deveria servir de suporte ao desenvolvimento das funções da administração pública das águas era sistematicamente considerado desadequado e disfuncional, sendo sujeito a revisões sucessivas. Na verdade, mais do que as limitações próprias da geografia e das variações do ciclo hidrológico, parecia ser o próprio Estado a causa de algumas das principais limitações no aproveitamento das águas.

145 Neste contexto, eram consideráveis os desafios que se colocavam à Lei de Águas de 1919, assim como ao Decreto nº 7039 de 17 de Outubro de 1920. No caso da primeira, porque se propunha resolver os problemas estruturantes da legislação hídrica que se entendia serem impeditivos do eficaz aproveitamento das águas e sua correcta administração. O segundo, porque deveria instituir um desenho orgânico capaz de servir de suporte à actuação do Estado, resolvendo os problemas funcionais para os quais não se tinha até então encontrado uma fórmula adequada.

Os objectivos do Estado permaneciam intactos, mas procurava-se agora nova fórmula jurídico – institucional que enquadrasse a sua actuação e potenciasse o aproveitamento dos recursos hídricos nacionais no desenvolvimento económico do país: “os Serviços Hidráulicos confiados ao Ministério do Comércio e Comunicações não possuíam até agora a organização apropriada para assegurar a conservação e desenvolvimento das riquezas cuja administração lhes competia e se contam entre as maiores do património nacional”97, dizia-nos

o legislador no preâmbulo do decreto de 1920.

Mas a Lei de Águas ia ainda mais longe, na medida em que para além de procurar resolver os problemas de natureza classificatória e reguladora, intensificava o pressuposto do domínio sobre as águas, “reivindicando para a posse e administração do Estado as águas de todas as correntes” e prescrevendo “as disposições que regulam o uso das águas por concessão”98.

Ao reduzir a tipologia de águas a duas categorias, integrando nas águas públicas a categoria de águas comuns,99 esclarecia a titularidade das águas, regulava de forma precisa as suas possibilidades de utilização por parte dos particulares (através de licenças de uso ou de contratos de concessão) e aumentava consideravelmente o domínio do Estado.

97 Decreto nº 7039 de 17 de Outubro de 1920 98 Idem.

146 O Decreto de 24 de Outubro de 1920, por seu lado, criava a Administração Geral dos Serviços Hidráulicos instituindo uma nova fórmula orgânica para a administração pública das águas que deveria complementar a legislação hídrica na definição de um quadro geral de governação para as águas em Portugal. Confiava-se assim a “gestão de todo esse ramo de serviço público a uma Administração Geral dos Serviços Hidráulicos, a qual é criada neste decreto dentro da mais estrita economia, possuindo os organismos técnicos indispensáveis ao exercício das suas funções; e estabelecida nos princípios gerais de autonomia e descentralização, devidamente fiscalizadas, que informam toda a reorganização do Ministério do Comércio e Comunicações”100.

Apesar das variações sucessivas a que foi sujeito o quadro institucional ao longo dos períodos históricos seguintes101, tornar-se-iam evidentes duas

dinâmicas funcionais distintas: uma primeira dizia respeito à administração dos recursos hídricos nacionais propriamente dita, onde se reafirmavam as atribuições dos serviços incluídos na orgânica da AGSH: a classificação e demarcação do domínio público hídrico, a recolha de informação de natureza hidrológica, a produção de conhecimento sobre o potencial de aproveitamento das águas, a fiscalização dos seus usos e policiamento do território, assim como a execução de obras de regularização que se consideravam necessárias; uma segunda, em função da qual se definiam unidades administrativas que, com algum grau de autonomia, deveriam criar as condições necessárias ao pleno aproveitamento das águas para o desenvolvimento económico e social do país nas distintas utilizações que lhes eram reconhecidas.

A primeira orientava-se por uma lógica de actuação transversal relativamente aos distintos tipos de utilização, procurando expandir a todo o território nacional o exercício das suas funções. A segunda, assumindo uma natureza sectorial,

100 Idem

147 deveria intervir em função do conhecimento entretanto criado acerca dos recursos hídricos nacionais e do seu potencial de utilização.

Neste sentido, a importância dos dois diplomas pode ser avaliada, não só em função da longevidade das dinâmicas institucionais e funcionais que a partir deles se criaram, mas também no que diz respeito à consolidação de uma lógica de actuação que, profundamente enraizada num paradigma hidráulico, se viria a afirmar de forma consistente, estruturando a actuação pública neste domínio de governação. De facto, a revisão da legislação que definia a titularidade e regulava as formas de utilização do domínio público hídrico só viria a ser sujeita a revisões pontuais e de natureza essencialmente técnica em 1971, 1994 e 2005, mas não se alteravam os seus pressupostos essenciais nem tão pouco a tipologia de águas respectiva102. E a dinâmica institucional da AGSH, apesar de

se terem verificado várias modificações no seu desenho orgânico, viria a manter-se até 1986, data da sua extinção.

Não se deduza daqui, contudo, a funcionalidade e eficácia das disposições destes dois diplomas. Na verdade, a sua longevidade veio garantir, não só uma determinada orientação das políticas hídricas em Portugal, mas também a persistência de uma série de problemas estruturantes, uns dos quais se identificaram pouco depois da sua publicação, e outros tantos se foram manifestando ao longo dos períodos históricos seguintes.

Se a Lei de Águas introduz de facto mudanças formais e substantivas no quadro jurídico dos recursos hídricos nacionais, as dificuldades decorrentes da sua correcta aplicação foram evidenciadas por Pires de Lima, 18 anos depois, no prefácio da obra em que João Veloso de Almeida faz o comentário à “Lei de Águas”, quando afirma que esta matéria tinha à época, e do ponto de vista jurídico, inúmeras “dificuldades, provenientes já do conteúdo, mas avolumadas

102 Ver anexo I para uma reconstituição histórica da legislação que classifica o domínio público

148 pela imperfeição técnica e legislativa dos diplomas que a regulam. E depois, embora seja triste verificá-lo, sendo a matéria das águas uma daquelas que, em muitíssimas comarcas do país, mais afecta a vida dos tribunais, é também das que menos têm merecido a atenção dos homens do foro, magistrados e advogados, não se tendo podido até hoje criar, ao menos, uma jurisprudência uniforme que supra em alguma medida as deficiências legislativas. Que falem por nós, a esse respeito, os inúmeros processos que temos visto afectos aos Tribunais Superiores...” (Almeida, 1937:vii).

No documento O valor da água como bem público (páginas 142-148)

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