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ORNAMENTAÇÃO DAS VOZES INFERIORES

No documento HARMONIZAÇÃO DE MELODIA (páginas 38-59)

A harmonização que acabamos de realizar pode ser comparada a um

contraponto de primeira espécie, pois é completamente homofônica. Essa

textura do tipo nota-contra-nota ainda pode ser enriquecida com acréscimo de

notas de passagem, bordaduras, suspensões e outras ornamentações

melódicas nas vozes inferiores. Vamos proceder passo a passo, para o desenvolvimento das técnicas de ornamentação das vozes inferiores, a partir da harmonização que acabamos de realizar.

Inicialmente, podem-se averiguar os pontos em que se encontram intervalos melódicos de terça, nas vozes de contralto, tenor e baixo. Sempre que há intervalos de terça, esses podem ser preenchidos com notas de passagem. A ornamentação mais usual ocorre na passagem de acordes cadenciais. Por exemplo, na cadência final, em nossa harmonização, há um movimento descendente ré-si, entre as duas últimas notas da voz de contralto. Esse salto melódico pode ser preenchido com a nota dó de passagem (indicada com a abreviatura ‘[np]’, no exemplo nº 4-1), conforme o exemplo abaixo.

Exemplo nº 4-1

O resultado desse procedimento, comumente chamado de sétima de

passagem (note-se que a nota dó é a sétima do acorde de D), é muito comum

nas cadências com textura a quatro ou mais vozes, desde a época do Renascimento. O ex. nº 4-2 demonstra este processo.

Exemplo nº 4-2

Com o passar do tempo, já na época de Claudio Monteverdi, no início do século XVII, essa sétima foi incorporada ao acorde cadencial de V grau, gerando a típica formação de sétima da dominante. Note-se que, no ex. nº 4-3, a nota dó já aparece como parte do contraponto nota-contra-nota, ou seja, a sétima é incorporada como ‘nota de acorde’, deixando de ser tratada apenas como ‘nota estranha á harmonia’.

Exemplo nº 4-3

Na ornamentação melódica das vozes inferiores, tem-se que ter o cuidado de não produzir quintas ou oitavas paralelas. Estas ocorrem, no acréscimo de notas de passagem, sempre que se tem uma quinta ou oitava por movimento direto, quando a voz superior se movimenta por graus conjuntos e a voz inferior salta uma terça na mesma direção. A maneira mais eficaz de evitar essas quintas ou oitavas paralelas é não acrescentar notas de passagem quando há quintas ou oitavas diretas. No exemplo abaixo é demonstrado este problema. No encadeamento do exemplo nº 4-4(a), entre os acordes de Bm(b5)/D e Am, ocorre uma quinta direta corretamente elaborada, entre as

vozes de tenor e contralto. Note-se que, no tenor, há um salto de terça ascendente, que poderia ser preenchido com uma nota de passagem, conforme demonstra o encadeamento do ex. nº 4-4(b). Essa nota de passagem, porém, produz um erro de condução de vozes, pois gera uma quinta paralela, que está destacada no ex. nº 4-4(c). Visto que a nota que conduz para o lá do tenor passa a ser o sol, que é uma quinta inferior com relação ao ré do contralto, se formará um movimento de quintas paralelas entre tenor e contralto (sol/ré-lá/mi).

Exemplo nº 4-4

Assim, tem-se que ter cuidado, no acréscimo de notas de passagem e outras ornamentações melódicas, para evitar que se produzam movimentos paralelos indesejáveis nas vozes inferiores.

Voltemos à ornamentação da harmonização da melodia coral Freu dich

sehr. Se acrescentarmos notas de passagem em todos os pontos possíveis,

Exemplo nº 4-5

Se considerarmos que o dobramento em terças entre baixo e tenor, presente no terceiro compasso, soa pesado e pretendemos obter uma sonoridade mais leve e transparente, podemos eliminar a nota de passagem de uma dessas duas vozes42. Como a voz que geralmente apresenta mais saltos melódicos é a voz de baixo, poderíamos eliminar o salto de terça no baixo, neste compasso [cf. ex, nº 4-6, c. 3], o que ainda contribuiria para gerar contraste nesta voz, visto que todo o restante da frase está conduzido por graus conjuntos.

Exemplo nº 4-6

Outra possibilidade de ornamentação das vozes inferiores seria acrescentar bordaduras nos trechos em que há notas repetidas. Da mesma forma como foi comentado com relação às notas de passagem, deve-se tomar cuidado com relação à produção de oitavas e quintas paralelas ou ocultas quando se acrescentam bordaduras. Aqui, os cuidados devem ser redobrados, porque não ocorrem em apenas um tipo de condução de vozes, como acontece com relação ao acréscimo de notas de passagem, em que somente podem surgir oitavas ou quintas paralelas nos pontos em que já havia oitavas ou quintas diretas.

Vamos proceder ao acréscimo de bordaduras em todos os pontos para discutir a possibilidade, ou não, de sua inclusão. No início da parte de contralto ocorrem cinco repetições da nota ré. Isto poderia ser ornamentado com alternância de bordaduras superiores e inferiores, ou vice-versa. Assim, poderíamos obter as duas ornamentações seguintes: a ornamentação existente no ex. nº 4-7(a) é uma seqüência de bordaduras superior-inferior; no ex. nº 4- 7(b), tem-se a seqüência do tipo bordadura inferior-superior.

42 Naturalmente, que se buscamos um caráter pesante, não há problema algum em deixar a

condução de vozes como está no exemplo nº 4-5; neste caso, poderíamos, inclusive, acrescentar outros dobramentos desse tipo.

Exemplo nº 4-7

Sa for aplicada a ornamentação do ex. nº 4-7(a) à voz de contralto da nossa harmonização, teremos:

Exemplo nº 4-8

A primeira bordadura (ré-mi-ré), no exemplo acima, está correta; a segunda bordadura (ré-dó-ré) produz uma quinta paralela (fá#-dó/sol-ré), entre baixo e contralto, que não é problemática, pois a primeira quinta é diminuta43. De um ponto de vista acústico, porém, são dois intervalos com qualidades harmônicas completamente distintas, já que a quinta diminuta é o intervalo mais instável harmonicamente, que requer resolução em alguma nota que não compõe esse intervalo [cf. a resolução de notas atrativas], enquanto que a quinta justa é o intervalo mais estável entre duas notas diferentes e, por isso é completamente estático. Além disso, a relação entre os sons (fundamental e seus harmônicos) que formam o trítono (quinta diminuta) é extremamente complexa (proporção de 140/99)44; enquanto que a quinta justa é o intervalo mais simples entre duas notas distintas (proporção de 3/2). Assim, percebe-se que um movimento entre uma quinta diminuta e uma quinta justa na mesma direção não pode ser considerado como uma quinta paralela, pois se trata de dois intervalos com qualidades intrínsecas bastante diferentes.

A bordadura seguinte (ré-mi-ré), presente no início do segundo compasso do ex. nº 4-8, produz uma quinta paralela entre contralto e soprano (mi/si-ré/lá). Por essa razão, essa bordadura não pode ser empregada, pois seu uso incorreria em erro de condução de vozes. A bordadura seguinte (ré-dó- ré) está correta. Com isso, iniciando com uma bordadura ascendente, teríamos

43 É importante notar que alguns tratados de harmonia consideram incorreto esse tipo de quinta

paralela quando aparece uma quinta diminuta antes de uma quinta justa (5ªd-5ªJ). Como este tipo de movimento é comum na música coral de J. S. Bach (que é tomado como o modelo para o estudo de harmonia em estilo coral), consideraremos correto o emprego de quintas paralelas quando uma das quintas for diminuta.

44 A proporção entre duas freqüências que se relacionam por quinta diminuta é de 140/99 (se o

lá3 tem a freqüência de 440Hz, o mib4 terá a freqüência de 622Hz), ao passo que os intervalos

justos têm proporções mais simples: o intervalo de oitava justa tem a proporção de 2/1 (se lá3=440Hz, então lá4=880Hz), a quinta justa tem a proporção de 3/2 (se lá3=440Hz, então

mi4=660Hz) e a quarta justa tem a proporção de 4/3 (se lá3=440Hz, então ré4=586Hz). Essas

relações entre os sons demonstram o nível de estabilidade ou de tensão dos intervalos que os compõem. [Obs.: as freqüências não apresentam números decimais, isto é, estão anotados apenas os números inteiros que compõem as freqüências].

o seguinte movimento melódico [cf. ex. nº 4-9], na parte de contralto, no início da harmonização:

Exemplo nº 4-9

Podemos, agora, experimentar a ornamentação da voz de contralto presente no exemplo nº 7(b), isto é, iniciando com a bordadura inferior (ré-do- ré). Assim, obteríamos:

Exemplo nº 4-10

Neste caso, a primeira bordadura (ré-dó-ré) já atinge uma quinta paralela (dó/sol-ré/lá) entre contralto e soprano devendo, por isso, ser evitada; a segunda bordadura (ré-mi-ré) também produz uma quinta paralela entre tenor e contralto (lá/mi-sol/ré); a primeira bordadura do segundo compasso (ré-dó-ré) atinge a quinta entre contralto e soprano por movimento contrário e, assim, pode ser mantida; a última bordadura (ré-mi-ré), do exemplo nº 4-10, produz uma oitava direta (fá#/ré-ré/ré), entre contralto e tenor, que pode ser mantida, visto que a voz superior se movimenta por graus conjuntos. Mantendo-se somente as bordaduras que não contêm erros, tem-se o que aparece no ex. nº 4-11, abaixo:

Exemplo nº 4-11

Para a versão definitiva de nossa harmonização ornamentada, tanto poderíamos escolher a versão presente no exemplo nº 9 quanto aquela do exemplo nº 11. Poder-se-ia, ainda, combinar ambas as versões, sendo que há mais de uma possibilidade de combinação entre as duas versões, conforme se apresenta no ex. nº 4-12.

Exemplo nº 4-12

No exemplo nº 4-12, acima, aparecem quatro versões de ornamentação da voz de contralto, com base no que foi discutido anteriormente (naturalmente, ainda haveria outras possibilidades). A ornamentação presente no ex. nº 4- 12(a) é a combinação do compasso mais ornamentado de cada um dos exemplos anteriores – o primeiro compasso do ex. nº 4-9 e o segundo compasso do ex. nº 4-11. O resultado torna-se interessante pelo fato de que um compasso aparece como a inversão do outro, isto é, no primeiro compasso do ex. nº 4-12(a) tem-se a seqüência bordadura superior-bordadura inferior; no segundo compasso, tem-se a seqüência bordadura inferior-bordadura superior. Pode-se considerar a versão do ex. nº 4-12(a) muito pesada, com bordaduras em demasia em apenas uma das vozes, o que pode desequilibrar a textura geral a quatro vozes. Por isso, poder-se-ia escolher alguma das outras versões. As versões (b) e (c), do ex. nº 4-12, são similares em sua estrutura, pois em cada uma delas permanece a ornamentação no mesmo ponto do compasso: na versão (b), a bordadura é mantida na primeira metade do compasso; na versão (c), mantém-se na segunda parte do compasso. Além disso, em ambas as versões, no segundo compasso, o movimento melódico é invertido – na versão (b), há uma bordadura superior, no primeiro compasso, e uma bordadura inferior, no segundo; na versão (c) ocorre o inverso. Esses procedimentos (repetição ou imitação45 de um segmento melódico por

inversão46 e na mesma posição métrica47) são comuns nas técnicas de contraponto encontradas na música de várias épocas.

45 Entende-se, por repetição, a reprodução de um trecho musical na mesma voz ou parte; por

imitação, entende-se a reprodução de um segmento musical em outra voz ou parte.

46 A inversão consiste na execução do mesmo padrão melódico, porém em direção oposta ao

modelo original. Assim, um intervalo de segunda maior ascendente será apresentado, na inversão, como segunda maior descendente.

47 A posição métrica é o ponto do compasso em que determinada frase melódica é

apresentada. Considera-se que há três tipos de início: 1. tético, quando uma melodia inicia no tempo forte do compasso; 2. acéfalo, quando a linha melódica inicia após o tempo forte, isto é, quando se elimina o tempo forte inicial; 3. anacrúsico, quando a melodia inicia como preparação para um tempo forte, ou seja, com anacruse. Há dois tipos de desinência: 1. desinência masculina, aquela que termina em um tempo forte; 2. desinência feminina, que

Conforme ocorre na versão presente no ex. nº 4-12(d), também seria possível realizar o procedimento inverso, isto é, manter o mesmo tipo de bordadura (mantém-se a bordadura superior, neste caso48) com deslocamento

métrico49 (no primeiro compasso, a bordadura aparece na primeira metade, sendo deslocada para a segunda metade do segundo compasso). Todas essas possibilidades mantêm algumas características comuns (tipo de bordadura ou posição métrica da mesma) e modifica outras dessas características, o que tem sido considerado pelos músicos em geral como sendo um bom critério para a organização do contraponto50.

Na segunda frase da nossa harmonização da melodia coral Freu dich

sehr, também ocorrem notas imediatamente repetidas, na voz de contralto e na

voz de tenor. Vejamos como poderiam ser ornamentadas essas vozes por meio do uso de bordaduras.

No contralto, há duas repetições da nota ré; a primeira ocorre já na passagem do primeiro para o segundo compasso da frase e a segunda ocorre no penúltimo compasso da melodia. Se fizéssemos uma bordadura superior [cf. ex. nº 4-13(a)], no primeiro ré, originaria uma quinta paralela (lá/mi-sol/ré) com relação ao tenor; uma bordadura inferior, neste ponto, [cf. ex. nº 4-13(b)] seria possível, pois geraria uma quinta por movimento contrário, entre contralto e tenor e uma quinta paralela, entre contralto e baixo, em que a primeira é diminuta e a segunda é justa, o que, conforme já foi mencionado anteriormente, não implica em nenhum problema acústico. Algo similar ocorre com relação à nota ré presente no penúltimo compasso da música: a bordadura superior [cf. ex. nº 4-13(c)] implicaria em quinta paralela (mi/si-ré/lá) entre o contralto e o soprano; a bordadura inferior [cf. ex. nº 4-13(d)] poderia ser empregada, já que não incorre em erro de condução de vozes – a quinta entre contralto e soprano ocorre por movimento contrário.

Exemplo nº 4-13

Na voz de tenor, há repetição da nota sol, nos dois compassos que antecedem a cadência. Isso permite realizar bordaduras nessa voz. Vejamos a

finaliza em tempo fraco. Para evitar terminologia sexista, atualmente podem-se empregar as expressões: terminação forte e terminação fraca.

48 Seria impossível manter a bordadura inferior, pois incorreria em erro de condução de vozes

(quintas paralelas).

49 Deslocamento métrico ocorre quando um trecho melódico é apresentado pela primeira vez

em determinada posição métrica (início tético, acéfalo ou anacrúsico; terminação forte ou fraca) e posteriormente é repetido ou imitado em outra posição métrica. Por exemplo, se um tema é apresentado com início tético – |     | – e é reapresentado (repetido ou imitado) com início

acéfalo – |     |  –, considera-se que há deslocamento métrico.

50 No século XVIII, por exemplo, foi bastante difundido o princípio estético de “variedade na

possibilidade de acrescentar bordaduras, no ex. nº 4-14: em (a) ocorre uma bordadura superior que pode ser utilizada, pois produz uma quinta direta com relação ao baixo, em que a voz superior se movimenta pro graus conjuntos; já a bordadura superior presente em (b) gera quintas paralelas (lá/mi-sol/ré) entre tenor e contralto e, por isso, deve ser descartada; apesar do cruzamento de vozes que ocorre entre tenor e baixo, a bordadura inferior presente em (c) poderia ser utilizada, desde que com moderação; também está correta a bordadura inferior apresentada em (d) – note-se que uma bordadura superior (notas: sol-lá-sol), neste ponto, acarretaria quintas paralelas entre tenor e contralto.

Exemplo nº 4-14

Com o que foi discutido acima, demonstra-se que há algumas possibilidades de ornamentação através de bordaduras na segunda frase da harmonização da melodia coral Freu dich sehr.

No exemplo nº 4-15(a), realiza-se um processo imitativo entre as vozes de contralto e tenor, em que o tenor realiza imitação em stretto51 da linha de

contralto, à quinta inferior, com deslocamento métrico (note-se que o contralto inicia no tempo forte do compasso e o tenor inicia no tempo fraco). Em seguida, o contralto repete a melodia, imitando o tenor na mesma altura da primeira apresentação do ponto de imitação52, porém com a posição métrica existente no tenor – o que gera uma inter-relação interessante entre as vozes, pois a reapresentação do motivo aparece, no contralto, na mesma altura da primeira apresentação e com a posição métrica existente na imitação por parte do tenor. Este procedimento gera um pequeno stretto ao longo da segunda frase (o tenor entra com o ponto de imitação antes deste ser finalizado no contralto, que repete o mesmo motivo antes do tenor tê-lo completado).

No exemplo nº 4-15(b), aparece outro tipo de tratamento do contraponto, em que se realiza contraponto livre53 entre as partes de contralto e tenor: a bordadura inferior apresentada pelo contralto é respondida por meio de uma

bordadura dupla, no tenor. Outra maneira de analisar esse procedimento seria

dizer que a bordadura dupla da parte de tenor é emoldurada pela bordadura inferior da voz de contralto.

51 Imitação em stretto consiste na imitação de determinado trecho melódico antes que tenha

sido exposto por inteiro, isto é, a resposta inicia enquanto a proposta ainda está sendo apresentada. No ex. nº 4-15(a), o motivo imitado está assinalado por colchetes.

52 Ponto de imitação é o fragmento melódico imitado em diferentes vozes.

53 Contraponto livre consiste na livre combinação das vozes, sem a presença de uma cantus

firmus, de um ponto de imitação e sem o emprego da técnica do contraponto invertido. Note-se que, no ex. nº 4-15(b), o contraponto livre ocorre apenas entre as vozes de contralto e tenor, pois a melodia coral Freu dich sehr aparece como um cantus firmus, no soprano.

Exemplo nº 4-15

Pode-se, ainda, combinar as notas de passagem e as bordaduras discutidas anteriormente, o que amplia consideravelmente as possibilidades de ornamentação. A seguir, serão comentadas algumas dessas possibilidades.

No exemplo nº 4-16, abaixo, a preocupação principal é com relação à textura. No trecho marcado com (a), ocorre intensificação do contraponto para preparar a cadência à dominante, isto é, no primeiro compasso, somente uma das vozes (contralto) é ornamentada, sendo que a partir da metade do segundo compasso inicia-se um processo de bicínio, em que as vozes são ornamentadas de duas a duas até a conclusão da frase; esse processo provoca um adensamento da textura para preparar a cadência à dominante. Na segunda frase, a textura se torna mais transparente, pois somente uma voz é ornamentada em cada momento. São empregados os seguintes procedimentos: em (b) ocorre contraponto livre; em (c) se realiza um típico movimento cadencial, em que a nota repetida (ré, do penúltimo compasso) é ligada54 e, posteriormente, cede lugar à sétima, que aparece como nota de

passagem.

Exemplo nº 4-16

No exemplo nº 4-17, ocorre trabalho de elaboração motívica mais aprofundado, isto é, cada um dos recursos ornamentais são empregados com o sentido de produzir interesse temático nas vozes inferiores. A voz de contralto repete um motivo (ré-dó-ré) que termina por se tornar característico desta versão, pois é repetido diversas vezes: é apresentado em (a) e é reiterado na segunda frase, no primeiro e no penúltimo compasso. Outro trabalho motívico está indicado pela letra (b): um ponto de imitação aparece na voz de tenor (na segunda parte do c. 2) e é imitado por inversão, no contralto – note-se que a série de intervalos apresentada na parte de contralto, entre a segunda metade do c. 3 e a primeira metade do c. 4, está invertida com relação ao o tenor, no compasso anterior. Em (c), ocorre aquele processo imitativo já comentado anteriormente, em que o tenor realiza imitação à quinta inferior com

54 Neste caso, a nota ré do contralto está escrita como semínima pontuada, em vez de ser uma

deslocamento métrico, conforme indicam os colchetes. Isto gera um processo de compensação com relação à imitação que ocorre em (b), pois, se em (b) é o contralto que imita o tenor, em (c) é o tenor que imita o contralto.

Exemplo nº 4-17

Vistas várias possibilidades de uso de notas de passagem e bordaduras, pode-se passar para o emprego de suspensões na harmonização da melodia coral Freu dich sehr.

Sempre que uma nota se movimenta por graus conjuntos descendentes, no encadeamento de um acorde a outro, podem ser aplicadas suspensões. Tem-se que ter os mesmos cuidados de evitar quintas e oitavas paralelas ou ocultas que nos casos anteriores. Por esta razão, ao longo dos séculos XV a XVIII, a técnica da suspensão (estudada na quarta espécie de contraponto) consistia em resolver a dissonância em uma consonância imperfeita (terça ou sexta), o que, por si só, já elimina quintas ou oitavas paralelas, em contraponto a duas vozes, pelo fato de que esses intervalos não estão presentes quando se trabalha com consonâncias imperfeitas. Quando se está trabalhando com textura a quatro vozes, porém, a preocupação de “resolver a suspensão em uma consonância imperfeita” deixa de ser necessária, pois sempre haverá consonâncias imperfeitas quando se empregam tríades completas a quatro vozes. O principal cuidado é que os intervalos de quinta ou oitava, presentes nas demais vozes, sejam conduzidos por movimento contrário à resolução da suspensão. Se, na condução de vozes original (sem ornamentação) há quintas ou oitavas diretas, o contraponto poderá resultar em quintas ou oitavas paralelas quando se aplica o processo de suspensão.

Os comentários a seguir, com base em resoluções adequadas e impróprias de suspensões, esclarecerão o problema. Logo no início da nossa harmonização da melodia coral Freu dich sehr, a voz de tenor se movimenta descendentemente. Como foi mencionado anteriormente, sempre que uma voz se movimenta descendentemente, podem ser acrescentadas suspensões a esta voz. Quando há várias suspensões em seqüência, costuma-se denominar o conjunto de cadeia de suspensões. Conforme se estuda no contraponto de quarta espécie, a suspensão implica na sincopação da voz em questão (por isso, também se chama contraponto sincopado). Isso significa que se poderiam aplicar síncopes à parte de tenor e resolvê-las como suspensões, no início da nossa harmonização, conforme demonstra o exemplo nº 4-18.

Há duas maneiras de escrever estas síncopes: como no exemplo nº 4- 18(a), que é a maneira realizada nos estudos de contraponto, em que as notas são escritas ligadas; e como no exemplo nº 4-18(b), em que as ligaduras são

No documento HARMONIZAÇÃO DE MELODIA (páginas 38-59)

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