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III. Os nomes indígenas da freguesia do Brás

III.1. A toponímia de origem indígena no Brasil

III.1.1. Os cursos d’água e a hidrotoponímia

Os rios são de grande valia na manutenção dos povoados. O homem fixa-se às suas margens por lhe oferecerem “a fertilidade dos vales aluvianos, a abundância do pescado e da caça, as argilas plásticas para os utensílios domésticos, o suprimento de água potável”. (Nóbrega, 1981, 39) Ao mesmo tempo, enquanto localizados em região pouco conhecida, os cursos d’água são caminhos vicinais, e trilhas são criadas às suas margens.

Os hidrônimos da freguesia do Brás, após findar o período de bilingüismo, cristalizaram-se. Por ser uma língua aglutinante, muitos mantiveram o elemento geográfico fixado aos antigos apelativos indígenas. O principal curso d’água, o rio Tietê, limite da freguesia do Brás a norte, ilustra este processo:

tietê rio Tietê

hidrônimo (elemento geográfico)

hidrônimo / hidrotopônimo (toponimização de elemento geográfico) [rio verdadeiro46]

>

[rio + Rio Verdadeiro]

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A etimologia é de Teodoro Sampaio (1928, 324): “Tietê, c. tié-etê, o verdadeiro tiê. Pode o mesmo vocabulo proceder de ty-etê que significa – rio bastante fundo, rio verdadeiro, consideravel. S. Paulo”. Interpretou-se tal designação como hidrotopônimo, e não zootopônimo, conforme possibilidade de interpretação do topônimo, a partir de trabalhos de Dick (2004a, 49).

Neste caso, observa-se a toponimização do elemento geográfico por desconhecimento do significado original do nome, sendo que o hidrotopônimo atribuído é equivalente ao novo termo geográfico.

Todos os designativos indígenas cristalizados na freguesia do Brás são de caráter eminentemente descritivo. Restaurar tais topônimos é resgatar as características físicas e funções dos espaços, a despeito da mudança no ambiente. Dick (1996, 36) aponta que a descritividade de antigas designações seria um dos fatores de sua fixação:

De fato, os nomes dos rios, assim como os aplicados aos acidentes orográficos, costumam ser, universalmente, os mais antigos registros que a língua e a toponímia empregam. Avessos a mudanças, quase sempre não costuma haver, em relação a eles, tentativas alteradoras. Arraigam-se ao terreno porque, costumeiramente, refletem circunstancias típicas, ou do próprio acidente, em sua natureza intrínseca, ou dos locais que percorrem, incorporando ao nome os elementos regionais característicos.

Nomeações realizadas a partir de hidrônimos são comuns. Por tais características, mantêm relação direta com os povoadores e vitalidade no processo de designação dos povoados. Basta citar que dois aldeamentos criados além dos limites, a leste do núcleo, tomaram por referencial o rio Paraíba: Aldêa de S. Jozé da Parahyba (DI, XXIII, 399) e aldêa da Escada do rio Parahyba (DI, LV, 114). Por outro lado, os principais hidrônimos47 perdem sua capacidade de referencializar e deixam de integrar o sintagma toponímico quando se amplia a rede de comunicação, como ocorreu com ambos os aldeamentos.

Na freguesia do Brás, contudo, os cursos d’água eram, em geral, pouco extensos, tributários do Tamanduateí e do Tietê e seus subafluentes, o que ampliou as chances de manutenção como referencializadores por longo período. Alguns topônimos indígenas, entretanto, nunca figuraram designação propriamente dita, por não singularizarem o

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O rio Tietê, utilizado até o século XVIII em expedições ao interior do Brasil, exemplifica, claramente, este processo. Citado exaustivamente em documentos antigos, dos 645 municípios do Estado de São Paulo, apenas 3 o integram em sua designação, mas nenhum a recebeu antes do século XIX: Igaraçu do Tietê (formado em meados do século XIX e o nome, contudo, é de 1903), Mineiros do Tietê (formado em meados do século XIX; recebe em 1875 o nome de ‘bairro dos Mineiros’; em 1891 é criado o distrito de paz de ‘Capela de Mineiros’; o designativo é reduzido para ‘Mineiros’, em 1899, quando elevado à categoria de município, sendo alterado para ‘Mineiros do Tietê’, em 1944) e Tietê (povoado formado no fim do século XVII com o nome ‘Pirapora’; elevado à freguesia em 1811 com o nome de ‘Santíssima Trindade de Pirapora’; recebe a designação ‘Tietê’ em 1867, quando elevada a categoria de cidade). (fonte: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/saopaulo)

espaço, mas se mantiveram como elemento geográfico encontrado em diferentes pontos do terreno. Tem-se, por exemplo, a lexia tietequera48 – os tietês – que indicava trechos nos quais as águas do Tietê se espraiavam nos períodos de cheia e, nos períodos de seca, formavam pequenos cursos d’água intermitentes.

Assim como o rio Tietê, o afluente ribeirão Maranhão foi re-designado e teve, por novo elemento geográfico, termo equivalente ao seu significado: “Maranhão, corr. mbará- nhã, o mar corrente; o grande caudal que simula um mar a correr.” (Sampaio: 1928, 262)

Identificou-se esta denominação nos Registros de Terras (declarados entre 1854 e 1856), nas Atas da Câmara49 (entre 1875 e 1881) e na Planta da Comissão Geográfica e Geológica50 (1914), sendo que, nestes dois últimos, os designativos são resultantes de translação toponímica, sem incorporação do elemento geográfico em português.

Nos Registros de Terras, declarou-se a variante de Maranhão – Maranhanha: * sítio (chamado) Maranhão (RT 94); sítio denominado Maranhão (RT 101);

* ribeirão Maranhão (RT 25); [ribeirão Maranhão (RT 94, 117) verificar!]; ribeirão denominado Maranhão (RT 94); ribeirão chamado Maranhão (RT 102); córrego chamado Maranhão (RT 117);

* Maranhão (RT 117); Maranhanha (RT 48); lugar denominado Maranhanha (RT 49); Bairro Maranhanha (RT 45);

* Pátio do Maranhão (RT 25).

O topônimo Maranhão é indicado em maior freqüência como designativo e, também, a forma que se encontra fixada em outras regiões brasileiras, como, por exemplo, em subafluente do rio Paraopeba (MG) e na região nordeste brasileira (Estado do Maranhão). Rodolfo Garcia, quanto a maranhão como termo geográfico, afirma que

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No Mapa de Gomes Cardim (1897), anotou-se TIETEQUERA em duas curvas do rio Tietê. Trata-se de tietê+cuéra, sendo o segundo termo que compõe a lexia um adjetivo que, segundo Sampaio (1928, 26 e 192), significa “velho, antigo; o que já foi, o passado; velhaco, experto, entendido”, mas que também podia ter função de plural para substantivos, adquirindo significado de “repetido, reiterado, multiplicado”.

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Tratam-se das seguintes indicações: bairro denominado Maranhão (ACSP, LXI, 139); Maranhão (ACSP, LXV, 146); bairro do Maranhão (ACSP, LXVII, 137).

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O bairro MARANHÃO está indicado entre o rio Aricanduva e ribeirão Maranhão, sendo que os hidrônimos não são indicados na Planta.

A terminação a é freqüentemente mais ou menos nasal. Maranhãozinho, em Português, nome de uma queda do rio Tapajós, é o mesmo que Paraná-miri, ou pequeno rio. Paraná-pitina é o nome nativo do rio Amazonas, mas quasi de modo invariável o índio diz simplesmente Parana (paranan), o mar. Não pode haver dúvida, penso eu, que o português maranhão e o espanho marañon, são simples formas modificadas do paraná tupi. (apud Hartt: 1937, 311)

Se na década de 1850, quando os Registros de Terras foram declarados, ainda não se encontravam cristalizados os topônimos da região, tanto os de origem portuguesa quanto indígena, nota-se a tendência à escolha entre as variantes.

Todas as menções a Maranhanha, desta forma, dizem respeito à denominação de bairro, cuja variação é verificada não em relação à margem do ribeirão/córrego ou distância/proximidade em relação a este51, mas aos registros cuja propriedade mais antiga pertencia a Carlos Abraão Bresser. Apesar de não ser possível anuir sobre qual das variantes seja a mais antiga, a decomposição de Maranhanha revela que se trata dos mesmos elementos que compõem a lexia, só que com intensificação do adjetivo por duplicação: mbará + nhá + nhá52 (Sampaio: 1928, 27).

A existência de variantes revela que se tratava de topônimo antigo e conhecido na localidade, a ponto de não gerar dúvidas quanto ao referencial. Como curso d’água, tal denominação não se mantém referencializadora, sendo raramente citada em registros e em mapas. Nas Atas da Câmara, as menções a Maranhão remetem apenas ao bairro e são realizadas por indicação da estrada da Penha ou como alto do Tatuapé (ACSP, LXV, 146), senão as duas, o que revela, por sua vez, que se tratava antes de uma designação local do que um referencial mais amplo.

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A disposição das propriedades declaradas em relação à estrada da Penha (EP) e ao ribeirão Maranhão (RM) é a seguinte: lado esquerdo EP / lado esquerdo RM – sítio (chamado) Maranhão (RT 94), sítio denominado

Maranhão (RT 101), ribeirão denominado Maranhão (RT 94), córrego chamado Maranhão (RT 117), Maranhão (RT 117), Maranhanha (RT 48), lugar denominado Maranhanha (RT 49), Bairro Maranhanha

(RT 45); lado direito EP / lado esquerdo RM – ribeirão chamado Maranhão (RT 102); lado esquerdo EP / lado direito RM – ribeirão Maranhão (RT 94, 117) verificar, ribeirão Maranhão (RT 25), Pátio do

Maranhão (RT 25). 52

A duplicação em tupi era, constantemente, utilizada como intensificador (Sampaio: 1928, 27), perceptível na designação butantã, “corr. yby-tantã, a terra dura, firme; designa tambem, em outr’óra, na lingua geral, em contacto com os portugueses – a taipa, o muro de terra socada” (Sampaio: 1928, 171). A respeito deste topônimo, atualmente designação de bairro paulistano, Dick (2004a, 49) informa que já era conhecido no seiscentismo, início do setecentismo.

Tais características foram, igualmente, percebidas em outras duas designações de procedência indígena, re-designadas com a introdução de novos elementos geográficos: Putinga/Ipotinga53 e Uberaba/Verava54. Pelo cotejamento de Registros de Terras, demonstra-se que ambos os pares de variações indicavam, cada qual, um único referencial: * Local: Putinga (RT 31); córrego, chamado – Ipotinga (RT 31), córrego do – Putinga (RT 32).

* cabeceira de Uberaba (RT 16); córrego do dito Uberaba (RT 16), rio chamado Uberaba (RT 126), ribeirão chamado Verava (RT 89); Local: Cabeceira do Uberaba (RT 12B), Local: Uberaba (RT 16 e 33). 125 126

Nota-se que a variação Putinga/Ipotinga é anotada num mesmo Registro e que diferentes parassinônimos de termos geográficos de hidrônimos – córrego, rio e ribeirão –, foram mencionados para o hidrônimo Uberaba/Verava, o que indica que os elementos geográficos ainda não haviam se fixado. Além disto, verificou-se a variante verava não foi mencionada por Teodoro Sampaio (1928, 334) em seu glossário, podendo ser ocorrência única.

O hidrônimo Ipiranga, por sua vez, afluente esquerdo do ribeirão Aricanduva, encontrava-se cristalizados na freguesia do Brás, sendo utilizado como referencial em processo de translação toponímica:

* córrego chamado Ipiranga (RT 81, 89); * barroca chamada do Ipiranga (RT 126); * subida do morro do dito Ipiranga (RT 33).

Quando a região passa a integrar efetivamente a rotina de São Paulo, as barreiras impostas pela várzea do Carmo e pelo ribeirão Tamanduateí são minimizadas. A ampliação

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Iputinga significa a nascente branca. Trata-se da composição formada pela corruptela de “ypú ou y-bú, a agua surge; o minadouro, a fonte, o olho d’agua” (Sampaio: 1928, 348) e por tinga, branco.

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Afluente esquerdo do ribeirão Aricanduva, sendo limite dos bairros Fonseca e Caguaçu. Eram seus afluentes os córregos Ipiranga, Boçoroca e Passagem. O topônimo Uberaba / Verava (y-beraba) significa “a agua brilhante, clara, transparente, crystalina” (Sampaio: 1928, 334)

dos limites referencializadores invalidou este designativo, em contraposição a hidrônimo homônimo55, a sul do núcleo.

A denominação que substituiu córrego Ipiranga foi Córrego da Porteira Grande (Mapa Sara Brasil, 1930), remetendo a elemento conhecido, como se verifica em porteira que está sobre o córrego chamado Ipiranga e porteira velha (RT 89). A referência ao antigo hidrônimo manteve-se apenas em afluente: Córrego Ipiranguinha (Mapa Sara Brasil, 1930).

III.1.2. A flora e a fauna da freguesia do Brás e a cristalização da fitotoponímia e