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Os Geraizeiros

No documento IGOR SIMONI HOMEM DE CARVALHO (páginas 107-110)

Capítulo 2 Contextualizando: o campesinato e a conservação do Cerrado no Norte de Minas

2.5. Os Geraizeiros

Às populações que ocupam as áreas de Cerrado do Norte de Minas, ou seja, os “Gerais”, dá-se o nome de geraizeiras, ou também geralistas (DAYRELL, 1998; RIBEIRO, 2005; NOGUEIRA, 2009). A menção a este “povo dos Gerais” foi feita por João Guimarães Rosa, e também em trabalhos como os de Luís Flores de Morais do Rêgo, de 1945, e de Donald Pierson, de 1972 (NOGUEIRA, 2009). O termo “Gerais” pode se referir a uma enorme região que compreende a metade norte do estado de Minas Gerais e o oeste da Bahia (NOGUEIRA, 2009), compreendendo ainda regiões de Goiás, Tocantins (NOGUEIRA, inf.pess.) e até mesmo os cerrados do Piauí (MORAES, 2009). Podemos, entretanto, identificar uma região menor, onde o processo de re-significação e apropriação da identidade geraizeira está ocorrendo com maior força, compreendendo as chapadas que margeiam a Cadeia do Espinhaço, em especial nos municípios de Rio Pardo de Minas, Riacho dos Machados, Grão Mogol, Bocaiúva e Montes Claros, e municípios vizinhos a estes.

O trabalho de Dayrell (1998) estabelece um marco da identificação da cultura geraizeira, sob os enfoques da agroecologia e da etnoecologia. Subsidiariamente, os trabalhos de Ribeiro (2005, 2006) ajudaram a compreender a história e a cultura desse povo do Cerrado mineiro. Mais recentemente, o esforço etnográfico empreendido por Nogueira (2009) dá aos Geraizeiros o status de “um grupo culturalmente particular e vinculado ao Cerrado de maneira especial e politicamente relevante” (NOGUEIRA, 2009:8). A autora identifica seus hábitos e práticas tradicionais, re-significados a partir da confrontação ante a invasão de seus territórios pelo monocultivo de eucalipto, e ante a entrada de novos atores (como a academia) e conceitos (como o de “população tradicional”) em seu “mundus”. Para ela, “a adesão à categoria populações tradicionais tem propiciado aos Geraizeiros uma experiência de crescente auto- respeito, valorização e intensificação cultural” (NOGUEIRA, 2009:197).

Dentre as práticas agrícolas tradicionais dos Geraizeiros está o cultivo em pousio, análogo aos sistemas milenares de roça-de-toco, coivara ou slash-and-burn (FUJISAKA et al., 1996; RIBEIRO, 2002). Tal sistema consiste na derrubada de uma área de mata (“capão”), que, após seca, era queimada. As cinzas adubavam o solo e reduziam sua acidez, disponibilizando nutrientes para os cultivos aí introduzidos: milho, feijão, mandioca, entre outros. O Sr. José dos Córregos, em depoimento a Dayrell (1998), afirma que “sem cinza nos gerais, não vai!”.A mesma área era cultivada por 2 a 3 anos, e depois deixada em “pousio”, sendo tomada pela vegetação nativa, enquanto umanova área era aberta para a repetição do processo. As áreas

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em pousio (chamadas capoeirinha, capoeira ou capoeirão, dependendo do tempo de descanso) eram retomadas para cultivo após um período variável – entre 3 e 15anos, de acordo com a disponibilidade de terras e com as características do solo e da vegetação (RIBEIRO, 2002;NOGUEIRA, 2009). A área descansava “até formar cinza”, isto é, até a vegetação nativa crescer o suficiente para que, quando fosse queimada novamente, a biomassa fornecesse os nutrientes necessários ao novo cultivo (DAYRELL, 1998).A paisagem local ficava formada assim por um “mosaico produtivo”, composto por roças novas, roças velhas e áreas de pousio (Nogueira, 2009). Importante notar que, para se abrir uma área de roça, o desmate era seletivo, procurando-se deixar vivas as espécies nativas úteis, e deixando os “tocos”, facilitando assim a rebrota.Tal sistema permitia a recuperação dos solos, e, enquanto havia terras disponíveis, era sustentável (DAYRELL, 1998; RIBEIRO, 2002;NOGUEIRA, 2009). O sistema tradicional geraizeiro de “derrubada e queima” era mais factível até o início da década de 1970, quando as terras ainda eram soltas e comportavam o crescimento das famílias. Atualmente, entretanto, a disponibilidade de terras é pequena, e o uso do fogo seguidamente em uma mesma área de cultivo provoca o empobrecimento do solo(DAYRELL, 1998).

Os Geraizeiros tinham disponíveis, para os cultivos, variedades agrícolas locais (crioulas), selecionadas por gerações e adaptadas às condições ambientais específicas – clima, micro-clima, tipo de solo – e a outras características, como sabor e tamanho. Ribeiro (2005) nos remete às observações de Spix & Martius sobre a variedade de milho “catete”, que dava duas safras por ano, e de Saint-Hilaire, que apontava uma produtividade de 200 por 1 nos milharais do Sertão Mineiro do início do século XIX, produtividade essa muito próxima da média atual para Minas Gerais. Na comunidade de Córregos (Riacho dos Machados-MG), pesquisada por Dayrell (1998), foram encontradas 14 variedades de cana e 23 de mandioca. Os feijões comportam diferentes espécies – feijão-de-arranque (Phaseolus vulgaris), feijão-catador (Vigna

unguiculata), feijão-guandu (Cajanus cajan, localmente conhecido como “andu”) e fava (Vicia faba) – sendo que cada uma possui diferentes variedades. Além desses cultivos, muitos outros

se apresentam característicos à cultura geraizeira, e de grande valor à segurança alimentar e à economia das famílias do Norte de Minas: abacate, abacaxi, abóbora, alface, algodão arbóreo, amora, amendoim, arroz, banana, café, cajá, inhame, jabuticaba, laranja, limão, manga, quiabo, urucum.

Enquanto os cultivos anuais são feitos nas “roças”, as espécies arbóreas são plantadas próximas aos quintais, formando o que se chama de pomar ou “chácara”. Mas, outra característica da agricultura geraizeira é justamente o plantio “misturado”, onde espécies anuais

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e perenes, arbustivas e arbóreas, são plantadas em um mesmo espaço. Muitas vezes, são feitosconsórcios propositais, dado o conhecimento sobre o auxílio que uma espécie pode dar a outra. Assim, consorcia-se o milho com favas e feijões, e estes às vezes com a mandioca; o café, em geral, é sombreado pelas bananeiras; e assim por diante (DAYRELL, 1998; NOGUEIRA, 2009).

É no “terreiro”, ao redor da casa, que são instaladas as “criações miúdas”, especialmente suínos e aves, e eventualmente caprinos e ovinos. Numa casa tradicional geraizeira, no terreiro se encontram também engenho, forno de barro, monjolo, tenda de farinha, pilão e “escaroçador” (pequeno engenho para extração da garapa de cana). O quintal se completa ainda com canteiros para hortaliças e plantas medicinais, além das plantas ornamentais ao redor da casa.Próximo da casa também está a o curral e a “manga”, área cercada pequena destinada aos cuidados com vacas paridas e bezerros e à guarda do gado e de eqüinos (RIBEIRO, 2006; NOGUEIRA, 2009).

A unidade produtiva geraizeira típicaé então constituída por: terreiro, chácara, roças e mangas (NOGUEIRA, 2009). De forma complementar, estão as áreas de uso comum, utilizadas para solta de animais, extrativismo, caça e pesca. Muitos Geraizeiros relatam o costume da pesca feita em armadilhas herdadas dos indígenas, que capturavam, por exemplo, piaba, traíra, bagre. A caça era constituída por tatus, veados e aves diversas. Tanto a pesca quanto a caça são hoje raras, devido à diminuição dos recursos hídricos e dos animais (NOGUEIRA, 2009). O uso de áreas de chapada, para extrativismo e solta do gado, é um elemento marcante na identidade geraizeira, e sobre tais atividades aprofundaremos mais adiante. Vale aqui mencionar que, tanto para o uso de áreas comuns, quanto para as áreas de roça, haviam acordos (dinâmicos e informais) que estabeleciam os limites de uso, direitos e deveres de cada família (NOGUEIRA, 2009).

As populações geraizeiras não viviam totalmente isoladas: comercializavam excedentes nas feiras das cidades e povoados mais próximos, e dependiam de alguns recursos que não podiam produzir, como o sal. Um elemento forte na identidade geraizeira dos municípios de Riacho dos Machados e Rio Pardo de Minas é a participação nas feiras livres de Porteirinha- MG. O espaço de troca e convivência dessas feiras foi, historicamente, essencial no estabelecimento de relações de alteridade (com os Caatingueiros), de solidariedade e de socialização com outras comunidades. Em um dos mercados de Porteirinha, os feirantes dos Gerais tinham um lugar separado especificamente para eles, no qual ofereciam produtos típicos

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como rapadura, farinha e goma de mandioca, óleo de pequi, panã, coquinho-azedo, plantas medicinais, feijão e hortaliças diversas (DAYRELL, 1998).

Assim, a economia Geraizeira, e camponesa do Norte de Minas como um todo, sempre desempenhou papel fundamental nas auto-suficiências locais, e também na dinâmica econômica regional, apesar de sua invisibilidade (LUZ DE OLIVEIRA et al., 2011). Entretanto, a economia e modo de vida tradicional dos Geraizeiros foram bruscamente impactados pelo processo de “modernização”. Até os anos sessenta, as fazendas não eram cercadas, e a população rural tinha acesso a grandes áreas de Cerrado, onde praticavam: o cultivo em sistema de pousio (rotativo), que permitia a recuperação dos solos por até 10 anos;a criação de gado na “solta”, ou seja, nas extensas pastagens nativas; e a coleta de frutas, plantas medicinais e lenha (DAYRELL, 1998; RIBEIRO, 2005).

No documento IGOR SIMONI HOMEM DE CARVALHO (páginas 107-110)