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2 CAMINHOS METODOLÓGICOS

4. A REGIÃO SEMIÁRIDA E OS GRANDES EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS

4.2 OS GRANDES EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS DO SÃO FRANCISCO: CONCEPÇÃO E IMPLANTAÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA ITAPARICA

4.2.1 Os Grandes Empreendimentos Hidrelétricos do Rio São Francisco

O setor hidrelétrico nacional, até 1945, era predominantemente dominado pelo capital estrangeiro, cujo fornecimento de energia era realizado através de pequenas usinas hidrelétricas. Entretanto, era difícil a situação de abastecimento de energia elétrica no Brasil, particularmente no Nordeste, onde eram frequentes os racionamentos de energia, em razão, sobretudo, da produção de energia estar voltada para o consumo do setor industrial. Associada a essa crise, havia também uma noção generalizada de que o país não podia se subordinar aos interesses das empresas privadas de geração de energia.

Em meio a esse período de crise e de forte nacionalização, o Governo Federal, cria a Chesf, haja vista o interesse da União de desenvolver projetos de grande envergadura. Em 03 de outubro de 1945, o presidente Getúlio Vargas, através do Decreto – Lei nº 8.031, autoriza o Ministro da Agricultura, Apolônio Sales, a organizar a empresa. A constituição da Chesf, entretanto, foi retardada pela deposição de Vargas em outubro de 1945, só vindo a ocorrer em 15 de março de 1948, quando o presidente Eurico Gaspar Dutra autorizou o estabelecimento da primeira empresa pública de eletricidade do país (BRANDI, 2009).

O Decreto nº 19.706 concedeu a Chesf a licença, pelo prazo de 50 anos, para efetuar o progressivo aproveitamento industrial da energia hidráulica do São Francisco no trecho entre Juazeiro (BA) e Piranhas (AL), assim como autorização para fornecer energia elétrica aos concessionários de serviços públicos e realizar a distribuição direta de eletricidade para uma grande parte do Nordeste. Esse mesmo decreto também fixou atribuições, obrigações e delimitou a área de atuação da Companhia. A área delimitada compreendia um círculo de 450 km de raio em torno de Paulo Afonso (Figura 5), abarcando 347 municípios dos estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, constituindo 516 km2 (AZEVEDO, 2008).

A Chesf, cuja sede funcionou no Rio de Janeiro até 1975, iniciou a construção da Hidrelétrica de Paulo Afonso (PA – I) em fevereiro de 1949, tendo a frente dos trabalhos os engenheiros Otávio Marcondes Ferraz e Antônio José Alves de Souza. A construção dessa grande UHE no Sertão nordestino foi marcada por vários desafios.

Um dos principais desafios enfrentados foi o desvio do rio, em seu trecho encachoeirado, em razão do grande volume de água que deveria ser contido. Para tanto, os engenheiros propuseram uma solução subterrânea para o aproveitamento das águas de Paulo Afonso.

Seu projeto compreendia a construção de duas barragens de pequena altura (15 m) em forma de funil, uma toma d‟água no vértice das barragens, túneis de adução escavados na rocha, uma casa de máquinas subterrânea com três unidades de 60 megawatts (MW) e, finalmente um túnel de descarga, desaguando no cânion do São Francisco (BRANDI, 2009, n.p).

Figura 5 – Área de Atuação da Chesf em 1945

Fonte: Relatório da Chesf, 1945 Extraído de Azevedo, 2008, p. 52

A proposta apresentada previa que as barragens projetadas fossem aproveitadas em futuras ampliações do sistema, mediante a construção de mais duas tomadas d‟água e as respectivas casas de máquinas também subterrâneas. A medida se revelou acertada tanto do ponto de vista econômico, com o preço do kW calculado em 110 dólares, um valor abaixo do praticado no mercado, como técnico, haja vista que posteriormente foram construídas as hidrelétricas Paulo Afonso II e III.

As obras da UHE foram concluídas em setembro de 1954, com o represamento do rio e o início do enchimento do reservatório. Em dezembro, entraram em operação as duas primeiras unidades geradoras, iniciando-se a distribuição de energia. Em 15 de janeiro de 1955, o presidente João Café Filho inaugura oficialmente a UHE Paulo Afonso, com capacidade total instalada de 180 mW (AZAVEDO, 2008). A energia gerada foi destinada, prioritariamente, às capitais e às maiores cidades nordestinas (Recife, Salvador, Aracaju, Maceió, Campina Grande e João Pessoa) situadas na área de atuação inicial da Chesf.

Em meados dos anos 1950, o Brasil passou por um acelerado processo de industrialização, que exigiu grandes investimentos em infraestrutura básica para auxiliar o crescimento da indústria nacional. Surgem, então, as políticas setoriais e os planos de

investimentos, como os grandes projetos que comportavam empreendimentos de grande porte, a exemplo das hidrelétricas, e que foram elaborados como forma de implementar a infraestrutura necessária à industrialização e, também, como meio de levar o desenvolvimento às regiões em que foram instalados (BORTOLETO, 2001).

Nesse contexto, em razão do aprofundamento das desigualdades advindas do processo de acumulação, ganhou relevância a questão regional no Brasil. Dessa forma, fazia-se necessário o controle do território para assegurar a hegemonia do desenvolvimento nacional, cuja efetivação passou a ocorrer a partir da gestão das regiões.

Iniciou-se, assim, o planejamento regional no Brasil com a fundação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959, seguida pela criação de outras superintendências nas demais regiões brasileiras. A fundação dessas instituições visava reduzir as desigualdades regionais, mediante políticas de incentivos fiscais e financeiros às atividades que fossem implantadas na região (BORTOLETO, 2001). Os vários planos de desenvolvimento nacional, entretanto, não evidenciavam uma real preocupação com as desigualdades do processo de desenvolvimento, haja vista que a proposta desses planos era proporcionar o crescimento econômico do país.

Diante desse quadro, o setor elétrico, cuja potência instalada de energia hidráulica em 1956 era de 2.875 mW, tratou de promover medidas para ampliar a capacidade de geração e transmissão de energia. A Chesf deu continuidade ao processo de expansão de seu parque gerador com a construção da segunda usina, a Paulo Afonso II (PA – II). As obras tiveram início em 1955, mas foi só em 1961, quando o sistema já enfrentava problemas de sobrecarga, que duas unidades geradoras da usina, com 75 mW cada, entraram em operação. A capacidade total instalada da usina só veio as ser alcançada em 1968, adicionando ao sistema 480 mW. Esse pleno aproveitamento foi garantido pelo reservatório de Três Marias (MG), construído pela Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig) no curso superior do rio São Francisco (AZEVEDO, 2008; BRANDI, 2009).

Em 1962 é fundada a Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras), subordinada ao Ministério de Minas e Energia, e a Chesf, outrora diretamente ligada ao Governo Federal, passa a condição de subsidiária dessa holding do sistema elétrico nacional. Nesse período, as empresas do setor hidrelétrico foram expandidas, acentuando a participação do setor público. O Estado passou a intervir em todos os segmentos da indústria de energia elétrica, contribuindo para o reordenamento dos serviços de distribuição de eletricidade no Nordeste e estimulando a formação de empresas públicas estaduais.

Em 1964, o Brasil vivenciou uma turbulenta fase da sua história, com a instalação de uma crise político-institucional e financeira, que culminou com a deposição do Governo do presidente João Goulart e a implantação do regime militar no país, caracterizado pelo autoritarismo repressivo e pelo controle institucional. Nesse mesmo ano, o presidente Humberto Castelo Branco amplia a área de atuação da Chesf, passando a abranger as localidades situadas no círculo de 700 km de raio em torno de Paulo Afonso. Em 1965, a energia gerada pela Chesf chegou a Fortaleza e em 1969 o fornecimento de eletricidade chegou ao Parnaíba no Piauí.

No final dos anos 1960, o planejamento regional brasileiro, baseado na teoria dos polos de desenvolvimento, buscou atingir todo o território nacional, através do desenvolvimento de uma política centralizada de implantação de programas especiais de inserção regional. Na década seguinte, anos 1970, foram criados programas especiais que geraram fortes impactos sócio-espaciais. Datam desse período, o Polo Petroquímico de Camaçari na Bahia, o Polo Cloro químico de Alagoas, o Polo de Alumínio no Maranhão, os Projetos Carajás e Calha Norte na Amazônia, o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agropecuária do Norte-Nordeste (PROTERRA) e os Projetos de Culturas Irrigadas no Vale do São Francisco (AZEVEDO, 2008; BORTOLETO, 2001).

Diante disso, fazia-se necessário expandir a oferta de energia elétrica e a construção de hidrelétrica foi amplamente estimulada pelo Estado. Assim, enquanto infraestrutura necessária ao processo de industrialização, as grandes hidrelétricas foram consideradas indispensáveis e tecnicamente mais adequadas para a produção de energia elétrica, em razão da abundância dos recursos hídricos brasileiros que possibilitava um amplo aproveitamento hidrelétrico.

As hidrelétricas, enquanto integrantes dos grandes projetos, além da produção de energia elétrica, tornaram-se o meio de expansão de novas técnicas para a produção nacional. Todavia, apesar desses grandes empreendimentos terem sido difundidos sob o prisma da modernização e do desenvolvimento, o que se constata são seus graves efeitos, desencadeando problemas econômicos, sociais e ambientais.

Nesse contexto, cresce a demanda de energia para o Nordeste, provocando a expansão do complexo hidrelétrico de Paulo Afonso. Em 1966, a Chesf inicia a construção da Usina Paulo Afonso III (PA – III). Em 1971 entram em funcionamento as primeiras unidades da usina PA – III, fazendo a Chesf superar a marca de um milhão de quilowatts de potência instalada. A usina foi oficialmente inaugurada em 1972, mas foi só em 1974 que foi concluída a montagem do conjunto de máquinas, atingindo a capacidade instalada de 864 mW (AZEVEDO, 2008; BRANDI, 2009).

A Chesf, ainda nesse período, constrói mais duas usinas e consolida a formação do complexo hidrelétrico de Paulo Afonso. A construção da usina de Moxotó teve início em 1971, com a construção da barragem e a formação de um reservatório para a regularização da vazão do rio São Francisco. A usina entrou em operação em 1977, com 440 mW de potência. Em 1972 teve início à construção da maior usina subterrânea do País, a Paulo Afonso IV (PA – IV), constituída por um pequeno reservatório de compensação ligado ao lago de Moxotó por um canal de 5 km de extensão escavado na rocha. Inaugurada em 1979, a usina demorou, entretanto, quatro anos para completar sua capacidade total de 2.460 mW(BRANDI, 2009).

Em paralelo à construção da usina PA – IV, a Chesf empreendeu a construção UHE Sobradinho, cujas obras tiveram início em 1973 e demoraram cerca de cinco anos para serem concluídas. A barragem de Sobradinho formou um dos maiores reservatórios do mundo, desencadeando o deslocamento de quase 64 mil pessoas e a reconstrução de várias cidades e localidades. Em 1978 ocorreu o enchimento do reservatório, permitindo a regularização plurianual da descarga do rio São Francisco. A usina entrou em operação em 1979, mas a sua capacidade total só foi completada em 1982, atingindo 1.050 mW (BRANDI, 2009).

Nos anos 1970 teve início também à construção da UHE Itaparica, cujas obras iniciadas em 1979 se inseriram num contexto mundial de escassez energética e de necessidade do Estado militar de suprir o aumento das demandas de energia elétrica das indústrias brasileiras (SÁ, 2000). As obras da usina, entretanto, seguiram um ritmo lento, marcado por paralisações, somente sendo retomados os trabalhos a partir dos anos 1980, já adentrando o período de redemocratização do país. As obras só foram concluídas em 1988, ocasião em que ocorreu o fechamento da barragem e o enchimento do reservatório. Em junho desse mesmo ano, entraram em operação as primeiras máquinas, mas a usina só alcançou sua potência máxima de 1.500 mW em 1990 (BRANDI, 2009; CARVALHO, 2009).

A década de 1970, marcada pela Conferência de Estocolmo, também registrou a ocorrência de um duplo fenômeno, a emergência do movimento ambientalista e o interesse dos órgãos financiadores internacionais, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (BIRD), em minimizar os impactos desses grandes empreendimentos hidrelétricos. Nesse sentido, em contraponto às perspectivas desenvolvimentista e de crescimento zero, desenvolveu-se a proposição do desenvolvimento sustentável, segundo a qual o desenvolvimento deve ser entendido pela eficiência econômica, equilíbrio ambiental e equidade social (SÁ, 2000).

Esses organismos financiadores passaram a condicionar a concessão e a manutenção de linhas de financiamento para infraestrutura a adoção de instrumentos de planejamento e

gestão ambiental. No Brasil, a partir dessas exigências, foi criada, em 1981, a Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA), Lei nº 6.938, principal marco regulatório que passou a amparar o planejamento e a gestão ambiental brasileira, que em seu Art. 9, inciso III, estabeleceu a exigência de avaliação de impacto ambiental para licenciar um empreendimento hidrelétrico. Instituindo-se, assim, a avaliação de impacto ambiental como um processo metodológico atrelado ao licenciamento ambiental de empreendimentos e atividade potencialmente ou efetivamente causadores de significativa degradação ambiental (MORETTO et al., 2012).

A partir dos anos 1980, portanto, o país passou a estabelecer, de forma gradativa, uma série de mecanismos regulatórios, novos condicionantes para os processos decisórios acerca do planejamento espacial de usinas hidrelétricas. Assim, em atendimento à exigência legal de realização de estudos de impactos ambientais, desenvolveu-se em 1986, de forma pioneira no Nordeste, o estudo de impacto ambiental da UHE Itaparica (SOBRAL, 1992 apud SOBRAL et al., 2006). A barragem de Itaparica inundou uma grande área de 150 km de extensão, cobrindo uma superfície territorial de 834 km2, e atingindo diretamente cerca de 40 mil pessoas.

No plano econômico, a década de 1980 foi marcada pela retração da dinâmica da economia e pela desaceleração de investimentos em infraestrutura. O Estado, mediante o agravamento da crise econômica interna e internacional, encontrava-se fragilizado, do ponto de vista financeiro, tendo que desacelerar investimentos em infraestrutura, como por exemplo, a construção de grandes hidrelétricas.

Nesse contexto, a situação econômico-financeira da Chesf e das demais empresas de energia que integram a holding Eletrobras, foi bastante afetada pela política de contenção tarifária do Governo Federal e pelo esgotamento dos mecanismos de captação de recursos externos. A Chesf precisou reduzir o ritmo de trabalho ou paralisar várias de suas obras, o que sobrecarregou o seu sistema hidrelétrico, culminando em um rigoroso racionamento de energia em todo o Nordeste. O racionamento teve início em 1987 e só foi contornado em junho de 1988, quando as primeiras máquinas geradoras de energia elétrica da UHE Itaparica entraram em operação.

A construção da UHE Xingó, por sua vez, também foi marcada por uma série de contratempos. As suas obras foram iniciadas em 1987, tendo sofrido várias interrupções e retomadas, definitivamente, em 1990. Considerada de vital importância para o mercado de energia elétrica nordestino, Xingó era tida, na época, como o maior investimento da Eletrobras, apesar da crise financeira e dos escassos recursos financeiros da holding. A sua

construção apresentou a particularidade de um baixo custo de implantação, com impacto social quase nulo, haja vista que as águas do seu reservatório inundaram áreas praticamente desabitadas e sem exploração agrícola. (AZEVEDO, 2008; BRANDI, 2009).

Localizada no trecho final do cânion do rio São Francisco, entre os estados de Alagoas e Sergipe, Xingó, a maior usina do sistema Chesf, teve as suas obras concluídas em dezembro de 1994, mas só alcançou a sua capacidade total instalada de 3.000 mW de potência em 1997. A construção da UHE Xingó representou o fim do ciclo de construção de grandes obras hidrelétricas no rio São Francisco (BRANDI, 2009).

A exceção da UHE Três Marias, construída pela Cemig em Minas Gerais, a Chesf edificou ao longo do curso do rio São Francisco 08 (oito) usinas hidrelétricas, cuja potência total instalada é de 9.971 mW (Figura 6). Grandes empreendimentos hidrelétricos impostos às sociedades locais, cujos projetos se constituem em enclaves que não expressam os interesses das forças sociais, políticas e econômicas das regiões onde foram implantados.

Figura 6 – Principais Reservatórios da Bacia do Rio São Francisco

Fonte: ANA, 2004 Extraído de Melo, 2015

Difundidas sob o prisma da modernização e do desenvolvimento, as usinas hidrelétricas, entretanto, não foram capazes de reduzir as disparidades regionais, restando às regiões receptoras os complexos impactos gerados por esses grandes empreendimentos, cujos limites ultrapassam a área de implantação. A instalação desses grandes projetos, ao invés de integrar os interesses locais, impôs transformações às áreas receptoras, como por exemplo, a

desestruturação das atividades preexistentes, o desordenamento do crescimento populacional e a degradação ambiental. Emergindo, nesse sentido, a necessidade de refletir criticamente sobre essas transformações, seja no campo ou na cidade, haja vista que cada área receptora reage de forma diferenciada à instalação desses grandes empreendimentos hidrelétricos.