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os impasses da fundamentação dos PCN-Arte 

Maura Penna e Erinaldo Alves

Procurando fundamentar a proposta pedagógica para a área de Arte no ensino fundamental, os dois documentos dos PCN-Arte apresentam, em sua primeira parte, itens voltados para a caracteri- zação do fenômeno artístico1. No entanto, a nosso ver, a concep- ção de arte expressa nesta fundamentação é problemática, uma vez que fragiliza a proposta apresentada. Esses problemas são mais evidentes no documento para as primeiras quatro séries, já que o texto para os 3oe 4ociclos (5a a 8aséries), elaborado poste- riormente, passou por algumas revisões. Sendo assim, privilegia- remos, nesta análise, o documento para os 1oe 2ociclos.

Este artigo foi originalmente publicado em Penna (1998a, p. 43-64). Apresentamos

aqui uma versão revista e ampliada.

1Como apontado no artigo “A orientação geral para a área de Arte e sua viabilidade”,

nesta coletânea, trata-se do item “a arte como objeto de conhecimento” (PCN-Arte I) / “a arte como conhecimento” (PCN-Arte II).

Para facilitar as remissões, trataremos como PCN-Arte I o documento para os 1º e 2º ciclos (MEC, 1997b) e PCN-Arte II o documento para os 3oe 4ociclos (MEC, 1998b).

Uma contradição de base

Entre os objetivos proclamados dos Parâmetros Curricula- res Nacionais, em seu conjunto, figura a formação básica do cida- dão (cf. MEC, 1997a, p. 13). Neste sentido, entendemos que a construção da cidadania plena implica, necessariamente, um pro- jeto de ensino de arte voltado para a democratização no acesso à cultura (cf. Peregrino, Penna e Coutinho, 1995). Entretanto, um projeto de democratização da cultura não pode se sustentar sobre quaisquer concepções de educação e de arte, mas antes requer abordagens teóricas que permitam discutir e compreender os me- canismos que reproduzem a “competência artística” para poucos, ou seja, que reproduzem o acesso socialmente diferenciado à arte – principalmente às suas formas “eruditas”2.

Como já discutimos em trabalho anterior (Penna, 1995b), para um ensino de arte comprometido com tal projeto de democra- tização, é necessário enfatizar os conteúdos específicos de cada linguagem artística. Na mesma direção, os parágrafos iniciais dos Parâmetros Curriculares em Arte para as quatro primeiras séries defendem as especificidades dos conhecimentos da área, demar- cando um direcionamento que se opõe ao esvaziamento de conte- údos corrente em muitas práticas adotadas na Educação Artística:

“Na proposta geral dos Parâmetros Curriculares Na- cionais, Arte tem uma função tão importante quanto a dos outros conhecimentos no processo de ensino e a- prendizagem. A área de Arte está relacionada com as demais áreas e tem suas especificidades.

A educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artístico e da percepção estética, que ca-

2Quanto ao acesso socialmente diferenciado à cultura e à arte, ver, entre outros, Bourdi-

eu e Darbel (1985). Estes referem-se à “competência artística” como a capacidade de se apropriar de uma obra de arte - considerada como um bem simbólico - com base em referenciais propriamente estéticos e estilísticos.

racterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à experiência humana: o aluno desenvolve sua sensi- bilidade, percepção e imaginação, tanto ao realizar formas artísticas quanto na ação de apreciar e conhe- cer as formas produzidas por ele e pelos colegas, pela natureza e nas diferentes culturas.” (PCN-Arte I, p. 19)

Como em outras passagens, nota-se aqui a resistência ao precon- ceito contra o ensino de arte, presente em muitas esferas, por con- siderá-lo desprovido de conteúdos próprios ou mesmo de função educativa. Nesta linha de reação, o parágrafo seguinte reproduz uma visão redentora da arte, destacando-a como responsável por propiciar o aspecto lúdico e a criatividade. Esta questão é várias vezes enfatizada ao longo do documento, sendo já apontada nesta passagem da Introdução: o ensino de arte “favorece ao aluno rela- cionar-se criadoramente com as outras disciplinas do currículo. (...) Um aluno que exercita continuamente sua imaginação estará mais habilitado a construir um texto, a desenvolver estratégias pessoais para resolver um problema matemático.” (PCN-Arte I, p. 19). Acreditamos, contudo, que a área de arte não tem o monopó- lio exclusivo da criatividade, e esta pode e deve ser desenvolvida nas outras disciplinas (cf. Nicolau, 1997).

De modo compatível com a proposta de resgate dos conte- údos específicos da área, os Parâmetros para Arte adotam três eixos norteadores para o processo de ensino e aprendizagem, que, nos dois primeiros ciclos, são denominados de produção, fruição e reflexão (cf. PCN-Arte I, p. 55-56)3. Desta forma, o documento assume uma postura que toma a arte como um campo de estudo com conhecimentos próprios, e que considera a leitura e aprecia- ção como possíveis de serem trabalhadas. À primeira vista, então, os PCN-Arte tentam modificar a forma de encaminhar as aulas de

3A respeito dos eixos norteadores, nos dois documentos dos PCN-Arte, e a sua relação

com a chamada “metodologia triangular”, ver o artigo “A orientação geral para a área de Arte e sua viabilidade”, nesta coletânea.

arte para o que Barbosa (1991, p. 89-90) chama de uma atuação pedagógica “pós-moderna”, pois, “enquanto a modernidade con- cebia a arte como expressão, a pós-modernidade remete à constru- ção do objeto e sua concepção inteligível, como elementos defini- dores da arte”.

Entretanto, tais proposições acabam por se perder, ao lon- go dos PCN-Arte, na medida em que estes são permeados por uma visão romântica da arte, com base nos pressupostos da arte como expressão e comunicação, com forte ênfase na transmissão e re- cepção de emoções. Este é o núcleo de nossa crítica à fundamen- tação dos PCN-Arte para os 1o e 2o ciclos, e que buscamos evi- denciar ao longo da discussão que se segue. Os Parâmetros – pro- duzidos por uma equipe que certamente compartilhava concep- ções, mas também mantinha (produtivas) divergências teóricas – refletem, em diversos momentos, posicionamentos diferenciados. No entanto, a nosso ver, é a noção romântica que domina, o que, afinal, não é de se estranhar, como mostra Silva (1996):

“Geralmente, não nos damos conta do quanto as teori- as da arte são devedoras das idéias trazidas pelo Ro- mantismo. Aqui e ali, surpreendemo-nos não tanto com a permanência das idéias centrais do Romantis- mo na reflexão atual sobre a arte, mas, principalmente, com a vitalidade com que as idéias românticas são re- cuperadas ou redimensionadas pelos críticos e teóricos da atualidade.” (Silva, 1996, p. 102)

“Não nos damos conta”, diz o autor. Esta é justamente a questão: em estudos acadêmicos e propostas curriculares, reedi- tamos noções correntes sem uma clareza de definição, sem cons- ciência das implicações conceituais e teórico-filosóficas que po- dem estar subjacentes ao uso de determinados termos4- como, por exemplo, “expressão” e “comunicação”. Contudo, como afirma

4Neste mesmo sentido, realizamos uma autocrítica quanto ao uso que temos feito das

noções de “código” - e suas correlatas “codificação” e “decodificação”. A respeito, ver Penna (1998c).

Barbosa (1998, p. 33), em “arte e em educação, problemas semân- ticos nunca são apenas semânticos, mas envolvem conceituação”. Sendo assim, a discussão aqui apresentada, com base na análise da fundamentação dos Parâmetros, tem um alcance muito mais am- plo, envolvendo concepções que sustentam as práticas pedagógi- cas no campo da arte.

Faz-se indispensável, portanto, um trabalho de reflexão, de buscar explicitar pressupostos e pré-concepções, para que nossos esforços e ideais democratizantes não sejam negados – ou mesmo inconscientemente “minados” – pela permanência de uma visão que toma por base noções que lhes são incompatíveis. Acredita- mos que é exatamente isto que acontece no primeiro documento dos PCN-Arte: a intenção de resgate dos conhecimentos e conteú- dos próprios da arte – numa perspectiva de trabalho que articula a criação, a fruição e a reflexão – torna-se frágil, confusa e mesmo contraditória, na medida em que predominam noções românticas sobre a arte, sua produção e sua apreciação.

A concepção romântica da arte e seus reflexos nos PCN-Arte

De início, convém explicitar de onde provém a concepção da arte como expressão e comunicação dos sentimentos. A visão da arte como expressão dos sentimentos passa a vigorar no discur- so dos especialistas a partir do romantismo, movimento artístico que predomina no final do século XVIII e início do século XIX, tendo grande impacto e aceitação nos diferentes segmentos soci- ais. Como mostra Hauser (1982, p. 820), não há arte moderna que não sofra a influência do romantismo.

“Não há, efetivamente, qualquer produto da arte mo- derna, não há impulso emocional, impressão ou incli- nação de espírito do homem moderno, que não devam sua sutileza e variedade à sensibilidade que proveio do

romantismo. Toda a exuberância, anarquia e violência da arte moderna, o seu titubeante e inebriante lirismo, o seu exibicionismo incontido e exuberante, dele deri- vam. E esta atitude objetiva, egocêntrica, passou a ser para nós tão absolutamente inevitável, que julgamos impossível reproduzir mesmo um veio de pensamento emotivo, sem nos referirmos aos nossos sentimentos.” (Hauser, 1982, p. 820)

De fato, o romantismo populariza-se amplamente, acaban- do por se tornar o “arte/ismo” com a “mais forte repercussão na América. Até hoje, para o povo, Arte significa romantismo” – como pondera Barbosa (1990, p. 15).

Marcando uma reação ao classicismo e ao neoclassicismo na Europa, o romantismo caracteriza-se pelo abandono dos ideais clássicos da razão, ordem, simetria e harmonia, em favor da emo- ção, imaginação e assimetria, valorizando a hegemonia da sensibi- lidade, ou seja, postulando que antes de compreender é preciso

sentir. O sentimento constitui, no ideário romântico, “a grande

mola propulsora não apenas da arte, mas da própria humanidade do homem” (Silva, 1996, p. 106). Em termos formais, o roman- tismo, nas artes plásticas, resgata princípios de composição do barroco, apresentando dinamismo na composição (linha diagonal) e na forma (curvas, sinuosidades, volumes e planos), além de vi- gor colorístico, sem muita precisão de detalhes. Os temas são ori- undos do passado medieval, da literatura e da história contempo- rânea, bem como temas dramáticos, mórbidos, exóticos e da natu- reza (pintura de paisagem).

Nos PCN-Arte para as séries iniciais, a forte influência da concepção romântica de arte é bastante evidente: há uma superva- lorização da emoção, com ênfase na sensibilidade inventiva, sem que, no entanto, a maior parte das noções utilizadas seja explicita- da. Várias categorias conceituais vinculadas a uma visão da arte como emoção são empregadas neste documento, especialmente

em sua primeira parte, que pretende dar fundamentação e propor direcionamentos básicos para o ensino em todas as áreas artísticas.

O ideário romântico encontra respaldo na obra de diversos intelectuais. Entre eles, podemos destacar Rousseau, que, subordi- nando a razão ao sentimento, acredita que só através dos senti- mentos é que as idéias e o mundo racional podem adquirir sentido e podem de fato ser apreciados, sendo o sentimento, portanto, a medida da interioridade do homem (cf. Silva, 1996, p. 106). Po- demos reencontrar as idéias de Rousseau, inclusive, por trás das correntes da arte-educação que enfatizam a livre-expressão – re- pudiando qualquer interferência no desenho da criança e defen- dendo uma visão romântica da infância, cuja pureza seria macula- da pelo conhecimento (cf. Guimarães, 1996, p. 104) –, uma vez que, para esse pensador, a natureza primitiva é pura e inocente, tornando-se necessário que o homem reencontre suas raízes de modo completamente espontâneo e livre5.

Nesta mesma linha, para o romantismo, a mais pura espon- taneidade –que desconhece qualquer norma exterior – é a força que gera a criação genial. Tal concepção aproxima-se, ainda, da noção de gênio formulada por Kant, como “dom natural ou apti- dão mental inata que dá regras à arte” (Silva, 1996, p. 106-107). Neste quadro, é a exaltação à genialidade do artista e à sua produ- ção imaginativa que sustenta as noções de expressão e comunica- ção da arte.

O culto ao gênio, traço marcante do romantismo, traduz-se nos PCN-Arte como ênfase na personalidade do artista e na sua emoção. É apresentada com destaque – como tópico do item “O

5A influência de Rousseau pode ser encontrada, ainda, nas idéias defendidas por Her-

bert Read. No clássico A Educação pela Arte (Read, 1982), este autor afirma que o ser humano é integral e completo, fazendo então a apologia de dois princípios básicos na definição dos objetivos educacionais - a saber, o de “educar com referência a coisas” e o “educar para unir, não para dividir”. O educar com referência a coisas baseia-se nas idéias de Platão e Rousseau, postulando que a educação deve perpassar pelos sentidos, membros e músculos dos educandos e não por idéias abstratas.

conhecimento artístico como produção e fruição” – a seguinte afirmação: “A personalidade do artista é ingrediente que se

transforma em gesto criador, fazendo parte da substância mesma da obra” (PCN-Arte I, p. 40 - grifos do original). O papel

central delegado à emoção, tanto na produção quanto na aprecia- ção artística, é evidente na seguinte passagem dos Parâmetros:

“O motor que organiza esse conjunto [formal] é a sen- sibilidade: a emoção (emovere quer dizer o que se move) desencadeia o dinamismo criador do artista. A emoção que provoca o impacto no apreciador faz res- soar, dentro dele, o movimento que desencadeia novas combinações significativas entre as suas imagens in- ternas em contato com as imagens da obra de arte.” (PCN-Arte I, p. 40).

Mas acontece que a idéia romântica da obra de arte como resultado de “uma força cósmica, inata, independente da cultura” ou como produto de um “espírito iluminado” (Silva, 1996, p. 107) gera uma mistificação da atividade artística:

“A obra de arte era tida como resultado de uma força cósmica, orgânica, sem precedência, absolutamente desconhecida e imprevisível. Ser imaginativo repre- sentava transcender as peias da História e da Socieda- de, cultivar uma essência que estava acima dos ho- mens e de sua vida diária. Assim, a concepção român- tica termina apartando a arte do convívio dos homens, porque se transformara numa entidade totalmente mis- teriosa, regida por leis fantásticas.” (Silva, 1996, p. 110)

E esta mistificação em nada contribui para a compreensão da arte ou de seu ensino, pois os fatores que, segundo esta concepção, determinam a atividade artística independem totalmente de uma ação pedagógica. Tal visão romântica mistificadora da arte, na verdade, mascara e legitima as condições socialmente diferencia-

das de acesso à arte6, não podendo, portanto, fundamentar uma proposta de ensino que busque a democratização no acesso à cul- tura.

A idéia da criação como “pura espontaneidade” (própria do “gênio”) contém ainda, intrinsecamente, uma oposição a qual- quer forma de convenção. Já que a convenção – resultante de pro- cessos culturais e históricos, e sempre sujeita ao dinamismo destes processos – é uma característica de qualquer forma de linguagem, a visão romântica da arte é incompatível, por princípio, com uma concepção da arte como linguagem. Por conseguinte, sem ter co- mo base uma concepção de linguagem, a noção romântica de “comunicação” é totalmente subordinada à de “expressão”, e i- gualmente mistificada: a comunicação é resultado da intuição, da empatia, ou mais ainda, da “comunhão” com a personalidade do artista, em suma, de um “contato emocional afinado”.

“Na concepção romântica, porém, o artista expressa os

próprios sentimentos, ou natureza emocional, ou seja

lá o que for, através da totalidade da obra de arte e não pela identificação com esta ou aquela figura nela re- tratada. É o próprio artista-gênio que está sendo ex- presso. O verdadeiro tema de toda obra de arte é o ar- tista. E através da obra de arte o espectador estabelece um contato emocional afinado com o artista . (...) En- cara-se [a obra de arte] essencialmente como instru- mento pelo qual entramos em contato com o espírito criador do artista.” (Osborne, 1986, p. 182)

O resultado de tal visão é a fragilidade da noção de comunicação, que, no entanto, é essencial para a discussão da apreciação.

As marcas desta concepção romântica da apreciação artís- tica perpassam, mais uma vez, a fundamentação dos PCN-Arte para os 1o e 2o ciclos. Vejamos o desenvolvimento do tópico “A

percepção estética é a chave da comunicação artística”:

“No processo de conhecimento artístico, do qual faz parte a apreciação estética, o canal privilegiado de compreensão é a qualidade da experiência sensível da percepção. Diante de uma obra de arte, habilidades de percepção, intuição, raciocínio e imaginação atu- am tanto no artista quanto no espectador. Mas é inici- almente pelo canal da sensibilidade que se estabele-

ce o contato entre a pessoa do artista e a do espec- tador, mediado pela percepção estética da obra de ar-

te.” (PCN-Arte I, p. 39 - grifos nossos)

Comparando-se a última frase deste trecho dos Parâmetros com a colocação de Osborne (1986, p. 182) acima citada, percebe-se nitidamente a marca romântica nesta visão da apreciação como “um contato entre as pessoas do artista e do espectador”.

Na seqüência – como em outras passagens do documento para as séries iniciais (cf. PCN-Arte I, p. 36-38) –, a explicação oferece um exemplo advindo da literatura, o que não propicia uma compreensão mais aclarada da argumentação. E a conclusão do tópico é decisiva para que se perceba que, sob a noção de comuni- cação, não há qualquer noção de linguagem: “A significação não

está, portanto, na obra, mas na interação complexa de natureza

primordialmente imaginativa entre a obra e o espectador” (PCN- Arte I, p. 40- grifos nossos).

Que a arte permite múltiplas “leituras” é mais que sabido, e não nos deteremos nesta discussão7. Mas que a própria obra não tenha nenhum nível de significação intra-lingüístico, que inclusive balize as múltiplas interpretações possíveis, é negar a linguagem artística como sistema social e histórico de produção de sentido. Consideramos que a significação de uma manifestação artística é o produto de um conjunto de fatores, entre os quais o próprio mo- do de organização e funcionamento – histórica e culturalmente situado – da linguagem artística. Não podemos esquecer, portanto,

que a linguagem artística tem o seu papel na significação. Se não compreendermos esta questão fundamental, qual poderá ser o pa- pel do professor no desenvolvimento da capacidade de aprecia- ção? Qual, afinal, se – como dizem os PCN-Arte I (p. 37) – o “co- nhecimento artístico se realiza em momentos singulares, intradu- zíveis, do artista ou do espectador com aquela obra particular, num instante particular”?

No entanto, se a fundamentação do primeiro documento dos PCN-Arte é permeada e marcada por noções românticas, a- presenta também outras concepções (embora, a nosso ver, subor- dinadas àquelas), o que gera contradições que contribuem para a fragilidade da proposta de resgate dos conhecimentos específicos da arte. No próprio tópico ora em discussão – “A percepção esté- tica é a chave da comunicação artística” -, encontramos este sucin- to parágrafo, que aponta para os elementos de linguagem: “O pro- cesso de conhecimento advém de relações significativas, a partir da percepção das qualidades de linhas, texturas, cores, sons, mo- vimentos, etc.” (PCN-Arte I, p. 39). Por sua vez, o termo “lingua- gem” é ocasionalmente empregado, como na seguinte passagem:

O que distingue essencialmente a criação artística das outras modalidades de conhecimento humano é a qualidade de co- municação entre os seres humanos que a obra de arte propici- a, por uma utilização particular das formas de linguagem”

(PCN-Arte I, p. 37 - grifos do original)8. Entretanto, uma vez que a concepção de comunicação é, ao longo do texto de fundamenta- ção, marcadamente romântica, entrecruzam-se nesta passagem noções com bases teóricas incompatíveis, em prejuízo da coerên- cia da argumentação.

Outro ponto que gera contradição entre a fundamentação e a proposta pedagógica dos PCN-Arte para as séries iniciais é o

8Trata-se também de um tópico do item “O conhecimento artístico como produção e

fruição”. Ressalte-se que a explicação que se segue faz uso, mais uma vez, de exemplo da literatura (cf. PCN-Arte I, p. 38).

fato de a caracterização do fenômeno artístico estar baseada, em grande parte, na noção de “obra de arte”9. A concepção romântica do artista como um “gênio criador” acarreta a visão da produção artística como uma obra de transcendência e valor excepcional:

“–A obra de arte situa-se no ponto de encontro entre o particular e o universal da experiência hu- mana. (...)

Cada obra de arte é, ao mesmo tempo, um produto

cultural de uma determinada época e uma criação singular da imaginação humana, cujo valor é univer- sal. (...)

A obra de arte revela para o artista e para o espectador uma possibilidade de existência e co- municação, além da realidade de fatos e relações habitualmente conhecidos.” (PCN-Arte I, p. 35-36 -

grifos do original)

Ora, sem dúvida uma “obra de arte” com tal envergadura está muito distante da produção do aluno, da sua “experiência de fazer formas artísticas” (PCN-Arte I, p.43), que constitui um dos eixos propostos para a ação pedagógica em Arte, como já mencio- nado. Esta noção de “obra de arte” não é capaz, tampouco, de a- barcar as diferenciadas manifestações artísticas presentes na vida diária, como afirmam os dois documentos dos Parâmetros:

“O fenômeno artístico está presente em diferen-

tes manifestações que compõem os acervos da cultu-

ra popular, erudita, modernos meios de comunicação e