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I. Os nomes da São Paulo Oriental do século XVI ao XIX

II.2. A hierotoponímia da freguesia do Brás

II.2.1. Os representantes da Igreja na freguesia do Brás

Na freguesia do Brás, registrou-se uma quantidade significativas de nomeações realizadas a partir de antropônimos e axiônimos de representantes da igreja. Estes topônimos são igualmente espontâneos; refletem a existência de autoridades religiosas que aí residiam e, também, pela função administrativa que a igreja exercia41.

A bula papal de 1827 legava a membros do clero a possibilidade de manterem-se apenas em cargos administrativos oferecidos pelo governo imperial, sendo dispensados de suas atribuições eclesiásticas, se necessário. Na década de 1830, os padres já eram “tratados como simples agentes civis do poder executivo” (Morse: 1954, 68). Mas este

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O bairro de São Caetano limitava-se com a freguesia do Brás pelo rio Tamanduateí. Destaca-se a existência de uma ponte limítrofe, do lado do Brás, à fazenda do Oratório (RT 151).

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Como detentora de uma das maiores riquezas de São Paulo, a Igreja diversas vezes ofereceu indígenas e escravos para a realização de obras públicas, entre elas a de drenagem da várzea do Carmo. (Morse: 1954, 40)

procedimento já era anunciado pelo termo oficial o qual os povoados, com certa autonomia, recebiam: freguesia.

A elevação do Brás, em 1818, por ordem real, é seguida por ordem para o bispo de São Paulo realizar a demarcação de seus limites:

EDITAL DO SENHOR BISPO

Dom Matheus de Abreu Pereira, por mercê de Deos, e da Santa Sé Apostólica, Bispo de S. P. do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, etc. etc. etc. Aos que o presente edital virem ou dele notícia tiverem saúde, e benção em o Senhor. Fazemos saber, que pelo muito reverendo Joaquim José Rodrigues, Vigário Collado da nova freguezia do Senhor Bom Jesus do Mattozinho desta cidade, nos foi representado, que queria se declarasse os limites da sua freguezia: portanto, estamos nós munidos com faculdade de Sua Majestade Fidelíssima, e depois de ouvirmos os muitos Reverendos Parochos confinantes, e concorrerem os mais termos necessários, travemos por bem determinar, que fica esta nova freguezia do Senhor Bom Jesus dividida com a freguezia da Sé pelo Ribeirão-Tamandaly - principalmente onde ele faz barra no Rio Thyethé - e seguindo pelo mesmo ribeirão acima athé divizas com a freguezia de São Bernardo ficando pertencendo os moradores daquem do dito Ribeirão a Freguezia da Sé e os d'alem à nova Freguezia do Senhor Bom Jesus; e com a freguezia de Nossa Senhora da Penha de França ficarão divididas pelo Ribeirão Aricanduba - principiando onde elle faz barra com o Rio-Tyethé e seguindo o mesmo Ribeirão por elle asima athé a sua vertente onde principia a verter e daly por diante seguindo rumo direito a leste ficando em consequencia comprehendido todo o bairro do Pilar para a ditta nova freguezia do Senhor Bom Jesus. E mandamos passar o presente que será publicado pelo muito reverendo Cura da Sé em hum dia festivo a estação da Missa Conventual, e ao depois afixado no lugar costumado por quinze dias; e registrado no livro do tombo, e com certidão sua nas costas deste será remetido à Camara Episcopal. Dado em S. P. sob nosso signal, e sello das nossas armas. Aos vinte e oito de setembro de mil oitocentos e dezanove: e eu o padre Ildefonso Xavier Ferreira Escrivão Ajudante da Camara de Sua Excellencia Reverendissimo o escrevy - Dom Matheos Bispo. (Reale: 1982, 5-6)

Acrescenta-se, ainda, a função do vigário de zelar pelo cumprimento de ordens dos camaristas, em especial, a de os moradores fazerem os caminhos, pontes e aterrados continuamente:

Nas Freguezias e Capellas Curadas devem tanto o Vigario, como o Juiz de Paz de accordo com os moradores mais probos, procurarem obter o acceio e bom estado das ruas; a sua pouca extensão lhes facilita obter esse fim; todavia se houver precisão de algum auxilio pecuniario poderão recorrer á Camara Municipal de seu districto visto que seus moradores tambem concorrem para á sua receita. (Müller, 1923, 104)

Se os representantes da Igreja eram submetidos à estrutura política, por outro lado mantinham a autoridade de qualquer outro alto funcionário público. Assim como topônimos de títulos de cargos oficiais eram encontrados no núcleo, designativos com títulos religiosos marcaram a toponímia da freguesia do Brás.

Na Carta de Frederico H. Gonçalves, de 1837, Chacara do Bispo e Chacara do Vigário do Braz estão entre as poucas propriedades apresentadas em destaque. Conseqüência natural de serem figuras conhecidas na comunidade, os antropônimos não necessitam ser informados. Após algumas décadas, contudo, tais designativos geram confusões.

Quando realizado os Registros de Terras da freguesia do Brás, o primeiro vigário do Brás, o reverendo Joaquim José Rodrigues, um dos agentes responsáveis pela delimitação da freguesia, foi o primeiro a realizar a declaração de sua propriedade. A partir do cruzamento de registros, percebe-se que o sítio do vigário42 era uma grande propriedade da região, o qual já vinha de gerações, visto que herdara de sua mãe (RT 1).

Em todas as declarações limítrofes a sua propriedade, vem assinalada a sua atribuição eclesiástica43, pela qual é reconhecido: as terras do reverendo vigário do Brás, padre Joaquim José Rodrigues (RT 24); terras (...) que hoje pertencem ao reverendo vigário desta freguesia Joaquim José Rodrigues (RT 31); terras do reverendo vigário

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A propriedade do vigário Joaquim José Rodrigues localizava-se nas proximidades da cabeceira do rio da Moóca.

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Nas proximidades do sítio do vigário, encontrava-se proprietário homônimo. A distinção se faz, pelo fato deste ser analfabeto (RT 79).

Joaquim José Rodrigues (RT 32); terras do meritíssimo senhor vigário desta freguesia Joaquim José Rodrigues (RT 92); vigário Joaquim José Rodrigues (RT 142B). Nota-se que, apesar da tendência à economia de indicações para a realização da delimitação, não se dispensou ambas as informações, título e antropônimo, neste caso.

Quanto à propriedade indicada na Carta mencionada, o vigário já a tinha vendido ao Cônego Joaquim Manuel Gonçalves de Andrade, em 1855. Com idade avançada e afastado de atribuições eclesiásticas e administrativas, passa a residir mais afastado, no sítio acima mencionado.

A Chácara do Bispo referia-se a propriedade de Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade. Natural da Ilha da Madeira, chega a São Paulo em 1797 para assumir a função de arcediago da Sé, por indicação do então Bispo, D. Mateus de Abreu Pereira. Após a morte deste, é eleito bispo da diocese de São Paulo em 1826 e, como seu predecessor, teve papel de relevo nas esferas políticas, chegando a ocupar o cargo de vice-presidente da província, pouco antes de falecer, em 1847 (Azevedo Marques, II, 1952, 99-100).

Já Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, cujo nome confunde-se com o do bispo, quando se torna cônego da freguesia do Brás, adquire propriedade nas imediações da várzea do Carmo, por compra de terras do vigário do Brás, já mencionada, e do Doutor Hipólito José Soares (RTs 58A, 58B, 133, 146): chácara do cônego Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade (RT 133).

A capela do Belém só é reconhecida paróquia nos últimos anos da década de 1890 e, conseqüentemente, alocou-se um religioso como responsável por ela após este período. Nas suas proximidades, contudo, declarou-se um terreno denominado o Padre Chico (RT 26B). Em 1854, quando se registrou esta propriedade, não mais há indicações daquele que o teria por referente. Igualmente, no ano seguinte, assinalou-se como limite de uma propriedade limítrofe as terras de Nossa Senhora do Carmo, as terras dos herdeiros do finado padre Freitas, sem qualquer indicação deste religioso (RT 85A).

A Nossa Senhora do Carmo, como no último registro indicado, é comumente verificada em designativos. Apesar de se mencionar apenas o orago, integralmente ou apenas o seu termo determinante remete, em geral, à presença da Ordem dos Carmelitas, igreja ou propriedade. A várzea do Carmo recebeu tal designação em virtude da antiga

igreja44 da ordem encontrar-se no alto da colina. Foi a primeira denominação a um trecho específico da extensão várzea do rio Tamanduateí.

Em todos os hierotopônimos registrados até a década de 1850, prevalecem dois distintos processos de nomeação. O primeiro diz respeito à escolha de orago para capelas: intencional, mas, ao menos aparentemente, realizada a partir de tendências; há padroeiros para as capelas principais e outros, para as pequenas oradas colocadas em caminhos. O outro processo, concernente à utilização deste orago no engendramento de topônimos, caracteriza-se como espontâneo.

Neste sentido, enquanto religião e ato civil se confundem, a denominação de caminhos e aglomerados reflete o afluxo de romarias em momentos de grandes adversidades coletivas ou de festas religiosas registradas em calendário oficial. As casas localizadas ao longo de caminhos por onde passavam as procissões e o carnaval se realizava eram mais caras. Os indivíduos mais abastados tinham o privilégio de assistir aos foliões por trás de suas cortinas (Morse: 1954, 42). De todas as propriedades, as mais valorizadas eram as existentes nos pátios de igrejas, adquiridas apenas por grandes autoridades.

Mas, como espaço destinado a todas as cerimônias, deflagrava-se também o desentendimento de tradições religiosas e rotina da comunidade. O pátio da igreja dos franciscanos, por exemplo, era utilizado por fiéis e estudantes da faculdade de Direito, ocasionando contendas entre o diretor e o superior quanto à utilização dos sinos da igreja, como sinal para os estudantes (idem, 62).

Desde a colônia, estes espaços diante das paróquias tinham posição de destaque nas comunidades: onde cruzeiro e tronco eram erguidos, símbolo da fé cristã e das leis humanas, respectivamente (Petrone: 1995, 231). Dentre as primeiras ordens dos camaristas, consta a seguinte, de 1563:

mãodasẽ fazer as põtes e fõtes e quaminhos mãdem repairar os muros e cõsertar os pateos da vila (ACSP, I, 26)

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Trata-se de uma das mais antigas igrejas de São Paulo, tendo sido construída ainda na ultima década do século XVI.

Como se observa no excerto acima, além dos elementos necessários ao acesso, à manutenção e à defesa do núcleo, solicita-se também conserto dos pátios, atestando a importância de conservar o espaço destinado ao cumprimento da ordem.

Não é de se estranhar que no corpus analisado, os termos geográficos pátio, originalmente aplicado apenas a espaços reservados a cultos religiosos, e praça, referente à área pública laica, confundem-se: rua que segue para o páteo da igreja até a rua da Moóca (RT 137); rua que desce de fronte do portão da chácara (...) vai ter a praça da Igreja do Senhor Bom Jesus (RT 149B).

Por extensão, qualquer espaço mais ou menos fechado passa a ser designado de tal maneira:

Está a casa sita seis braças antes de chegar ao alinhamento da estrada [geral que segue de São Paulo à freguesia de Nossa Senhora da Penha de França], fazendo por isso um páteo, que é todo fechado de muros (RT 22)

No trecho final da estrada da Penha, a esquerda do ribeirão Aricanduva, declarou-se o topônimo Pátio do Maranhão (RT 25), no qual o primeiro termo é o elemento genérico e o segundo, Maranhão, provém de hidrônimo que corre nas adjacências. O proprietário contíguo, contudo, assinalou Pátio da Penha (RT 131), em clara referência a capela localizada na próxima parada, após o curso d’água. Ressalta-se que não há qualquer menção à existência de orada neste ponto, conforme solicitação encaminhada em 1876 aos camaristas.

A proximidade com a capela da Penha supria, em parte, as necessidades religiosas deste aglomerado. Neste caso, a permanência de pátio como termo geográfico parece manter-se constante em virtude da designação do aglomerado por Bairro do Pátio (RT 25), enquanto a variação entre Maranhão e Penha refletiria a sobreposição do elemento geográfico como referencializador do local.