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4 SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: BONITO PRA CHOVER

4.5 Público e privado no Suas: espaços de fronteira

Romper com a tradicional forma de atenção centrada na racionalidade moral que historicamente situou a filantropia como mediação das relações sociais não é uma tarefa simples, nem tampouco apaziguadora. Transformar a assistência social em direito implica mudar coisas de lugar, construir novas referências, estabelecer novas relações, redefinir limites, o que faz do processo de efetivação do Suas um espaço permanente de disputa, principalmente no tocante à relação público/privado na oferta dos serviços, benefícios, programas e projetos.

Logo que a assistência social se inscreveu na Carta Magna de 1988 como uma política integrada ao sistema de proteção social brasileiro, admitiu-se a possibilidade de entidades beneficentes participarem da execução das ações da assistência social pública, fixando-se espaços de fronteira que acabaram por impor novas dinâmicas no processo de criação das condições concretas à efetivação do direito recém-inaugurado.

As primeiras iniciativas de recortes espaciais e temporais na linha de uma delimitação do agir privado e alargamento do agir público vieram com a regulamentação dos preceitos constitucionais. O primeiro momento foi pontuado quando se incluiu no artigo 3º da Lei 8.742 – Loas uma definição mais aproximada do que seriam as entidades e organizações de assistência social. A lei prevê que são aquelas, sem fins lucrativos, que prestam atendimento e assessoramento às famílias, crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, e também aquelas que atuam na defesa dos direitos desses destinatários primeiros da assistência social.

Nessa demarcação inicial, tentou-se promover o distanciamento da filantropia e a definição do lugar que caberia às entidades privadas na estruturação do modelo de atendimento socioassistencial – mas, como analisou Sposati (2001), o conteúdo da política ainda apresentava muita fluidez, com fortes matizes do tradicionalismo pré-Loas.

Entretanto, nas primeiras normativas que antecederam o Suas, mantiveram-se relações nebulosas entre os órgãos de governo e as entidades, contribuindo pouco ou quase nada para avanços nessa área. Na própria Norma Operacional Básica de 1997 não se tinha clareza conceitual e ideológica sobre o projeto político que haveria de dar direção à nova caminhada pós-Loas.

71 A expressão “espaços de fronteira” é utilizada aqui como uma construção histórica, determinada socialmente,

reveladora dos conflitos e tensões que envolvem a disputa de interesses em diferentes contextos históricos, como sugere José de Souza Martins em sua obra Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano (1997).

Previa-se um sistema integrado, composto por uma rede pública e privada de atenções, mantendo-se a isenção fiscal como indução para que as entidades aderissem à oferta direta de serviços, benefícios, programas e projetos, atribuindo-se aos órgãos governamentais a tarefa de oferecer assessoramento técnico às entidades, assegurando-lhes ainda a participação efetiva no controle social da política.

Esse entrelaçamento de ações públicas e privadas sem uma definição precisa das entregas e provisões específicas da política da assistência social constituiu-se um terreno movediço, impróprio à construção de bases sólidas sobre as quais deveriam ser erguidos os pilares de sustentação do novo direito conquistado na Constituição Federal de 1988. “Esse novo estatuto público exige nova política de relações de parceria com a sociedade civil, endossado por uma política de seguridade social”, afirmava Sposati (2001, p. 75).

Nessa espiral, a PNAS/2004 se coloca como um importante passo na redefinição de limites e repactuação de relações entre o Estado e a sociedade civil. Primeiro, porque incorpora a ideia de complementaridade às ofertas da assistência social pelo setor privado. Segundo, porque reitera o pensamento de que a sociedade civil tem um papel essencial no processo de democratização da gestão do Suas.

A gravidade dos problemas sociais brasileiros exige que o Estado assuma a primazia da responsabilidade em cada esfera de governo na condução da política. Por outro lado, a sociedade civil participa como parceira, de forma complementar na oferta de serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social. Possui ainda o papel de exercer o controle social sobre a mesma (PNAS, 2005, p. 47).

Contudo, a relação entre o público e o privado na oferta dos serviços socioassistenciais continuou sombreada pela ausência de regulação mais objetiva sobre o modus operandi dessa relação.

Na medida em que os serviços da assistência social assumem status de serviços públicos, a própria expressão parceria, dada a ambiguidade que o termo denota em tempos neoliberais, passa a demandar melhor precisão conceitual para que se possa avançar no estabelecimento de vínculos entre o trabalho social desenvolvido por entidades privadas sem

fins lucrativos e a provisão de serviços públicos, operacionalizados plenamente sob a lógica do direito.72

Nessas bases, procura-se ressituar o lugar do Estado e da sociedade civil no contexto da assistência social como política pública pautada nos princípios da ética e da justiça social. O que se pode interpretar é que a PNAS/2004, mesmo reconhecendo a dimensão da solidariedade na vida social, estabelece como condição fundamental à efetivação do direito a regulação da relação público/privado, agora ancorada na padronização e qualidade dos serviços, definição de custos de serviços e no papel complementar das entidades privadas na oferta dos serviços.

Ao mesmo tempo, procurou jogar ênfase na importância da participação das organizações civis nos conselhos de assistência social e na sua corresponsabilidade na luta pela garantia dos direitos sociais. Essa orientação, em particular, desvela a necessidade de politização da política de assistência social, visto que essa relação exige mais do que o mero gerenciamento das interações público/privado, mas de sua construção, considerando as mediações históricas intrínsecas à natureza de classe do Estado capitalista.

Passados mais de dez anos, entre o conservantismo das práticas instituídas e as perspectivas de avanços diante das inovações instituintes de novas práticas, continuava indefinido o lugar que caberia às organizações civis na efetivação do Suas.

Veio então outra tentativa, com a publicação do Decreto 6.308/2007, que regulamentou o artigo 3º da Loas.

Art. 1o As entidades e organizações são consideradas de assistência social quando seus atos constitutivos definirem expressamente sua natureza, objetivos, missão e público-alvo, de acordo com as disposições da Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Parágrafo único. São características essenciais das entidades e organizações de assistência social: I – realizar atendimento, assessoramento ou defesa e garantia de direitos na área da assistência social, na forma deste Decreto; II – garantir a universalidade do atendimento, independentemente de contraprestação do usuário; e III – ter finalidade pública e transparência nas suas ações.

Impôs-se a partir de então que as entidades e organizações da sociedade civil, fossem elas de atendimento, assessoramento ou defesa de direitos, deveriam seguir as normativas do Suas, um imperativo reiterado na Lei.12.435/2011 que prevê a vinculação das entidades e

72 No Manual de Direito Administrativo, Carvalho Filho (2014, p. 329) conceitua serviço público como “toda

atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade”.

organizações de assistência ao sistema, integrando-as aos entes federativos e respectivos conselhos.

Desde então, foram muitas as movimentações, envolvendo forças de permanência e rupturas. Os sujeitos em movimento tinham a clareza de que o trânsito do dever moral para o direito de cidadania, como todo processo histórico, não seria uma passagem linear e automática. Instalaram-se muitas disputas alimentadas por projetos políticos antagônicos que atravessaram e atravessam todo o processo de construção do direito à assistência social. Entre o paradigma da ajuda aos necessitados e a atenção às necessidades sociais; a garantia dos mínimos e a segurança dos direitos básicos de cidadania; a (re)filantropia traduzida na desresponsabilização do Estado e a oferta de serviços públicos estatais; a subsidiariedade e a complementaridade dos serviços, os espaços de fronteira foram se desenhando no debate público sobre alternativas capazes de dar substância aos direitos socioassistenciais, produzindo muitos movimentos, encontros e desencontros na relação público/privado.

Do ponto de vista jurídico, explica Carvalho Filho (2014), os serviços assistenciais são classificados como indelegáveis, atribuindo-se ao Estado a prestação direta pelos seus próprios órgãos ou agentes. Portanto, quando o Estado for impelido a compartilhar a oferta com organizações não governamentais com o intuito de ampliar a cobertura das prestações e alargar o acesso a todos que necessitam dos serviços públicos, pode fazê-lo por meio de alianças com o setor privado, sob o regime de parceria.

Parceria, nesse contexto, não implicaria uma transferência de responsabilidades de modo que o Estado se desobrigue do seu dever constitucional de garantir o acesso dos cidadãos às prestações que lhes são devidas. Nos regimes de parceria, afirma o jurista, as funções públicas do Estado são compartilhadas com entidades – organizações da sociedade civil –, que passam a ser qualificadas como entidades prestadoras de serviços públicos.

Nessa linha, a Lei 12.435/2011, que conferiu legalidade ao Suas, atribui ao trabalho socioassistencial desenvolvido pelas entidades e organizações da sociedade civil o sentido do público, compreendendo que essas prestações são de fato e de direito obrigações do Estado. Para tanto, adota três destacados dispositivos. O primeiro, traduzido no mecanismo intitulado Vínculo/Suas, fixa três condições básicas para que esse reconhecimento seja efetivado: as entidades e organizações de assistência social devem constituir-se em conformidade com o artigo 3º da Loas, inscrever-se nos conselhos municipais ou do Distrito Federal e integrar-se no sistema de cadastro de entidades.

O segundo, o reconhecimento de que, em se tratando de uma função pública compartilhada, a oferta de serviços, projetos e ações de assistência social por entidades e organizações de assistência social deve ser financiada integralmente pelo fundo público, conforme consta no parágrafo 3º do artigo 6º-B da Lei 12.435/2011. E o terceiro – relacionado diretamente ao anterior –, a exigência de que a celebração de convênios somente deverá ocorrer com base nos planos anuais de assistência social dos respectivos entes federativos. Aqui, também se coloca condições objetivas à ideia de complementaridade.

Na inclusão das ações das entidades e organizações de assistência social, o compartilhamento não somente de ofertas, mas também de financiamento público ainda é um ponto nevrálgico no sistema. Em 2006, das 16.089 entidades e organizações de assistência social, apenas 8.964 (55,7%) declararam receber financiamento público. A principal fonte de financiamento para o custeio dos serviços, benefícios, programas e projetos provinham de recursos de origem privada (próprios, privados e contribuições voluntárias), conforme declaração de 59,5% das entidades. Apenas 32,6% tiveram o custeio dos serviços originados majoritariamente de recursos públicos (BRASIL/MDS/IBGE, 2006).

Em 2013, dos 5.570 municípios somente 44,9% declaram transferir recursos para entidades e organizações de assistência social, por meio de convênios e parcerias, revelando uma tendência decrescente de transferência de recursos públicos para entidades de assistência social se comparado ao ano de 2006. Um dado interessante é que os municípios com menos de 10.000 habitantes são os que menos transferem recursos para a rede privada (IBGE/MUNIC, 2013).

Traduzindo as normativas em procedimentos administrativos na gestão do Suas, cabe aos entes públicos, em suas respectivas esferas, conhecer as necessidades sociais básicas locais, organizar ofertas de serviços públicos na proporção equivalente à satisfação dessas necessidades, implantar unidades públicas estatais de referência com base territorial, e só a partir daí construir estratégias à ampliação de redes de proteção local, constituindo uma ampla rede socioassistencial.

Sob o ponto de vista normativo, essa seria a dimensão da complementaridade embutida nas diretrizes da PNAS/2004, que, partindo do pressuposto de que a complexidade e multidimensionalidade das necessidades sociais e as formas peculiares como se manifestam em cada lugar, exige um pensar e agir intersetorial. Esse é um horizonte novo que se coloca na trajetória da assistência social, constata Yasbeck et al. (2011, p. 178), “[...] abrindo

possibilidades de compartilhamento de conhecimentos, ações e responsabilidades e potencializando o desempenho de cada área, ao retirar a sua ação do isolamento”.

Fazendo contraponto a essa possibilidade de alargamento da ação do Estado via entidades da sociedade civil, Mota (2010) alerta para as implicações dessas alianças num ambiente de crise estrutural do capital, propício a investidas contra as políticas sociais, em que o regime de parceria pode produzir o efeito contrário, funcionando como “uma mão na roda” para reduzir o padrão de intervenção do Estado nas respostas às várias demandas requeridas pelo recrudescimento da questão social.

Esse é, de fato, um risco concreto produzido no interior da ordem social capitalista, que em determinadas circunstâncias desfavoráveis à sua reprodução aceita mais ou menos intervenção do Estado nas relações sociais, impactando diretamente nas políticas sociais, reduzindo ou ampliando sua capacidade de efetivação de direitos. Somada a essa condição, é preciso olhar para o retrovisor da história e observar como têm sido as parcerias do poder público com as entidades beneficentes no transcurso do tempo.

Analisando os dados de pesquisa realizada no Sudeste sobre o processo de construção do Suas, Yasbeck et al. (2011) revela que a relação público/privado, em algumas experiências locais, tem produzido resultados reveses à ideia de complementaridade prevista no arcabouço legal do sistema: permanecem serviços e programas fragmentados, na maioria das vezes desconectados da realidade onde foram instalados, seletivos, sem a participação popular e sem compromisso com o interesse público. Mas registra também experiências em que essa relação tem contribuído para qualificar os serviços prestados pelas entidades com base em regulações locais, acompanhamento sistemático pelo poder público e maior comprometimento com os usuários e suas famílias.

Esses são entraves, limites e desafios presentes na construção do Suas. O que se torna imprescindível na análise é o fato de que assistência social, ao se configurar uma política pública, acaba por se circunscrever como “[...] uma estratégia de ação pensada, planejada e avaliada, guiada por uma racionalidade coletiva, na qual tanto o Estado como a sociedade desempenham papéis ativos” (PEREIRA-PEREIRA, 2009, p. 96).

Assim sendo, a primazia do Estado na condução da política, no estabelecimento de procedimentos formais norteadores das formas de fazer, no financiamento público de serviços, programas, projetos e benefícios, na criação de condições à efetivação do controle social

democrático, são elementos inquestionáveis para que a interação público/privado ocorra à luz do direito de cidadania.

Talvez um equívoco que precise ser evitado nesse debate é limitar-se a compreender a relação público/privado sob a ótica da reciprocidade e da colaboração, ignorando o antagonismo presente nessa relação. Esse é um campo aberto ao conflito entre interesses individuais (privados) e interesses coletivos (públicos), em que os primeiros não podem prevalecer sobre os segundos.

Outra inovação no campo institucional e gerencial da assistência social encontra-se no conceito de redes – gravado na NOB/Suas/2005 – que avança na perspectiva de um novo paradigma de trabalho social pautado na ação intra e intersetorial, envolvendo diferentes atores sociais. Trata-se de uma estratégia para integrar ações, articular forças e mobilizar diferentes sujeitos e promover a participação popular, envolvendo pessoas, entendendo que a travessia da benemerência para a cidadania é uma tarefa coletiva.

Vale ressaltar que a estruturação do Suas é orientada pela ação pública, estabelecendo-se competências governamentais nas três esferas de governo, regulando responsabilidades de todos os entes, normatizando as provisões, consolidando a ideia de rede socioassistencial, fixando parâmetros, entre outras determinações necessárias à ampliação dos limites da dimensão do público/estatal e ao redimensionamento da esfera do privado na assistência social.

É dessa ideia que emerge o que se pode chamar de rede pública – responsável direta pela oferta de serviços, benefícios, programas e projetos – e rede privada – que nos respectivos territórios complementam as ofertas do poder público – na proteção social de indivíduos e famílias que, em conjunto com os conselhos, formam a controversa rede socioassistencial que se move em terrenos repletos de contradições.

Nesses quase dez anos da dinâmica de construção do Suas, o solo sobre o qual se vem cultivando a assistência social como direito é um terreno preenchido por muitas contradições – árido, sob o ponto de vista da germinação da cidadania plena, porém fértil, na sua própria dialética que permite pensar o político e a sociedade – que em constante movimento reproduz, mas ao mesmo tempo produz novas relações repletas de sentidos que precisam ser desvelados e interpretados.

[...] permanece o desafio de compreensão do significado social e político da rede socioassistencial e de sua efetivação considerando as complexas e intrincadas relações público-privadas como estratégia integrante da dinâmica das políticas sociais no atual contexto.

O Suas já é realidade em quase 100% dos municípios brasileiros, e sua implementação revela a produção de uma nova institucionalidade, a qual se expressa em práticas difusas espalhadas por todo o País, provavelmente falando muitas coisas, que, elevadas à reflexão, podem dizer do seu alcance na efetivação da assistência social como direito.