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4. EXPERIÊNCIA, ESPAÇO E HISTÓRIA

5.4 Para o arremate final

Imagens que valem com27 mil palavras A finalização de tantas ideias é tão difícil quanto resumi-las. Neste espaço é necessário ser objetivo. E isso me desespera. Como é bom escrever, viajar nas palavras, tecê-las com cuidado, por vezes arriscar ser poeta. Durante a dissertação foram tantos momentos vividos. O da aventura e inquietude ao começar a pesquisa, das possibilidades tantas de caminhos, da curiosidade ao ler coisas novas, outras nem tanto. Depois, o momento do foco. Sim, imaginar e criar se faz necessário, mas mais importante do que isso é estabelecer um problema e seus objetivos em um mar de infinidades. Aqui já começa uma parte muito difícil

27 A substituição de “mais que” para “com” é justamente para trazer essa ideia de que uma imagem pode afetar a ponto de virar poesia em algumas situações, nesse ensaio de escrever com o coração a partir do que se vê.

para mim. Sintetizar as ideias e a imaginação. Trazê-las para o plano do registro.

O desespero se instala, e ao fazer casa não há mais inspiração. Para isso tento buscar em músicas, textos, paisagens a calmaria novamente, mas por vezes nem oração resolve. Penso, então, em tantas escolhas de vida. Por que a pesquisa?

Por que voltar a universidade novamente? Vem o arrependimento. Tudo poderia ser diferente!

Mas ao reler o texto da dissertação no momento de aparar os detalhes, de rever as últimas anotações, vem o sentimento de alegria e satisfação. Nove meses entre a qualificação e a defesa, e quanta coisa mudou. Um gestar de ideias infinitas e que se assentam nas páginas. Vão se moldando, se delineando, e vem o orgulho. Ah! Que maravilha poder compor tanto movimento de vida. A artesania teve um significado e tanto durante a escrita. E o arremate é necessário, tanto para mim como para a escrita do trabalho. As finalizações são importantes porque dão o toque final do processo.

Recorro novamente ao problema da pesquisa. Basear-me sempre em tentar encontrar pistas a partir dos materiais e das experiências das pessoas, a produzir uma historicidade da educação do campo de Caçapava do Sul, foi um caminho plural. Entre tantos movimentos me permiti olhar para a pesquisa como possibilidade das classes multisseriadas no presente. A potência e a característica singular da multissérie e da Escola do Campo me atiçam a pensar, tanto que me perco dentro da abundância que esse espaço e essa organização apresentam;

Tanto que não consigo finalizar, no sentido de dar fim. Trago, então, um arremate, uma composição final do que quero encerrar.

As pistas estão nas palavras (escritas ou ditas), estão no silêncio da resposta, do olhar desviante, do material perdido ou desorganizado. São encontros que só valem se estamos dispostos a essa relação horizontal. Posso dizer, então, que sim. Há inúmeras pistas, e que tentei recortar o que me atravessou como experiência, dentre tantas, infinitas, que possibilitam movimentos diferentes e combinatórios. Como se fosse um método matemático de análises combinatórias, mas que aliadas às experiências tem um contexto, uma história e uma contingência, passam do padrão exato para as indefinições do cotidiano.

E o cotidiano nos diz tanta coisa... A espera do transporte, a espera dos alunos que vêm de longe, o planejamento das aulas, a disposição de estar sempre

atento aos detalhes, uma rotina de responsabilidade de estar na escola e fora dela também. E esse fora pode se configurar nas relações pessoais, ou então nas relações coletivas que compõem outras configurações (políticas, culturais, pedagógicas).

As experiências contadas nas entrevistas, os materiais encontrados, revelam tanto... E a partir deles podemos pensar em um arcabouço do que foi vivido. Mas tento sair do saudosismo e entrar em uma ótica do presente. Olhar para trás e compor o cotidiano hoje se torna necessário, e é um ato político o que assumo ao fazer escolhas.

Escolha do professor ao aderir um projeto, escolha dos pais ao quererem continuar no campo, escolha da administração em manter as escolas na comunidade, escolha minha, como acadêmica do mestrado profissional, de criar um produto que sirva para a rede em que trabalho. E por incrível que pareça essas escolhas também se mostram, quando são apresentadas necessidades.

Em Caçapava do Sul o campo é o responsável pelo trabalho das pessoas e economia regional. Desde os pequenos produtores aos grandes, das monoculturas, como também dos assalariados das indústrias de calcário, pois eles vivem em interdependência, e mais: dependem das condições do campo, de sua infraestrutura e do que pode possibilitar aos que escolhem este outro modo de vida.

Assim como as cidades, o campo também necessita de manutenção. No escoamento das produções, no acesso às propriedades e também acesso ao conhecimento sistematizado que a escola pode oferecer. Então, quando vejo uma escola desativada vem o sentimento de tristeza ao ver os prédios públicos abandonados aos morcegos, ou à parcela da comunidade que também depreda, levando portas e janelas, quebrando vidros e vandalizando o espaço que já foi escola.

Quando pensei que já havia terminado, recortado o suficiente que eu queria mostrar, vieram momentos de não conseguir escrever. As palavras trancam, as ideias se sabotam. Em um último suspiro e tentativa de escrita, convido duas colegas da SEDUC para me acompanhar nas finalizações da pesquisa. Ir às escolas desativadas e ver como estão e que sentimento provocam. Uma amiga é casada com fotógrafo profissional e possui câmeras de melhor resolução, o que me ajudou muito. A outra já havia trabalhado em Escolas do Campo e estava

curiosa para saber como estava sua escola. As visitas me impactaram muito, e acredito que a elas também. Visualizar os locais, ver o que aconteceu depois de anos, é muito mais impactante do que ler ou ouvir as pessoas. É a nossa experiência que atravessa e perpassa nossos sentimentos. Dessa forma, escolhi trazer no capítulo final as imagens e o que quero falar delas.

Figura XVII Foto da EMEF Gabriel Gomes Lucas (pela autora)

Essa foi a primeira escola em que nos aventuramos. À esquerda da foto temos um singelo chalé, que, como nos documentos atas falam, era a primeira versão da escola, denominada Cruzeiro do Sul, que mais tarde seria aumentada e teria o nome modificado para Gabriel Gomes Lucas, em homenagem a uma figura presente na escola. Quando chegamos, após 25 km de estrada de chão em que, a todo tempo à minha direita vi a cultura de soja, foi um impacto. Abandonada ao sol escaldante de fevereiro, entre latas de cerveja e carros desmanchados, tive certo medo em entrar no local e ser surpreendida com alguém que a tivesse feito de morada, o que explicaria as roupas em uma corda e as cortinas brancas da escola, ainda mantidas no interior das salas. Uma grande extensão fornece luz elétrica ao local. O impacto foi tanto, que até poesia virou:

A tristeza se instala Quando conheço uma escola desativada, Grande e ampla, com tantas salas, Mas que o tempo danificou.

Janelas quebradas, portas arrastadas, As cortinas brancas ainda se mantém.

O medo também vem Por imaginar quem ali poderia morar.

Carro desmanchado, roupas penduradas, O “oh de casa” dava eco, E ao ver utensílios atirados, Entre latas, parafusos e até caneco, Não via ali mais a alma do lugar.

E em uma peça, ao entrar, Achei uma caixa de livros.

Junto com eles tantos sonhos perdidos, Entre mocinhos e bandidos O que restou?

Andar nos corredores, Imaginar que nos bastidores Uma escola ali morou.

Que foi esquecida, abandonada.

Ao olhar para o poço fundo, Penso naquela morada E no que se transformou (DUTRA, 2021)

E ao falar em poesia, de tantos efeitos que em mim provocaram essas visitas, coloco em rimas meus sentimentos. Ao visitar novamente a escola Padre Fidêncio, na nova sede alugada, resolvemos descer e visitar a última Brizoleta em pé. Quando desci pela estrada de ônibus com as crianças, apenas tirei foto dali de dentro, mas ao entrar na escola, agora com veículo próprio, e ser surpreendida

com os morcegos, veio o encantamento do lugar. Nossa! Que escola linda, que arquitetura de chalé! Por isso entendo os depoimentos dos pais e professores, como também as reportagens compiladas no dossiê da escola. Realmente faz sentido a mobilização por não deixar a escola fechar. Vem na cabeça o conto da professora Acácia que teve toda sua vida atravessada pela escola, então mais que escola, aquele chalé foi habitado de alma e de vidas.

Figura XVIII Foto da parte interna da antiga sede da EMEF Padre Fidêncio (Brizoleta)

No Rincão da Salete Hay muitas lembranças De quem viveu e vive lá.

Em tantas andanças Acácia foi e voltou, Da alfabetização até o início de lecionar Foi para a cidade trabalhar.

Conheceu a escola Patrício Dias Ferreira,

Teve muitas amizades em dezoito anos E depois de retornar de muitos cantos Encerra sua carreira no Padre Fidêncio Que tanto fez parte na sua vida Quando criança, à mocidade.

E já não é novidade Essa forma de ensinar, Todos juntos aprendendo e compartilhando, Fazendo um coletivo De tantos amigos Que talvez nem sonhando Poderia imaginar.

Agora não tem mais água na cacimba, Que um dia tinha como sina carregar.

No Nossa Senhora da Assunção Nem por oração queria continuar.

A volta está mais saudosa, A escola não é mais chalé.

Por dizerem que não ficaria em pé Precisaram abandonar.

Passaram por muitas casas, Até tiveram risco de fechar, Mas a comunidade resistiu E como muitas Acácias não sucumbiu À falta de mantença.

Pois a escola na comunidade faz diferença Para a união das pessoas.

Hoje, quem vê a escola funcionando, Depois de tantos anos vagando, Fica emocionado.

Pode até ter se modificado, Mas a essência é a mesma.

E Acácia orgulhosa continua em seu labor, Ensinar as crianças é sua atividade, Que de tantas habilidades, entre doces e palavras Ou palavras doces Ainda encanta a comunidade.

(DUTRA, 2022)

E para encerrar meus recortes e afetações na dissertação, conto mais uma das andanças que tive. Convidei o professor Cravo para retornar, depois de 18 anos, ao Rincão da Tigra, para rever sua escola, sobre a qual conta com tanto orgulho das situações vividas. Ao chegar, encontramos o casal que tanto o acolheu nos tempos de escola, aos quais visitava e com os quais posava, já se fazendo integrante da família.

Ao sermos convidados a prosseguir, fomos por uma trilha. Ao ver uma cerca e um descampado avisto duas casas, uma do lado da outra. A primeira de alvenaria, marcada pelo sinal do tempo, e a outra, ainda com tábuas verdes, em que as assinaturas das coordenadoras da SEDUC deflagram: sim, a escola estava ali. Habitada pelo descarte do morador ao lado, mas que encheu o coração de Cravo de muita emoção. Orgulhoso, entra pela porta principal e me mostra os cantos da instituição. A sala ampla que abrigava os dez alunos, a cozinha pequena, na qual aponta o lugar do fogão, da pia e da sua cama, e depois o banheiro, caracterizado pelo bolor das paredes, pia e vaso, em um espaço mínimo; e ainda estava lá o chuveiro de lata, para o qual tinha que esquentar a água do banho.

Ele lembrava de tantas histórias, dos invernos rigorosos, em que, mesmo à tarde, o frio da geada entrava pelas largas frestas do chalé. E mais lindo ainda, quando os moradores da casa ao lado, juntamente com o casal que lhe acolhia, riam, lembrando dos momentos vividos, das proezas e coragem do novato professor. O único que ficou lá por três anos. Amizades e laços para uma vida, que não cabem apenas no período escolar.

Figura XIX Foto da EMEF José Pedro de Campos (Rincão da Tigra)

Fui a outros espaços, a outras escolas, e encontrei muitos achados que dariam outra dissertação. Mas deixo o leitor na curiosidade do Fotolivro, em que trarei mais imagens que me afetaram, e mais escritos. Esse movimento de ir, e quando possível levar os entrevistados, me renovaram de tal forma que escrevo agora com facilidade. Quantas possibilidades de encontros...

Penso também nas comunidades, nas crianças que ali moravam ou moram, quantos quilômetros devem andar para chegar nas escolas polo. Remeto-me, novamente, a quando fui à escola Gabriel Gomes Lucas. Quanta riqueza naquele local, e nenhum investimento, mesmo que privado, em manter as escolas abertas.

O grupo a ser constituído novamente é de grande importância e responsabilidade, para, a partir desses materiais, analisar, reavivar, movimentar outras possibilidades de ser na Escola do Campo.

Como podemos manter as escolas multisseriadas que ainda existem em Caçapava do Sul? Que políticas municipais, juntos com as pessoas, com professores, com a comunidade podemos criar para que a comunidade não tenha medo do fechamento conforme mude a gestão municipal? Quais dispositivos nos

servem para análise e estudos frente a organização pedagógica das escolas multisseriadas?

São tantos questionamentos que ficam em aberto para que juntos, no coletivo possamos pensar no futuro dessas escolas, e como podemos pensá-las também no presente.

Assim encerro nestas últimas linhas, deixando as fotos e minhas afetações como dispositivos de pensamento para provocar outras formas de entender a educação do campo, as infinitas possibilidades dentro dessa potência de espaço, de relações, de experiências, como potência para produzir novas histórias.

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