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I. Os nomes da São Paulo Oriental do século XVI ao XIX

I.2. As paragens de tropas de burros

O núcleo não era o principal ponto do território nos primeiros tempos. Se os demais aldeamentos acabaram por criar barreiras de defesa, isto se deve a sua própria localização e sítio onde fora construído o Colégio dos jesuítas (Petrone, 1995, 140). Tal status perpetua- se na medida em que arrefece a constância dos ataques e intensifica-se a circulação de mercadorias.

O homem, antes confinado aos muros, espalha-se pelo entorno do núcleo no século XVII. O povoado servido por caminhos pré-colombianos, tanto para o sertão do Brasil como para Santos, importante porta com a Europa, beneficia-se pela passagem constante de tropas de mulas, meio de transporte de cargas e pessoas (Morse: 1954, 23 e 30).

Em 1836, o engenheiro Daniel Pedro Müller (1978, 244A) fornece importante quadro das estradas que cruzavam São Paulo:

* a norte: estrada D.º a Bragança; passando por Atibaia.

* a noroeste: estrada D.º dº, a o Rio Grande, limite com Goyaz; passando por Jundiahy e S. Carlos (hoje município de Campinas)

* a sudoeste e sul: Estrada de S. Paulo a o Limite com S. Catherina, passando por Mboy e Cutia; a D.º a Santos, por S. Bernardo; D.º a S. Amaro; D.º a Porto-Feliz, cruzando o R. dos Pinheiros, rumava por Barauri; e D.º a Paranaiba que cruzava o R. Tieté.

* a leste: a estrada D.º a o Rio Pirahy, passando pela capela de N. S. da Penha e por Mogi das Cruzes.

A intenção do autor era apresentar os “itinerarios das principaes Estradas da Provincia”, e faz a “indicação dos rumos geraes das ditas Estradas, supondo a Cidade ser o ponto de partida” e não lhe convergindo. A São Paulo Oriental só é atendida por um destes caminhos, tidos como principaes, ao contrário das demais regiões, favorecidas pela proximidade com o núcleo e com ampla rede de comunicação.

Certamente estas estradas, freqüentadas por tropas, eram muito precárias e tortuosas, mas foram decisivas na criação de aglomerados (Langenbuch: 1968, 16). No início do século XVII, inevitavelmente, os aldeamentos a leste do núcleo assumem pontos estratégicos de defesa de possíveis ataques de índios do vale do Paraíba, ainda irredutíveis. Como linha de defesa, têm um processo evolutivo comprometido.

A estrada a o Rio Pirahy, cujo trecho incial representa o antigo caminho que ligava o núcleo a São Miguel, restringiu-se ao abastecimento dos povoados do vale do Paraíba e, posteriormente, ao escoamento de gêneros aí produzidos20. Foi suficiente, contudo, para a continuidade de antigos aldeamentos e para a formação e o fortalecimento de povoados formados no entorno. A posição do largo de São Miguel marca “com clareza um vértice que liga o caminho de São Paulo e Rio de Janeiro”. O aldeamento de Itaquaquecetuba, durante algumas décadas, abasteceu o colégio de São Paulo e, posteriormente, no século XVIII, tornou-se pouso. Escada também constituiu pouso durante parte do século XIX (Petrone: 1995, 147-50; 221).

O crescimento lento e irregular a que a São Paulo Oriental pode ser percebido pela existência de apenas 3 arraiais até meados do Seiscentos: N. S. da Conceição dos Guarulhos, São Miguel de Ururaí e Tatuapé (Sant’Anna: 1958, 491-2). Os dois primeiros são os aldeamentos já citados. Quanto à paragem do Tatuapé, trata-se de um pouso no caminho para o Rio de Janeiro que começa a ser conhecido por volta de 1600.

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Este caminho passa a chamar atenção dentre os demais da Província de São Paulo quando ocorre o progresso da lavoura no vale do Paraíba, especialmente de cana-de-açúcar, no século XVIII. Os fazendeiros enriqueceram, e as cidades ganham importância. Tais lavouras, em menor escala, também foram comuns nos arredores de Campinas, Itu e Porto Feliz. (Monbeig, 1954, 11)

Em uma região pouco explorada, com poucos marcos que pudessem referencializar o novo estabelecimento, a denominação provém de um curso d'água, afluente do rio Tietê – ribeirão Tatuapé –, e, após sua formação, toma a função referencializadora da São Paulo Oriental. É o que se percebe no documento de concessão de sesmaria de 5 de setembro de 1668. A indicação das terras foi realizada não pelos cursos d'água, utilizados apenas no momento da demarcação dos limites, mas pelo pouso estabelecido há, aproximadamente, sete décadas:

Diz o licenciado Matheus Nunes de Siqueira, morador na villa de S. Paulo, que elle supplicante tem uma fazenda com ermida e curral de gado légua e meia d'esta villa, na paragem chamada Tatuapé, terras que houve dos herdeiros do defunto Francisco Jorge, e por quanto não tem terras para lavrar, e na testada d'estas terras para o Rio-Grande (assim chamavam os antigos o Rio Tietê) em uma volta que faz o rio tem um pedaço de terra dentro da qual há algumas campinas, brejaes e restingas de matto que se póde lavrar, por isso pede a Vossa Mercê que, como procurador bastante do donatário, lhe faça mercê dar por carta de sesmaria a terra que pede para maior augmento da capella, havendo também respeito ser o supplicante filho e neto de povoadores e não ter até agora carta de sesmaria; a qual terra correrá de umas campinas que partem da banda de baixo do ribeirão de Tatuapé, correndo pelo Rio-Grande a riba pela volta que faz por uma campina que chamam Itacurutiba até uma aguada que foi do defunto João Leite. E. R. M. (Azevedo Marques, II, 1952, 165)

O caminho cruzava o ribeirão Tatuapé naquele ponto, o primeiro curso d’água de volume considerável após transpor a várzea do Carmo. O estabelecimento do pouso levou a algum adensamento no seu entorno. Dentre os Registros de Terras realizados na Freguesia do Senhor Bom Jesus do Brás, as indicações mais antigas de ocupação e permanência encontram-se no Bairro do Tatuapé e localidades adjacentes. No RT 44, de 27 de julho de 1855, Miguel Rodrigues da Silva informa que herdara do pai um pequeno sítio de terras lavradias à beira da estrada da Penha, no bairro do Tatuapé, as quais informa pertencerem à família há sessenta e três anos.

Ao mesmo tempo, as descrições destas propriedades demonstram que o comércio proveniente dos serviços de estalagem de viajantes e animais era comum naquele cruzamento da estrada da Penha, se não a principal atividade.

Tais práticas propiciam o desenvolvimento de alcunhas aos estalajadeiros21. O cruzamento da demarcação de diferentes registros (RTs 6A, 9, 65, 105 e 107) levou à identificação de uma antiga grande propriedade entre Pari e o Tatuapé, com fundos para o rio Tietê. Declarou-se, nas proximidades do Pari, que o falecido proprietário chamava-se João Moreira da Rocha (RTs 9, 65 e 105). Já os registros do Tatuapé apresentam sua alcunha: João Tamanqueiro (RT 6A); chácara que foi do finado João Moreira da Rocha (vulgo Tamangueiro) (RT 107).

A nomeação das paragens pela utilização do nome do proprietário também foi um recurso freqüente frente a vazios toponímicos. Em 1819, durante primeira passagem pela Província de São Paulo, Saint-Hilaire (1972, 89) anota a seguinte observação: “Existe em São Paulo uma ponte chamada, Ponte do Bexiga, que talvez tenho o nome do estalajadeiro ou de algum predessor”.

O naturalista seguia até um pouso com vastas pastagens próximo à mencionada ponte do Anhangabaú, onde pernoitou. Conheceu também o estalajadeiro de nome Antonio Bexiga ou Antonio Manuel, proprietário da chácara do Bexiga, fronteiriça ao pouso, e, a partir daí, inferiu a procedência do designativo da ponte.

Marzola (1979, 34-7) levantou hipóteses para a origem do topônimo Bexiga22. A mais corrente é a correlação que fizera Saint-Hilaire. A chácara e a estalagem, assim como as pastagens, teriam recebido o nome de seu proprietário e se espalhado a outros elementos geográficos da região23, como a já citada ponte. Cotejando documentos antigos, Marzola conclui que Bexiga, como topônimo, surgiu entre 1789 e 1792 e que, se proveniente de alcunha relativa à varíola, o “honesto Bexiga”, descrito por Saint-Hilaire, teria recebido por apelido de família ou por alcunha.

Quanto ao João Moreira da Rocha, fica nítido que se tratava de alcunha, vulgo Tamangueiro. Esta alcunha, contudo, se incorporou ao sistema toponímico da região, não

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Morse (1954, 138) apresenta exemplo de Antonio Pontrimoly, mascate conhecido pela alcunha de “200 Réis”, preço fixo de todas as suas mercadorias. Em 1870, abriu uma loja e a denominou a partir de sua alcunha.

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Ainda irrefutável, mas pouco própria à dinâmica de nomeação da época, é a hipótese de o topônimo Bexiga ter se originado de “bexiga de boi”, tanto por ser um prato comum da época, especialmente nas estalagens, como por este pouso se localizar nas proximidades do matadouro. O antropônimo Bexiga, neste caso, seria proveniente do topônimo, e não o contrário.

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Vale ressaltar que o topônimo Bexiga nunca foi oficializado, resistindo, até hoje, como nome paralelo ao do bairro de Bela Vista.

se manteve por muito tempo. Suas propriedades foram subdivididas, não se encontrado, no corpus analisado, menção a tal nome após 1854.

Outros topônimos demonstram a tendência a serviços de atendimento de tropas. O ribeirão chamado – da Venda24 (RT 29) preserva registro do comércio de tropas por caminho que margeava a esquerda o ribeirão Aricanduva. O mato chamado do – Potreiro25 (RT 33), se não diz respeito diretamente a tropas, indica a presença de descanso de animais de montaria. Invernada (RTs 51, 110, 112, 121A e 143), como elemento geográfico e designativo, remete tanto ao sistema de engorda ou descanso de animais, como a pastos limitados por cercas ou obstáculos naturais onde os animais eram soltos.

Na freguesia do Brás, como local de pousos, a invernada possivelmente era encontrada em diversos pontos. Nos Registros de Terras, contudo, encontra-se referência a apenas um elemento geográfico assim referido e, em destaque, toponimizado como nome de localidade e propriedade: sítio chamado Invernada (RT 110); invernada de Joaquim Gonçalves digo de Sales (RT 121A); Local: Invernada, na estrada que segue de São Paulo para o bairro do Caguaçu. (RT 143)26.

A confluência de caminhos para a Invernada, apesar de não se mencionar claramente a sua função, indica atendimento a tropas. Dois diferentes caminhos a ligavam: um, a partir da estrada para o Rio de Janeiro, e outro, até a margem esquerda do Aricanduva: estrada da Invernada e Caminho da Invernada (RT 51). Outros registros indicam ligação com a mesma Invernada; difícil precisar, contudo, se se tratam de outros caminhos, ou os já citados: na Moóca, estrada que vai da cidade para um sítio chamado Invernada (RT 110) e estrada que vem do sítio da Invernada (RT 112); na cabeceira do Tatuapé, estrada que vai para a invernada de Joaquim Gonçalves digo de Sales (RT 121A); no Olho de Água, estrada da Invernada (RT 135).

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O ribeirão da Venda é afluente esquerdo do ribeirão Aricanduva. No mapa Sara Brazil (1930), registrou-se

córrego da Venda ou Tapera. 25

O topônimo “mato chamado do – Potreiro” remete a um capão de mato próximo à cabeceira do Uberaba, afluente do rio da Mooca. Este elemento geográfico foi utilizado para demarcar limite entre propriedade de Pedro José de Siqueira e Maria Inácia e precisar a localização da propriedade do primeiro. Potreiro é, pelo contexto, um pequeno pasto utilizado para descanso de cavalos (Houaiss).

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O sítio chamado Invernada, pelo cotejamento de tais registros, é composto por “dois capões de matos” de João Gonçalves de Oliveira, então já falecido, pai de Escolástica Joaquina de Oliveira e Joaquim Golçalves de Oliveira. As terras estariam entre a cabeceira do Tatuapé e o rio Moóca, confinadas com terras da cabeceira do ribeirão Caçandoca. A Invernada, como lugar, estender-se-ia até proximidade da cabeceira do rio da Moóca.

Nos exemplos citados, percebem-se diferentes escolhas para a indicação do elemento geográfico. No primeiro caso, o topônimo Bexiga, se proveniente do nome do estalajadeiro, resulta da escolha pelo indivíduo como referencializador do espaço. Em Venda, Potreiro e Invernada, o elemento geográfico é toponimizado, revelando que, senão únicos no território, representam aquilo que se destaca no espaço. Enquanto mantidos como referencializadores, acabam por invalidar a sua utilização como único termo do designativo em outros pontos aos quais estejam diretamente relacionados.

Antônio Bexiga*1> pouso do [Antônio] Bexiga*2 > ponte do [pouso do] Bexiga3 > ponte do Bexiga4 sendo que,

1- antropônimo

2- termo específico = antropotopônimo, por indicação de posse

3- termo específico = antropotopônimo, com omissão do termo genérico ‘pouso’ (determinado), do qual era indicativo de posse (determinante) 4- termo específico = antropotopônimo

invernada*A>invernada de Joaquim de SalesB>sítio InvernadaC1>estrada [que vem] do sítio da

InvernadaC2

> estrada [que vai para a] invernada de Joaquim de

SalesD

> lugar chamado Invernada E

ou

> lugar chamado Invernada E

sendo que,

A- termo genérico = fitônimo

B- termo genérico = estabelecimento comercial

C1- termo específico = sociotopônimo, por toponimização do elemento genérico

C2- termo específico = sociotopônimo, resultante da toponimização do termo genérico ‘sítio’ (determinado) + termo específico ‘da Invernada’ (determinante)

D - termo específico = sociotopônimo, resultante da toponimização do termo genérico ‘da Invernada’ (determinado) + termo específico indicativo de posse ‘de Joaquim de Sales’ (determinante)

E- termo específico = sociotopônimo, por toponimização do elemento genérico

No primeiro caso, a resultante é Bexiga (4) como topônimo propriamente dito; o processo é intuído a partir do seu papel de indicativo de posse. Já invernada (B) / Invernada (E) assume diferentes papéis em processos que podem ter ocorrido concomitantemente, sem prejuízo a nenhum deles. Apesar disto, nota-se que ambos os exemplos resultam de topônimos espontâneos.

Nos Registros de Terras, evidencia-se o caráter rural que a região mantém em meados do século XIX, sem preocupação em sistematizar o processo de denominação do espaço, então já perceptível no núcleo. Encontram-se no Tatuapé, apesar disto, todos elementos necessários para o crescimento de aglomerados. O registro abaixo transcrito leva a esta constatação:

Registro de Terras de São Paulo nº 107 Freguesia: Senhor Bom Jesus do Brás Data / Declaração: 22/05/1856

Proprietário(s): Maria Firmina de Jesus e seus filhos Benedito Inácio da Silva, Maria Inácia da Silva, Joaquim Inácio da Silva e Jacinta Maria de Jesus.

Antigo(s) Proprietário(s): Inácio de Azevedo Silva (marido e pai dos proprietários). Modalidade de aquisição: Herança.

Obs: A herança se encontra pró-indivisa.

Espécie de Propriedade: Uma chácara onde se contra a capela de Nossa Senhora do Belém, com casas de morada e ranchos de tropeiros.

Local: Belém, à esquerda na estrada que segue para a frente a freguesia da Penha. Demarcação: “Tendo de frente na referida estrada cento e trinta e seis braças e de fundo cento e vinte e dividi-se pela frente com a estrada pelo fundo com o rio Tietê por um lado com o pasto de Cirino Césario de Abreu e por outro com a chácara que foi do finado João Moreira da Rocha (vulgo Tamangueiro)”.

Primeiramente, a grande propriedade é passada de pai para filhos, a partir da qual se intui a existência e permanência da família há algum tempo neste local; a chácara era a moradia mais comum a famílias de posse da região.

Já a menção a casas de morada indica a existência de outras famílias, possivelmente voltadas ao atendimento das tropas e da chácara. Contíguo a está propriedade, declarou-se uma pequena chácara de pau a pique (RT 55), cuja localização à beira da estrada propícia o comércio com viajantes. A especialização das funções do bairro do Tatuapé é ratificada pela presença de ranchos de tropeiros; assim como a chácara que foi do finado João Moreira da Rocha (vulgo Tamangueiro), acima mencionado, e o pasto de Cirino Césario de Abreu, declarado como um cercado de terras para criar (RT 97), ambos referencializados a partir do nome do proprietário.

Os pousos de tropeiros mantêm os caminhos abertos, oferecem demandas de atividades correlatas e propiciam rede de abastecimento. Paralelamente, a capela de Nossa Senhora do Belém atende às necessidades religiosas, inerentes à força que a fé cristã mantem neste período. O nome da família de Inácio de Azevedo Silva não é perpetuado pela toponímia. A capela, ao contrário, já aparece como designativo do lugar: Bairro do Belém (RT 97). Nota-se, contudo, a instabilidade da permanência do termo determinado do orago:

* Capela de Nossa Senhora do Belém (RTs 6A e 6B) = elemento geográfico + preposição ‘de’ [ressaltando a relação de subordinação do elemento geográfico ao topônimo propriamente dito] + topônimo propriamente dito [termo determinado ‘Nossa Senhora’ + termo determinante – manifestação do orago ‘do Belém’];

* capela da senhora do Belém (RT 104), cujo topônimo propriamente dito apresenta o termo determinado reduzido;

* capela do Belém (RT 55), cujo topônimo propriamente dito apresenta apenas o termo determinante do orago, e Bairro do Belém (RT 97), topônimo formado pela omissão de ‘capela’, elemento geográfico do qual origina o designativo, e do termo determinado do orago, ‘Nossa Senhora’.

Ressalta-se, neste sentido, tendência à fixação do topônimo – Belém.