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Participação – possibilidades, limites e reflexos

3 SOCIEDADE CIVIL E PARTICIPAÇÃO

3.3 Participação – possibilidades, limites e reflexos

A democratização da sociedade brasileira tem gerado procedimentos discursivos entre os diversos atores políticos que tornam mais complexa a análise da estrutura social e dos fluxos de poder político, que não podem ser considerados apenas sob o ponto de vista de trocas e negociações de interesses.

Se a influência política dos grupos corporativos que defendem interesses particulares e específicos é devida antes à sua capacidade de controle dos recursos comunicativos disponíveis, o poder político dos movimentos sociais e das demais associações da sociedade civil é,

sobretudo, resultado do mérito normativo de suas bandeiras, isto é, de sua possibilidade de catalisação da anuência e do respaldo social. Nesse caso, o espaço público já não pode ser representado unicamente como fazem os pluralistas, como um mercado de interesses em disputa, mas como arena que também medeia os processos de articulação de consensos normativos e de reconstrução reflexiva dos valores e das disposições morais que orientam a convivência social (COSTA, 2002, p. 35). 13

Contudo, além da necessidade de observação da eficácia, ainda que a longo prazo, do arcabouço legal adaptado às exigências participativas e deliberativas postuladas por novos modelos de democracia - tarefa do Capítulo 6 - há, ainda, que se considerar no caso brasileiro a viabilidade de os dissensos produzirem ganhos coletivos de consciência na esfera pública, tendo em vista a importância dos meios de comunicação nessa dialética.

Entendemos que a expressão “participação cidadã”, também utilizada por Robert Dahl (1997), Vera Telles (1994) e Elenaldo Teixeira (2002) equivale ao termo “cidadania ativa”, empregado por Maria Victória de Mesquita Benevides (1991) e que, por todas as características desse tipo de atuação política do cidadão, ela se reveste de uma postura e se expressa por procedimentos que se afinam com os postulados dos modelos democráticos deliberativo e participativo. A institucionalização de procedimentos é um reflexo previsto e admitido nessa perspectiva.

A participação cidadã, segundo Teixeira (2002, p.31), diferencia-se da chamada “participação social e comunitária”, em razão de não ter por objetivo apenas a prestação de serviços à comunidade e não se resumir à participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos ou expressão de identidades.

13 Costa (1991, p. 179) explica o papel da esfera pública para a democracia a partir de duas concepções ou modelos, presentes em Habermas: o pluralista e o discursivo. “Neste modelo [o pluralista], a imagem da esfera pública é a de um mercado de opiniões no qual os diferentes interesses organizados se encontram em permanente concorrência por um recurso escasso: a atenção pública”. Ou seja, há a concorrência dos diversos atores tentando influenciar os processos decisórios. Em contrapartida, segundo a concepção discursiva da esfera pública, as idéias inteiramente assenhoreadas e manipuladas pelos diversos grupos sociais são colocadas em questão, pois há, para Habermas, pelo menos dois processos simultâneos: 1. o uso manipulativo do poder da mídia para a obtenção de lealdade das massas e 2. a geração comunicativa de poder legítimo. Também ocorre a disputa por atenção – evidente empiricamente – que corresponde no modelo pluralista à própria esfera pública, mas há impulsos mais profundos, relacionados à “geração de poder legítimo” .

Atender às necessidades mencionadas é um desejo presente na maioria dos ativismos sociais, contudo não resumem a participação cidadã, que almeja algo mais. Ela é um processo construtivo, reunindo as demandas coletivas e gerais, debatidas no espaço público e não reivindicadas nos gabinetes, combinando o uso de mecanismos institucionais e sociais, inventados no cotidiano das lutas e superando a clássica dicotomia entre representação e participação (Idem, p.33).

Ao referir a “participação cidadã” tenta-se, portanto, contemplar dois elementos contraditórios presentes na atual dinâmica política. Primeiro o “fazer ou tomar parte”, no processo político-social, por indivíduos, grupos, organizações que expressam interesses, identidades, valores que poderiam se situar no campo do “particular”, mas atuando num espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade. O segundo, o elemento “cidadania”, no sentido cívico, enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres. A dimensão cívica articula-se à idéia de deveres e responsabilidades, à propensão ao comportamento solidário, inclusive relativamente àqueles que, pelas condições econômico-sociais, encontram-se excluídos do exercício dos direitos, do “direito a ter direitos” (Idem, p.32).

Como mencionado na introdução deste trabalho, Santos (2002, p.75) fala de duas formas possíveis de combinação entre democracia participativa e democracia representativa: coexistência e complementaridade. Coexistência implicaria uma convivência em níveis diversos de formas procedimentais, organização administrativa e variação de desenho institucional, reservando rigidamente, entretanto, o nível nacional à representação, como uma forma exclusivamente vertical de administração pública coexistindo com a democracia participativa em nível local.

A segunda forma de combinação, a que chamamos complementaridade implica uma articulação mais profunda entre democracia representativa e democracia participativa. Pressupõe o reconhecimento pelo governo de que o procedimentalismo participativo, as formas públicas de monitoramento dos governos e os processos de deliberação pública podem substituir parte do processo de representação e deliberação tais como concebidos no modelo hegemônico de democracia. Ao contrário do que pretende este modelo, o objetivo é associar ao processo de fortalecimento da democracia local formas de renovação cultural ligadas a uma nova institucionalidade política que recoloca na pauta democrática as questões da pluralidade cultural e da necessidade da inclusão social. [...] Os arranjos participativos permitem a articulação entre argumentação e justiça distributiva e transferência de prerrogativas do nível nacional para o nível local e da sociedade política para os

próprios arranjos participativos. A democracia representativa é convocada a integrar no debate político-eleitoral propostas de reconhecimento cultural e de inclusão social (SANTOS, 2002, p.76). Boaventura Santos (Op. cit. p.77) aponta para a evidência de que a primeira forma de articulação é a que prevalece nos países centrais, enquanto que a segunda tem emergido nos países periféricos, de democratização tardia e, a partir desta constatação, conclui que o aprofundamento da democracia não ocorre necessariamente a partir das mesmas características presentes nos países centrais.

As características que permitiram a originalidade democrática podem não ser necessariamente as mesmas características que permitem a sua reprodução ampliada e aprofundada. Por isso, o problema da inovação cultural e o experimentalismo institucional é ainda mais premente (Idem, p.77).

A participação cidadã é uma requalificação das formas de participação expressas por um longo período apenas pelos movimentos sociais e ativismos ocorridos sobretudo nas camadas mais carentes da população, por estarem, em geral, pautadas pela aquisição de bens, serviços ou direitos essenciais. Não significa que tais questões tenham perdido seu apelo ou tenham sido superadas, tampouco minoradas.

Este tipo qualificado de participação se reveste do papel político da transformação social pela publicização do espaço político ou pela politização do espaço público – o que na acepção precisa dos termos deveria ser uma redundância. Os diversos arranjos participativos privilegiam os princípios do autogoverno e da transparência, caros ao modelo normativo republicano, e que não se podem cumprir pelo mero exercício do voto.

Para a concepção individualista do mundo e da política do liberalismo, o voto é a forma central de participação, sendo atribuído um certo caráter sagrado, simbólico, ao ato de votar. [...] A política torna-se uma atividade particular, exercida por profissionais, que constituem uma elite política, responsável pelo “gerenciamento” da sociedade através do Estado – este cada vez mais considerado uma “empresa”. Renovam-se assim as teorias das elites, reificando a política e isolando-a das relações sociais (SADER, 2002, p.658).

Embora o tipo de participação que temos tratado aqui se refira a um movimento do tipo bottom-up, é preciso reconhecer a importância de mecanismos institucionais que

possibilitem a efetivação da participação. Bobbio (1998, p.1118) afirma que “[...] na República democrática a ordem política nasce de baixo, mesmo em meio de dissensões, desde que estas disponham de canais institucionais para se exprimir”. Desde a década de 1980, paralelamente ao processo de transição democrática, têm surgido inúmeras iniciativas locais de práticas participativas que aos poucos foram se consolidando em políticas públicas ou arranjos participativos institucionalizados, desde a previsão no texto da Constituição Federal de 1988 (CF) até diversos exemplos na legislação ordinária.

É possível verificar a pluralização das formas de participação no Brasil, não restritas aos conselhos públicos e orçamentos participativos. Atualmente são realizadas audiências públicas de diversos tipos ligadas a políticas de âmbito estadual e federal, com forte presença de organizações não governamentais (ONGs) em substituição aos atores da sociedade civil.

A participação cidadã, assim, se vale não só de motivações espontâneas de baixo para cima, mas se aproveita e é induzida pelas estruturas oferecidas pelos diversos arranjos participativos que “compreendem múltiplas expressões de associação das forças econômicas, políticas e sociais na tomada de decisões administrativas, ou seja, de intervenção de elementos exteriores ao exercício da função pública em diferentes graus” (MARTINS Jr., 2005, p.242).

Cabe perguntar, last, but not least, sobre a relevância dos Movimentos Sociais (MSs), considerada a realidade da institucionalização de procedimentos participativos e a grande variedade de formas de atuação que também adquiriram formas organizadas, como as ONGs. Teremos oportunidade de observar o protagonismo dos movimentos sociais nos Capítulos 4 e 5 e tecer algumas considerações sobre seu vigor atual no Capítulo 6. Entretanto, se não pudermos afirmar categoricamente que os MSs no Brasil mudaram muito no que diz respeito às suas demandas e formas de atuação, desde a época da Assembléia Nacional Constituinte, podemos com certeza afirmar que o cenário no qual eles se encontram hoje é muito mais complexo.

[...] a Era dos Movimentos Sociais teria terminado? A fragmentação social em curso e a ampliação (ao menos formal) da participação da sociedade civil em esferas públicas (no interior do aparelho de Estado, em especial no Brasil) teriam reformatado o que antes denominávamos de movimentos sociais? (RICCI, 2009, p. 2).

Gohn (2008, p.319) baseia-se em Melucci (1994) para afirmar que os movimentos dos anos 70 e 80 foram a última transição de movimentos como atores para movimentos enquanto forma - modus operandi. Configuram-se desde então as redes de movimentos de modo que já não importa tanto a presença de MSs como estruturas específicas ou organizações e mais as novas instituições, os novos quadros de pessoal, a nova mentalidade sobre a coisa pública.

Em suma, importa mais a nova cultura política gerada, traduzida em práticas e experiências como câmaras setoriais de negociações entre patrões, empregados/sindicatos e governo; dos grupos envolvidos nos programas de orçamento participativo. E ações coletivas sem fins lucrativos, que se colocam em defesa de setores da sociedade civil excluídos ou à margem do processo de desenvolvimento socioeconômico. Desempenhando um papel de mediação entre a sociedade, o mercado e o estado (Idem). Consoante com o que afirmou, há tempos, Francisco de Oliveira (1994), para quem não há crise de mobilização, mas um processo de democratização no interior do qual teria ocorrido uma mudança na forma de interlocução dos movimentos com o Estado.

O Movimento Popular de Luta pela Moradia também persiste enquanto estrutura organizativa com identidade própria, mas transformou-se bastante em função das novas frentes que o próprio movimento ajudou a construir, como a luta no plano jurídico pela reforma urbana. Nesta transformação, as ONGs ganharam maior espaço e centralidade na direção e condução do próprio movimento. Este aspecto tem também seu lado positivo – demonstra que a ausência de mobilização não significa colapso da rede movimentista social, porque, quando necessário, as ONGs acionam as ações coletivas e o movimento social reaparece em cena: impeachment, contra-reformas etc (GOHN, 2008, p.320).

Como já mencionamos páginas acima, Costa (1994, p. 43) fala do entendimento de Habermas, segundo o qual a opinião pública só pode constituir-se como fator de legitimação de decisões públicas à medida que esta se forme espontaneamente.

Também considera o autor que, embora as opiniões públicas sejam manipuláveis, não podem ser fabricadas ou compradas e, mesmo a manipulação só pode atuar sobre estruturas que se tenham constituído e reproduzido autonomamente. Há, assim, que se levar em consideração a concentração dos meios de comunicação no Brasil, nos quais as mobilizações sociais têm sido alvo freqüente de criminalização, com repercussões nas opiniões e em muitas decisões nos tribunais (MNDH, 2006).

IV - MOVIMENTOS SOCIAIS PELA REFORMA

URBANA E ABERTURA POLÍTICA

4 MOVIMENTOS SOCIAIS PELA REFORMA URBANA NO BRASIL

Há muito já se passou o tempo em que a superstição atribuía as revoluções à perversidade de um punhado de agitadores.

Antonio Gramsci

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