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a O passado que forma e informa: o caminho percorrido e as lições das guerras

I. O futuro desinformado: aprendendo a lutar guerras inexistentes

I.1. a O passado que forma e informa: o caminho percorrido e as lições das guerras

histórica no sentido da constituição de um processo no tempo que explica o presente. É, portanto, explicação. Em outro, ela é um repertório de exemplos para pensar e planejar. É, destarte, metáforas. Antes de entrarmos nesse segundo aspecto, focaremos no primeiro, alertando para que a história desenvolvida por Kahn nesse momento possui dois temas básicos: um, o político-militar e, outro, o desenvolvimento tecnológico. Ambos estão relacionados na construção histórica de Kahn.

Conforme diferentes intérpretes, o século XX apresentou uma nova forma de conflito para a humanidade. Kahn concordava com isso, já que interpretava as duas guerras mundiais como um rompimento com as formas e doutrinas das guerras anteriores. Para ele, o modelo de guerras mundiais anteriores às do século XX foi a série de guerras que seguiram a Revolução Francesa, em 1789, culminando nas guerras napoleônicas, que duraram até 1815. Ele identifica ainda a Guerra Franco-Prussiana como a última guerra longa na Europa, a qual terminara em 1871. Após isso, houve um período de quarente e três anos de paz, entre 1871 e 1914, no qual, conforme Kahn, a ocorrência de pequenas guerras só contribuiu para a sensação da irrealidade da ideia de guerra. Nesse sentido, os exércitos eram meros joguetes diplomáticos que nenhum governante parecia querer utilizar realmente. Havia, portanto, uma política de dissuasão forte e firme, que usava ameaças como garantia de paz.8

Outra dimensão dessas guerras era o aspecto técnico e tecnológico. Segundo Kahn e um colaborador seu, Irwin Mann, as guerras lutadas no século XVIII e XIX apresentaram poucas inovações de uma para outra, modificando pouco as condições fundamentais da arte da guerra. Assim, durante as Guerras Napoleônicas, os soldados e generais contavam com sua experiência, assim como com a dos outros. Essa era a forma da ciência militar.9

A I Guerra foi um choque de experiências e de compreensão militares para Kahn e isso pôde ser percebido a partir da expectativa dos especialistas militares que, conforme a guerra acontecia, não acreditavam que aquele conflito se tornaria o modelo para as guerras que viriam. Segundo Kahn, permanecia entre os especialistas a crença que o modelo futuro de guerra seria o das anteriores: com duração curta, como a entre Áustria e Prússia, que durou

8 KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 38-39; VIZENTINI,

Paulo Fagundes. História do século XX. Porto Alegre: Novo Século, 2000, p.34-48; HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.30-31, 35-38; KAHN, H., On thermonuclear war. 1969, p. 350, 357-358.

sete semanas, ou a guerra Franco-prussiana, que durou cinco semanas, e com objetivos limitados, visando, por exemplo, uma melhora de posição, que seria buscada de forma conservadora e com riscos limitados. A dinâmica desse tipo de guerra era que, tão logo um lado fosse derrotado em uma batalha importante, estava declarada a derrota. O vitorioso, então, faria uma oferta de paz, que contribuiria para que o outro lado aceitasse a derrota. Segundo Kahn, outro suporte para essa crença dos especialistas era o volume e a importância do comércio internacional, fazendo crer que uma guerra atrapalharia de forma vital a interdependência econômica das nações. Portanto, argumenta que quase todo mundo esperava que a guerra iniciada em 1914 seria curta.10

Todavia, a realidade, para Kahn, se mostrou diversa da expectativa. Como Kahn argumenta, além de a guerra ser longa, ela também foi inovadora em seus aspectos técnicos, com a metralhadora, o arame farpado, as trincheiras, o gás venenoso, o submarino, o tanque e os aviões, que, aliados à resiliência dos soldados e dos civis e às necessidades econômicas e políticas, produziram uma ferida na experiência das pessoas que viveram a guerra.11

Parte por esse trauma, parte pela crença de que aquilo não voltaria acontecer, para Kahn, ao fim da I Guerra, os vencedores – Inglaterra, França e EUA – deixaram de lado as novas ideias, tecnologias e técnicas que surgiram. Assim, segundo Kahn, “… como sempre, foi o derrotado quem melhor aprendeu as lições da guerra”12. Kahn confirma essa impressão acrescentando como, então, houve um despreparo com as possibilidades das mudanças tecnológicas, táticas e estratégicas citando o exemplo da Linha Maginot. Para a França, ela seria a solução de todos os problemas militares, fazendo com que os especialistas militares franceses parassem de analisar outras ideias e de ponderar os riscos de pôr uma grande ênfase em uma só ideia.13

Já no ambiente entre guerras, segundo Kahn, apesar de muitas das restrições do Tratado de Versalhes parecerem severas para alguns contemporâneos, os alemães encontraram uma forma de violar o tratado, tanto no espírito, quanto na letra da lei, como, por exemplo, ao colocar homens em serviço militar por meio de exércitos privados clandestinos. Kahn argumenta que havia, já em 1919, uma desilusão parcial com o Tratado, acompanhada

10 KAHN, H., On thermonuclear war 1969, p. 350.

11 KAHN, H., On thermonuclear war 1969, p. 351-356; BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica,

arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. v.1. p. 115; KEEGAN, J., 1995, p. 321, 372, 375; HOBSBAWM, E., 1995, p. 32-34; VIZENTINI, P. F., 2000, p. 36, 38, 47.

12 KAHN, H., On thermonuclear war. 1969, p. 353. “…as always, it was the defeated who learned best the

lessons of war” (Tradução nossa).

de uma defesa mais ampla pelo desarmamento, que, em alguns casos, continuou até 1934, após a ascensão de Hitler. Isso, para Kahn, ocorreu por um sentimento contrário à guerra.14

Kahn considera esse suposto espírito de desarmamento dos anos 20 e 30 como desastroso e ingênuo. Ele explica esse juízo com a construção histórica que fornece. Argumenta que logo após Hitler ascender ao poder, em 1933, a Alemanha iniciou seu rearmamento. Apesar de gerar alguma tensão, a crise só ficou aguda quando a Alemanha retirou-se de uma conferência sobre desarmamento da Liga das Nações, em 14 de Outubro de 1933. Essa atitude fortaleceu Hitler, já que mostrou para ele e para seus contendores que ele poderia desafiar a opinião pública e os clamores morais. Além disso, para Kahn, a postura de Hitler demonstrou que as reclamações estrangeiras e públicas não tinham efeito dissuasivo, principalmente se Hitler possuísse um discurso dentro da Alemanha de necessidade histórica para seus atos.15

Após isso, conforme Kahn, ansiosos para aliviar as ansiedades, alguns tratados foram feitos, como um naval entre Inglaterra e Alemanha, em Maio de 1935, que serviram para aliviar a tensão, porém, também geraram desatenção com os eventos que viriam. Finalmente, em Novembro de 1937, Hitler se reuniu com seus conselheiros militares e explicou o futuro da política militar do Reich. Hitler, acreditando que seu armamento era superior ou igual aos outros da Europa, resolveu que era hora de explorar essa superioridade. Isso tudo, cinco anos após Hitler assumir o poder de uma Alemanha em desvantagem. Portanto, para Kahn, mesmo nos pequenos sucessos nas campanhas diplomáticas que antecederam a guerra, as forças Aliadas estavam assustadas com o quão perto estavam de uma nova guerra mundial. Nesse clima, Hitler aproveitou seguidamente a alternância entre ameaças maníacas e apelos racionais.16

Conforme Kahn, estava claro que o povo alemão não queria a guerra e o exército alemão também não, enquanto que Hitler, sim, estava inclinado à guerra. Dessa forma, para Kahn, os Aliados deveriam ter percebido que, conforme a política de dissuasão não tinha mais efeito, deveria haver uma propensão à guerra. Contudo, para Kahn, as democracias eram incapazes disso e, Hitler, ao usar crises e manobras repetidamente, forçou-as a terem que pensar que a guerra deveria ser lutada e não dissuadida. Cada vez que Hitler apresentava a opção de guerra ou paz, as democracias eram desmoralizadas. Kahn conclui que Hitler, portanto, nunca ameaçou iniciar uma guerra contra França e Inglaterra, ele simplesmente

14 KAHN, H., On thermonuclear war, 1969, p. 388-390. 15 Ibid., p. 391-393.

ameaçou retaliar caso fosse atacado. Para Kahn, a história entre 1933-1939 foi o exemplo claro de falha da dissuasão, que decorreu do fato de nem a Inglaterra, nem a França, resolverem usar seu poder militar ou seus recursos superiores para frear a Alemanha antes que os eventos tomassem o rumo que tomaram.17

Pensando a II Guerra no Pacífico, Kahn argumenta que a operação singular mais interessante foi o ataque japonês a Pearl Harbor, pelas considerações que influenciaram a decisão, pela maneira competente que foi feito o planejamento e pela forma que o ataque foi executado. A preocupação japonesa era em realizar um ataque surpresa e, para isso, instituíram um programa de pesquisa e desenvolvimento. Não havia nesse esforço, conforme Kahn, um plano futuro. Era apenas uma alternativa contra a frota estadunidense que ficava em Pearl Harbor, que se baseava em um conhecimento japonês superior ao dos EUA sobre localização e número de tropas na base. Por fim, para Kahn, o Japão atacou os EUA, primeiramente, devido à necessidade expansionista, pois, caso não o fizesse, teriam que retardar ou mesmo parar suas conquistas na Ásia, e, o principal, porque eles conquistariam uma posição vantajosa. Então, apesar da análise que fizeram de 50% de chance de o ataque surpresa dar certo, que era, ainda, uma probabilidade maior do que um ataque surpresa nas Filipinas, os japoneses optaram por um ataque a Pearl Harbor.18

No aspecto técnico e tecnológico, Kahn defende uma tendência que percorreu as duas guerras. Na I Guerra, os militares se deparam com invenções, tecnologias e, portanto, uma nova situação para qual, só durante a II Guerra, encontrou-se solução. Tanto a utilização dos tanques, quanto a de outros artefatos tecnológicos que marcaram a I Guerra, era mais efetiva quando seguia orientações dadas por aqueles que os desenvolveram do que as dadas pelos seus operadores. Um exemplo disso foi que, somente no último ano da I Guerra, os ingleses chegaram a uma estratégia ideal para o uso de tanques e aviões.19

Já a II Guerra, conforme Kahn, presenciou o envolvimento inédito de engenheiros, cientistas e tecnólogos nos meios militares, pois, segundo ele, há, entre os meios militares das democracias, uma boa recepção à tecnologia, inclusive, em alguns casos, a tecnologias ainda prematuras. Dessa forma, para ele, o atraso do Eixo para usar os recursos científicos e técnicos disponíveis teve um papel importante na derrota. A ênfase das democracias no desenvolvimento tecnológico esteve praticamente ausente no período entre guerras, como já

17 KAHN, H., On thermonuclear war, 1969, p. 401-403, 378. 18 Ibid, p. 411-415.

comentamos. Kahn comprova isso citando Vannevar Bush20, que afirmou que os dispositivos usados na II Guerra foram, exceto a energia atômica, construídos e desenvolvidos em 1918. Nos EUA, isso ocorreu, segundo Bush, devido ao isolacionismo e a crença de que grandes guerras não aconteceriam mais. Portanto “a Segunda Guerra começou onde a primeira acabou”21. Assim, o transcorrer da II Guerra apresentou um conjunto novo de equipamentos com os quais os militares não tinham familiaridade e experiência. Essa falta de experiência também existia em relação à guerra que utilizava tais equipamentos. Além disso, Kahn e Mann argumentam que, como as operações militares do período estavam relacionadas com física aplicada – tal como a disposição de radares ou a bomba atômica – uma abordagem teórica e analítica era mais proveitosa, o que justificava o envolvimento de civis ligados à tecnologia, à engenharia e a ciências.22

Kahn reconhecia que seu livro OTW era um resultado indireto desse pensamento sobre a guerra que surgira durante a II Guerra. Essa ascendência se delineara anteriormente e foi exposta em um relatório de 1957 com o título Techniques of Systems Analysis (TSA), ainda quando Kahn era um analista de uma das principais instituições de consultoria da Força Aérea estadunidense no período pós-guerra, a RAND Corporation. O relatório faria parte de um livro que Kahn lançaria junto com um parceiro, Irwin Mann, nunca editado que se chamaria

Military Planning in an Uncertain World. O principal objetivo do livro era abordar algumas

contribuições que as análises técnica, científica, sistemática e operacional poderiam dar ao planejamento militar. O livro teria três partes. A primeira se chamaria Techniques of Systems Analysis. Ela foi finalizada e publicada integralmente, formando o relatório homônimo. Em linhas gerais, apresentava a Systems Analysis (SA), que era o planejamento da defesa dos EUA de forma sistemática e integrada com outros fatores que não somente aqueles próprios da esfera militar. A uma última parte do livro, cujo título seria Philosophical and methodological comments, abordaria questões metodológicas e filosóficas do planejamento militar, no sentido de dar dicas e identificar problemas do planejamento. Dentre os três capítulos planejados para essa parte, apenas o Ten common pitfalls foi lançado. Por fim, a segunda parte teria o título Techniques of Operations Research. Ela conteria os relatórios Game Theory, War Gaming e Monte Carlo, entre outros não lançados, que tratariam de economia básica, estatística e probabilidade. Esse capítulo tratava do pensamento

20 Voltaremos a ele mais à frente, mas foi um dos engenheiros e cientistas responsáveis pela aproximação dos

cientistas do setor militar durante a II Guerra.

21 Essa citação é de Vannevar Bush, que Kahn retira das páginas 15-16 do livroModern Arms and Free Men, de

1949. KAHN, H., On thermonuclear war, 1969, p. 380. “the Second World War began where the first one ended” (tradução nossa).

probabilístico e das formas de simular as políticas de defesa e, então, realizar o planejamento. Todas essas partes foram lançadas como relatórios da Corporação RAND.23

A Systems Analysis (SA), conforme aparece no TSA, era um produto mais recente e que derivava diretamente da Operations Research (OR), que é exposta parcialmente, por Kahn e Mann, nos relatórios Game Theory, War Gaming e Monte Carlo. A OR era, no contexto da guerra, o estudo das operações militares. Esse estudo remetia diretamente ao tipo de atividade desenvolvida por cientistas, engenheiros e tecnólogos durante a II Guerra e remontava o tipo de pensamento racional e de estudo de operação militar que, conforme Kahn e Mann expõem no TSA, ou mesmo Kahn expõe no OE ao citar os bizantinos, era mais antiga, mas, com a OR, recebera um novo ímpeto24.