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1. PATRIMÔNIO: REFLEXÕES ACERCA DAS AMBIGÜIDADES DO TERMO

1.4. PATRIMÔNIO E REMANEJAMENTO COMPULSÓRIO

A questão cultural em processos de remanejamento compulsório sempre foi um ponto importante, seja quando se pensa em processos de negociação e de garantia de direitos, quando se tem uma realidade de confronto de duas visões diferentes e uma em relação de desvantagem no processo de negociação (atingidos); seja quando se pensa na perda de referências culturais daquelas famílias reassentadas.

Assim, um primeiro aspecto refere-se à garantia de direitos e de uma diferença de visões que leva a problemas nos processos de reassentamento, tal como aponta Rebouças (2003) ao tratar do reassentamento de famílias ribeirinhas no Pontal do Paranapanema:

A mudança para um novo lugar traz em si a ruptura de uma morfologia social que estava inscrita na organização do espaço doméstico, na disposição dos diferentes domínios e no controle de seus trajetos e códigos. O reassentamento estabelece, também de forma compulsória, uma nova distribuição entre diferentes espaços que compõem o cotidiano daquelas comunidades, resultando em novas apropriações e representações.

Esta mudança, contudo, ocorre em diferentes níveis, que abrangem os espaços domésticos (casa, quintal e roça), local (rio, riachos, arredores e intermediações da casa) e regional (cidades próximas, comércio, redes viárias). (REBOUÇAS, 2003, p. 95).

Uma outra questão importante está atrelada à questão da luta simbólica, durante o processo de implantação deste tipo de empreendimento, pela apropriação do chamado espaço ambiental. Tal como apontado por Zhouri (2005), há um choque de

significados produzidos e articulados por duas racionalidades em confronto: de um lado, as populações ribeirinhas resguardam a terra como patrimônio da família e da comunidade, defendido pela memória coletiva e por regras de uso e compartilhamento dos recursos; de outro, o Setor Elétrico, incluindo-se o Estado e empreendedores públicos e privados que, a partir de uma ótica de mercado, entendem o território como propriedade, e, como tal, uma mercadoria passível de valoração monetária. (ZHOURI, 2005, p. 1-2).

Esse confronto entre desiguais, que trazem consigo visões de mundo opostas, é a tônica da literatura acerca dos reassentamentos compulsórios em função da implantação de usinas hidrelétricas. Neste confronto, a lógica do empreendedor acaba se sobrepondo à das comunidades ribeirinhas4.

Em relação aos impactos relativos à perda de referências culturais pelas comunidades atingidas por barragens, tem-se duas vertentes diferentes de implantação de ações relacionadas à preservação do patrimônio cultural de comunidades atingidas por barragens: de um lado aqueles que se utilizam das metodologias de história oral e outras formas de obtenção de informações de caráter qualitativo, as quais estão inseridas num rol de ações desenvolvidas pelo empreendedor, no âmbito dos programas, visando a obtenção de licenças. E de outro lado, trabalhos, desenvolvidos por instituições independentes (não relacionadas ao empreendedor) que se utilizam deste mesmo tipo de metodologia com vistas a mobilizar as comunidades e inviabilizar o empreendimento.

Assim, trabalhos recentes5 têm apresentado considerações sobre a questão da memória e cultura das comunidades atingidas por barragens. Carmo e Moura (2005), ao tratarem dos estudos para a implantação, pela Light, da usina Itaocara, a qual atingirá a comunidade de São Sebastião do Paraíba, dentre outros, abordam a utilização da metodologia da História Oral, por meio de um processo de rememoração incentivado, como forma de vencer “a negação de

si, ou seja, o silêncio construído na angústia de não encontrar uma escuta, no medo de dizer e

de ser punido por aqueles que dirigem o clientelismo no município” (CARMO; MOURA, 2005, p. 12).

Da mesma forma, Alves e Mesquita (2005) utilizam-se da memória e da História Oral como recursos estratégicos para a reconstrução de identidade cultural dos moradores do Vale de São Marcos, atingido pela Usina Serra do Facão, e como um fator de mobilização e de produção de significados, por “considerar as permanências e rupturas que viabilizam novos padrões relacionais e discursivos” (ALVES; MESQUITA, 2005, p.01) visando mobilizar as comunidades atingidas pelos empreendimentos hidrelétricos com vistas a impedir a implantação destes.

4 Embora este não seja o foco da análise empreendida neste trabalho, essa característica autoritária dos processos de remanejamento compulsório de populações ribeirinhas é importante na medida em que, enquanto políticas de Estado, as práticas de preservação patrimonial também guardam certas características de autoritarismo, de maneira particular no que tange ao processo de identificação, valoração e definição da necessidade de salvaguarda dos bens e práticas culturais e da necessária exclusão daqueles que não são eleitos para preservação.

5 Para acesso a esta literatura, os anais do I Encontro Ciências Sociais e Barragens, realizado em 2005 no Rio de Janeiro, podem oferecer importantes fontes de informação.

Entretanto, estas experiências têm como características o fato de terem sido conduzidas por técnicos e instituições outras, geralmente ligadas a universidades ou organismos de defesa dos atingidos, e não pelos empreendedores.

No que diz respeito à implantação da Usina Hidrelétrica Irapé, esta foi a primeira iniciativa desenvolvida pelo empreendedor que contou com a participação direta do órgão responsável pela preservação do patrimônio cultural, IPHAN, e da utilização de uma ferramenta de Política Pública de Preservação Patrimonial, executada pelo próprio empreendedor, e com comunidades já em processo de remanejamento compulsório. Essa utilização se justificou, conforme os textos do próprio programa implementado, como forma de garantia de direitos e de preservação do patrimônio cultural das comunidades afetadas por Irapé. Analiso, neste tópico, como esta noção de preservação do patrimônio cultural foi inserida neste contexto, bem como se deu a participação do IPHAN.

No Estudo de Impacto Ambiental da UHE Irapé, concluído em 1987, não há nenhuma menção relacionada à preservação de elementos da cultura das populações afetadas pelo empreendimento. A inclusão do IPHAN no processo de licenciamento de Irapé se deu, conforme análise dos documentos referentes ao licenciamento ambiental e das entrevistas com técnicos envolvidos, em função da demanda da Comissão de Atingidos pela Barragem de Irapé pelo reconhecimento, como remanescente de quilombos, de uma das comunidades afetadas pelo empreendimento, Porto Coris. Após essa demanda, foram acionados o IPHAN e a Fundação Cultural Palmares – FCP, os quais foram incitados a apresentar pareceres contendo as diretrizes para trabalhos com as comunidades.

Esses pareceres foram apresentados quando da licitação do empreendimento pela ANEEL, em 1998, por meio do Anexo 8 ao edital de licitação, o qual apresentava as considerações do IPHAN e da FCP. Neste anexo constavam as linhas gerais a serem seguidas com vistas a dar prosseguimento aos trabalhos de implantação da usina. Essas diretrizes foram transformadas em programas e projetos executivos apresentados no Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, constante do Plano de Controle Ambiental, elaborado em 2001. Este Programa foi incorporado como Anexo III do Termo de Acordo, assinado em 2002.

Assim, será analisado o Anexo III, do Termo de Acordo, que apresenta o Programa de Reconhecimento, Preservação e Valorização do Patrimônio Cultural das Comunidades Impactadas pela UHE Irapé e, dentre outras ações, determina a utilização do INRC por parte da CEMIG no processo de implantação da UHE Irapé e o acompanhamento dos técnicos do IPHAN/Brasília desse processo.

Essa determinação colocou à CEMIG e ao próprio IPHAN uma situação nova, que é a utilização do INRC no registro do patrimônio imaterial das comunidades afetadas por um empreendimento hidrelétrico. Cabe ressaltar que no próprio manual de utilização do INRC consta que “os procedimentos de inventário criados para o INRC não se aplicam a situações de emergência – como ocorre em áreas impactadas por projetos e empreendimentos de naturezas variadas – nem se prestam à realização de censos pretensamente exaustivos em unidades territoriais mal delimitadas” (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2000. grifo nosso). Entretanto, o desafio de acatar tal determinação do MPF, quando da assinatura do Termo de Acordo, em 2002, foi aceito pelas duas instituições, tendo sido iniciado em julho de 2004.

Nessa medida, já fica clara a primeira questão da utilização do INRC no âmbito do processo de licenciamento da UHE Irapé, que é a de como garantir a preservação das referências imateriais das comunidades aí envolvidas, tendo em vista a perda das referências materiais dessas manifestações.

No caso da UHE Irapé, a definição daqueles aspectos que fariam parte do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural foi realizada, em primeiro lugar, pelos técnicos do IPHAN que elaboraram o parecer que passou a ser considerado como Anexo 08 ao edital de pré-qualificação da ANEEL, em 1998. Nota-se que, nesta data, ainda não havia sido promulgado o PNPI, mas as discussões que a viabilizaram já estavam em andamento – posto que já havia sido realizado o encontro de Fortaleza, em 1997 – e encontram-se postas no texto do parecer. Este parecer elaborado pelo IPHAN para o caso da UHE Irapé, constou de três itens: o primeiro sobre o programa de salvamento arqueológico; o segundo sobre o programa de preservação do patrimônio cultural; e o terceiro sobre o programa de adequação, recomposição e melhoria da infra-estrutura econômica e social. No segundo item, que nos interessa, consta o seguinte texto:

“Para salvaguardar as manifestações da cultura popular e os modos de ser e viver tradicionais das comunidade das Áreas Diretamente Atingida e de Influência, recomenda-se a criação de um Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, capaz de contemplar:

- registro e documentação da história oral e das referências culturais das comunidades a serem diretamente atingidas;

- registro audiovisual das festas e celebrações identificadas no Estudo Preliminar;

- registro e documentação das tecnologias e produtos patrimoniais tradicionais, tais como casas de farinha, alambiques, padrões e materiais de construção tradicionais, bem como produtos e atividades artesanais;

- registro e documentação de todo o processo de reassentamento e reorganização das áreas remanescentes;

- implantação de um projeto de educação patrimonial em todos os municípios das Áreas Diretamente Atingida e de Influência;

- criação de um museu, concebido como centro de referência histórica e cultural, para as comunidades da Área Diretamente Afetada e da Área de Influência da UHE Irapé, onde serão reunidos e apresentados objetos, depoimentos, fotografias dos moradores e das áreas alagadas e de entorno, de suas festas, celebrações ou outros elementos que possam funcionar como suporte de identidade e da memória coletiva das populações locais. Esse museu poderá receber e apresentar, ainda, as coleções arqueológicas constituídas com o salvamento dos sítios e o conhecimento a ser produzido sobre a ocupação pré-histórica e histórica da região. Poderá ser convenientemente instalado no antigo sobrado localizado em Berilo, que se encontra abandonado e deverá ser recuperado e adequado”.

O Programa de Preservação do Patrimônio Cultural de Irapé, elaborado em 2001 no âmbito do Plano de Controle Ambiental, resume-se quase exclusivamente naqueles aspectos constantes nas recomendações do IPHAN, já incluindo a utilização do INRC.

Para a elaboração deste Programa, os técnicos responsáveis buscaram informações acerca das pessoas que, em cada uma das comunidades afetadas pelo empreendimento, fossem detentoras de saberes específicos, ligadas aos aspectos materiais e imateriais da cultura. Esta identificação teve como linha de orientação as diretrizes do IPHAN e traz implícito o olhar do órgão oficial acerca do que é relevante sob o ponto de vista das referências culturais e daquilo que deve ser inventariado e preservado, sem contudo atentar para as especificidades inerentes ao processo de remanejamento compulsório destas comunidades, tais como a particular relação com a terra e com os outros moradores da região.

Conforme Galizoni (2000, p. 82-83), “Dois elementos são importantes para compreender as formas de acesso e permanência na terra: os ecológicos – que envolvem a relação entre tecnologia e ambiente – e os sociais e culturais, que envolvem a relação dos grupos familiares entre si. A terra está intrinsecamente ligada à família, e o movimento da terra não pode ser entendido apartado desta. Assim, parentesco e terra articulam-se para produzir mais família”.

Pode-se dizer que as duas vertentes citadas no início deste tópico, (as que usam as ferramentas de levantamento qualitativo para a execução de programas comandados pelo empreendedor e as que se utilizam das mesmas ferramentas para mobilizar comunidades atingidas contra empreendimentos) é a noção de que o levantamento e valorização das tradições e história desses grupos possuem força suficiente para garantir a preservação do próprio grupo.

Por outro lado, o estabelecimento do conceito de patrimônio imaterial e de formas de garantir sua preservação implicam numa materialização desses aspectos culturais. Essa objetificação cultural, nos termos de Gonçalves (1996) e Handler (2003), enquanto “materialização imaginativa de realidades humanas em termos de discurso teórico baseado no conceito de cultura”, não considera uma questão básica que é a de que a “preservação” dos bens de natureza imaterial não se dão sobre esses bens culturais, mas sobre as construções que se fazem desses bens.

2. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMONIO CULTURAL DAS