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O performer e sua inserção cartográfica

1 SOBREVÔO PARA A DEFINIÇÃO DE UMA PRÁTICA-PENSAMENTO

1.8 O performer e sua inserção cartográfica

O performer, também, insere se cartograficamente. Isso quer dizer que, na perspectiva da pesquisa da improvisação física e experimental, ele não ocupa um lugar hierárquico em relação aos outros elementos da cena. Se a autonomia é o ponto de partida, esta não supõe, todavia, os modelos teatrais baseados na unidade em torno do ator, postulados, por exemplo, por Stanislavski e Gordon Craig (COHEN, 1998, p. XXV).

Mas como definir o performer? Pavis (2003, p. 55) oferece uma definição sucinta: “O performer, diferentemente do ator, não representa um papel, age em seu próprio nome”. Não tanto ou necessariamente em seu próprio nome, na sua pessoalidade, na sua subjetividade, ou suposta identidade (sua vida pessoal, por exemplo). Já o artista canadense dedicado à performance art, Richard Martel (DIÉGUEZ, 2003) entende o performer como um interventor de espaços. E numa visão cartográfica, em que os elementos da cena estabelecem conexões não hierárquicas, a corporeidade faz-se de modo a-centrado, tornando-se um traço, um risco, um plano de experimentação.

Ao tomar por influência os campos dos teatros físicos e teatros

experimentais, na perspectiva pós-dramática analisada por Lehmann, assim como

a improvisação física e experimental proporciona ferramentas e abre perspectivas para a criação performática.

Antes de querer definir quais seriam as habilidades de um performer e o que ele pode fazer, tenho por suposto que a pesquisa o provoca mais no sentido de apropriar-se de suas próprias questões, conquistar autonomia cênica e deflagrar

corporeidades transgressoras e de fronteiras que não se limitem a produzir a realização técnica de saberes de cena semiotizados. A prática da improvisação

física e experimental pode incidir, numa perspectiva compositiva, nos seguintes pontos:

a) na autonomia para estabelecer, a partir de sua situação-imersão cênica, Pontos de Vista (BOGART and LANDAU, 2005), relacionados ao espaço-tempo (saber de si no espaço cênico e, simultaneamente, das formas sensíveis e dos relacionamentos que estas podem produzir);

b) numa poética corporal que realize uma ponte entre os sistemas voluntário e involuntário;

c) na habilidade improvisacional, trabalhando com o incremento da capacidade de fazer escolhas (tomar decisões), incorporar acasos e gerar surpresas para si e para o espaço cênico;

d) no desenvolvimento de ritornelos de movimento e sua transformação em cartografias corporais;

e) na habilidade para compor através de processos intermídias (dialogando com artistas e meios diversos);

f) na expansão de sua atentividade;

g) na capacidade de entrar em conexão com singularidades humanas diversas, não necessariamente habilitadas, seja de universos excluídos ou de outras corporeidades, sem querer impor um horizonte a ser atingido, uma estrutura ou modelo a ser aplicado, mas deixando que se mostrem em sua própria fisicalidade não representacional. Obviamente, um performer físico e experimental não estará, na perspectiva da pesquisa, desenvolvendo habilidades para interpretar personagens, mas esta não é uma falta e sim uma atitude afirmativa, o que não o impede, obviamente, de querer exercitar-se nesse instrumento.

Porém, parto do pressuposto, evidenciado por Pavis (2003), de que há uma diferença radical entre desejo mimético e fluxo pulsional. O performer físico e experimental localiza-se no segundo, mas isso não quer dizer que não se exercite, também, nas potências do falso (Deleuze, 1982) – o simulacro que não se legitima numa conformação com o que seriam as idéias originais. Entra-se na zona do

simulacro que não opera como cópia. Esta trabalha por semelhança, enquanto o

simulacro não se assemelha a nada: “ele coloca o próprio mundo como fantasma”. (DELEUZE, 1982, p. 267).

Cabe dizer, ainda, que, mesmo no âmbito das formações técnicas dirigidas para o teatro ou a dança, a improvisação física e experimental pode contribuir para a ampliação de seus instrumentos e habilidades, bem como para o desenvolvimento de sua autonomia criativa. Se não é um método ou capítulo a ser inserido numa lógica progressiva e acumulativa de desenvolvimento e ensino em arte (como as que são predominantes), pode, nessa perspectiva, contribuir para a ampliação de concepções cênico-corpóreas, inclusive em termos de treinamento pessoal, já que a aproximação entre arte e vida faz parte de suas obsessões e riscos.

Quando se disse, no item 1.1, que Robert Wilson teria trabalhado, no início, com performers não profissionais, incluindo adolescentes com deficiência auditiva e autistas, deve-se notar que o encenador utilizava o trabalho de profissionais em questões corporais. (GALIZIA, 1986). Tratava-se de inserir as pessoas, que preferencialmente não possuíam formação teatral, na confecção de visualidades e apropriações corporais já numa entrada em criação. Deve ser lembrado que Robert Wilson marcou a cena contemporânea com a criação de um teatro de impacto visual e que não encontrava, no meio teatral predominante, processos de treinamento que dialogassem com suas questões. Mais tarde, Wilson utilizará atores. O que mudou? Mudou no sentido de que ele passa a montar performances com base em textos teatrais. E que passa a trabalhar com atores profissionais.

Halperin-Royer (2002) aborda justamente essa fase de Robert Wilson. A análise recorta as encenações a partir dos anos oitenta, abordando especificamente a montagem do texto de Büchner, Danton´s Death (1992). Nessa fase mais recente, mesmo trabalhando com textos teatrais, Robert Wilson continua sua busca por uma

performance não naturalista, por um estilo formalista, que, apesar da autora chamar de pós-modernista, prefiro trabalhar com o conceito de Lehmann, que trata tais criações cênicas não a partir de uma referência com a negação do modernismo, mas da ruptura do vínculo interno entre teatro e drama, em temos de teatro pós- dramático.

Acompanhando os ensaios e os workshops que os precederam, entrevistando os performers, Halperin-Royer consegue expor que, na nova perspectiva de Wilson, as habilidades técnicas são mais enfatizadas. Tais habilidades referem-se a treino vocal e treino em movimento. Porém, dentre essas esferas, as experiências em treinamentos e performances não naturalistas e em procedimentos corporais formalistas foram as que proporcionaram mais elementos facilitadores para o diálogo com os processos criativos de Robert Wilson. Entre essas, devem ser citadas as experiências com os treinamentos de Bogart e Tadashi Suzuki. Halperin-Royer observa que muitos atores relataram que suas experiências em trabalhos fisicamente orientados e com diretores vanguardistas lhes facilitaram a compreensão das idéias de Robert Wilson.

Desse modo, se há em Robert Wilson, para dar apenas um exemplo de criação cênica não-naturalista, formalista e experimental, uma presença maior de atores, juntamente com a utilização de textos teatrais, as habilidades diferem daquelas que ele demonstrava encontrar no contexto dos anos sessenta e setenta, basicamente circunscritas ao aspecto interpretativo e ao teatro naturalista. Wilson solicita que os atores sejam capazes de compor um livro visual (p. 323), que antecede o livro de áudio. O pensamento, ressalta Halperin-Royer, faz-se na linha da abordagem física da caracterização. No caso dos exercícios compositivos e improvisacionais, a compreensão das habilidades do performer deve ser situada nessa linha de experiências em trabalhos de criação fisicamente orientados.

O exemplo de Robert Wilson não quer dizer, entretanto, que se trata de uma prática-pensamento deduzida das necessidades desse tipo de encenação, mas sim que existe um campo heterogêneo de encenação contemporânea abrindo-se para habilidades que se exercitam numa orientação física e experimental. O treinamento em e como criação, na direção dos exercícios improvisacionais e compositivos, envolvendo abordagens físicas e experimentais, contribui de algum modo para esse campo.

E para dar um exemplo disso, relato a seguir um treinamento que se deu em criação, para realização de uma intervenção cênica, com atores sem essa experiência específica e, além disso, sem formação sistemática e acadêmica em teatro.

O relato fala da transformação de um grupo de atores populares, sem formação técnica em artes cênicas, em performers físicos, que utilizaram alguns elementos de improvisação física tanto no ensaio quanto na apresentação. Eles continuaram realizando seus trabalhos, mas se permitiram, num determinado momento, realizar uma performance na rua, completamente fora dos parâmetros com os quais trabalhavam. Quando falo de transformação, falo da mudança de agenciamento cênico espetacular em que eles entraram:

Um grupo de artistas, sem formação técnica e acadêmica na área cênica, iria se apresentar num evento cultural. Trabalhavam nos dias de semana, a maior parte deles, como porteiros de prédios públicos e, nas horas vagas, realizavam shows de palhaços. Apresentavam um esquete, cuja base de atuação era histriônica, com uma presença cênica muito grande, conseguindo segurar a atenção das pessoas na rua: brincavam de fazer entrevistas com uma câmera de papelão, sendo que um deles, um dos mais histriônicos, fazia o papel da jornalista. O público, nas ruas, ficava eletrizado.

Propus a eles que, além dessa cena, realizassem um trabalho completamente diferente do que, até então, vinham fazendo. Sem mais nem menos eles aceitaram. Havia pouco tempo: quatro encontros, uma vez por semana à noite, após os seus horários de trabalho. A proposta consistia em: “cinco homens sentados em cadeiras na calçada de uma rua bem movimentada, por volta das 13 horas, sem fazer nada. Este “sem fazer nada” já era uma estratégia minha para que não contassem com as ações histriônicas, com as interpretações, com os estados emocionais, etc. A situação já falaria por si só, disse a eles, não seria preciso atuar, fingir, representar. Não se pretendia, além disso, construir uma história a partir das caracterizações. Se houvesse uma ficção, disse a eles, estaria antes na cabeça das pessoas que iriam passar pelo local. Qual foi o procedimento inicial? Treinar em não fazer nada. Posso dizer que grande parte do tempo foi gasto precisamente nisso: não fazer nada. Ora, isso

é muito difícil. Principalmente devido à visão que o grupo possuía de teatro, de espetáculo, não diferindo muito da que se encontra em outras esferas, com a diferença de que eles não se sentiam ameaçados (pelos menos não pude perceber isso) e entregavam-se totalmente ao jogo a que se propunham. Deparei-me com excelentes cômicos.

Não havia tempo para exercícios corporais: a composição era imediata – como a situação era minimalista, o tempo era todo nosso. Utilizei, apenas, o exercício de ficar de pé e respirar, sentindo os apoios. Depois, modos de chegar até as cadeiras. Propus que, no início, eles utilizassem seus narizes de palhaço. Depois, eles os tirariam. Mais adiante, trabalhamos com os modos de se levantar e a relação que surgia entre eles. E improvisamos com isso.

O que se pedia: conexão total e máxima entre eles, de modo que, cada movimento, por menor que fosse, afetasse todos. Busquei o patético que se revelava por si só: cinco homens, de roupas sóbrias (calças e paletós simples), sentados em cadeiras idênticas, na calçada de uma rua movimentada: isso já era informação demasiada. O que estava em jogo, portanto: perceber-se, perceber o outro, estabelecer alguns padrões de linha (as cadeiras enfileiradas uma ao lado da outra já proporcionavam isso), atenção plena.

Fomos para a rua. Havia uma estrutura básica, incluindo alguns movimentos em uníssono, sendo que, no meio, as improvisações ocorriam. Em alguns momentos, um deles disparava uma seqüência de movimentos, num misto de coisas criadas anteriormente e inventadas na hora. Havia sim um jogo, mas sem regras determinadas, a não ser a de se perceberem o tempo todo. Uma pequena seqüência coletiva de movimentos, cada um diante de sua cadeira, com ampla visibilidade, foi utilizada, a que eles recorriam por grandes intervalos de tempo. Eram movimentos de aquecimento, pequenos pulos no mesmo lugar, nas quatro direções. O resto era improvisação.

As reações foram colhidas por mim e por algumas pessoas que nos ajudavam. As falas fornecem um sentido de indiscernibilidade, que é justo o que se pretendia.

Dois adolescentes: “Olha velho, você disse que eles são loucos, não são loucos nada... Isso é teatro...” E o outro: “E o que é loucura para você?”

Dois idosos: “Isso é teatro sim, olha lá.” O outro responde: “Mas não é daqui do Brasil não. Eles importaram esses caras aí para fazer isso...”55

Mal sabiam aquelas pessoas que os performers eram porteiros de prédios públicos, que durante a noite e em fins de semana realizam esquetes de palhaços, num tom de comédia muito parecido com os de programas de televisão.

55

O relato refere-e à apresentação de “05 na Calçada”, realizada para o Projeto Zona de Ocupação Cultural, do Centro de Cultura Belo Horizonte, Belo Horizonte, 2004.

2 PLANOS DA IMPROVISAÇÃO FÍSICA E EXPERIMENTAL E SEUS