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Periferia, formação, democracia e inclusão

Procuramos neste trabalho fazer um balanço ainda que limitado (dada a envergadura do tema e as restrições de espaço de um capítulo) sobre a recep- ção das teses de Mannheim na obra sociológica de Florestan Fernandes. Um dos pontos que esperamos ter resolvido versa sobre as condições dessa re- cepção, marcadas pelo processo necessário de ajuste de uma teoria forjada no ambiente de sociedades mais desenvolvidas para o cenário da periferia sub- desenvolvida. Nesse movimento, muito embora as categorias e postulados mannheimianos transcendam o contexto social de sua emergência (são teo- rias de caráter universal, aplicadas à dinâmica das sociedades modernas), sua aceitação e utilização pelos intelectuais latino-americanos – em especial no Brasil e por autores como Florestan, Furtado e Luiz Pereira – beneficiou-se de um ajuste fino às demandas de uma agenda de pesquisa que precisava lidar com temas apropriados à quatro condições particulares dessa configuração: a ideia de formação (perspectiva analítica de trajetória que revela o presente pe- los condicionantes do passado), a compreensão da explicação como destinada

à transformação orientada (de onde brotará a energia utópica do planejamen- to), do objetivo de atingimento de situações mais avançadas e racionalizadas da vida social (o planejamento para o progresso) e do papel estratégico da

intelligentsia nesse conjunto.

Desta forma, Mannheim foi recebido e bem recebido na obra de Flores- tan, que se apropriou das teses e da legitimidade já consagrada do primeiro para atingir e realizar a sua própria agenda de pesquisa. Houve, assim, um movimento duplo: de filiação e de ressignificação, sendo que esta última re- presentou o ajuste das teses de Mannheim a um contexto mais complexo e diferente daquele que o autor alemão tinha diante dos olhos na gestação de sua obra: a situação periférica. De outro ângulo, a proeminência da obra de Mannheim nos manuais e textos de configuração das bases do método socio- lógico produzidos por Florestan foi acompanhada (em algumas fases de ma- neira mais acentuada que em outras) pelo partilhamento de valores políticos, como a tarefa fundamental do conhecimento como ferramenta do bem-estar e do progresso, e do reconhecimento do potencial que a defesa do controle social e democrático possibilitaria na diminuição dos efeitos irracionais, con- servadores e reacionários no campo social, econômico e político. O resulta- do foi a produção de um diálogo em que duas obras vigorosas associaram-se, em contextos diferentes, a uma mesma matriz metodológica e um mesmo campo de objetivos sócio-políticos.

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Alejandro Blanco2

Luiz Carlos Jackson3

Espelhada na trajetória de Gino Germani (1911-1979), a de Florestan Fernandes (1920-1992) revela aspectos possivelmente não problematizados anteriormente. Este trabalho realiza esse movimento inscrevendo os dois personagens nos contextos de institucionalização da Sociologia na Argentina e no Brasil, nos quais lideraram, como se sabe, projetos muito destacados e centrais à legitimação dessa disciplina nos dois países4.

No contexto latino-americano, a análise comparada dos casos brasilei- ro e argentino se justifica, em primeiro lugar, porque neles prevaleceram 1 Este trabalho foi publicado originalmente com o mesmo título na revista Sociologia e An-

tropologia, volume 4, número 1, 2014, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antro-

pologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Agradecemos muito os juízos e sugestões dos pareceristas da revista, que nos permitiram melhorar o argumento aqui desenvolvido. Este texto é o eixo de um trabalho mais abrangente sobre o desenvolvimento da sociologia no Brasil e na Argentina, em vias de publicação como livro.

2 Alejandro Blanco é mestre em Sociologia da Cultura pela Universidad Nacional General San Martín e doutor em História pela Universidade de Buenos Aires (UBA), onde também se graduou em Sociologia. Atualmente é professor de Sociologia na Universidade Nacional de Quilmes (UNQ), membro do Centro de História Intelectual desta universidade e pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET).

3 Luiz Carlos Jackson é livre-docente e professor do Departamento de Sociologia da Facul- dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). 4 Além do texto de Sérgio Miceli (2012), que compara as duas trajetórias, remeteremos o leitor ao livro recente de Antonio Brasil (2013), que analisa os esquemas analíticos mobilizados pelos dois sociólogos.

iniciativas voltadas ao desenvolvimento da sociologia concebidas e implan- tadas nacionalmente, originadas pela inserção do ensino e da pesquisa no interior de instituições universitárias previamente existentes ou em novas universidades e escolas superiores. Sob tais aspectos, os casos do Chile e do México podem ser contrapostos, por razões distintas. No primeiro, o de- senvolvimento da disciplina teve seu lastro mais importante em iniciativas transnacionais. O exemplo da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) é, a esse respeito, emblemático. A instituição resultou de arranjos internacionais e não de uma iniciativa predominantemente na- cional. Uma evidência disso reside no fato de os primeiros três diretores da Escola Latino-Americana de Sociologia (ELAS), primeiro programa de pós-graduação da FLACSO, terem sido estrangeiros5. As iniciativas locais

de Eduardo Hamuy, diretor do Instituto de Sociologia da Universidade do Chile, envolvido com a defesa de uma sociologia moderna e empírica, não se concretizaram em um programa amplo de pesquisa, nem na institucio- nalização do ensino da disciplina como um curso autônomo. Talvez uma exceção tenha sido a Escola de Sociologia da Universidade Católica do Chi- le, dirigida pelo sacerdote jesuíta de origem belga, Roger Vekemans, que, durante a década de 1960, cumpriu um papel central na formação e no trei- namento dos sociólogos chilenos. Mas nesse caso, também, foram decisivos os apoios externos, propiciados pela rede de contratos da Igreja Católica, que favoreceu a incorporação dos primeiros professores, todos eles estran- geiros (Brunner, 1985).

No México, apesar do empenho de Lucio Mendieta y Núñez e do espa- nhol José Medina Echavarría desde o final dos anos de 1930 e do forte apoio estatal a essas iniciativas – destacando-se a importância de instituições pú- blicas como a editora Fondo de Cultura Económica e a Revista Mexicana de

Sociolgía, que repercutiram em toda a América Latina –, isso não gerou in-

ternamente um processo de institucionalização consistente. A experiência mais ambiciosa, dirigida por Medina Echavarría, o Centro de Estudos So- ciais do Colégio do México, fracassou depois de três anos de funcionamen- to, entre 1943 e 1946 (Morcillo Laiz, 2008; Blanco, 2010). Outra tentativa se deu com a criação da Escola Nacional de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), criada em 1951, 5 Foram eles o espanhol José Medina Echavarría, entre 1958 e 1960; o suíço Peter Heintz, entre 1960 e 1965; e o brasileiro Gláucio Ary Dillon Soares, entre 1966 e 1968.

mas esse empreendimento acabou não gerando uma organização acadêmica empenhada na formação de cientistas sociais, mas, sim, na preparação de postulantes à carreira diplomática (Reyna, 1979; Castañeda, 1990). Seria apenas a partir de 1960 que um impulso mais efetivo teria lugar nesse país, destacando-se as iniciativas de Pablo González Casanova nesse processo (Reyna, 2007).

Em segundo lugar, no Brasil e na Argentina a sociologia institucionalizou- -se como disciplina científica no interior da universidade, permitindo uma ar- ticulação mais efetiva do ensino e da pesquisa. Tais condições foram propícias ao surgimento de lideranças institucionais e intelectuais, tais como as de Raúl Orgaz, Ricardo Levene, Alfredo Poviña e Gino Germani, na Argentina; Do- nald Pierson, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Alberto Guerreiro Ramos, Roger Bastide, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Florestan Fernandes, no Brasil. Em outros termos, o desenvolvimento pioneiro de organizações acadêmi- cas modernas6 nesses países favoreceu uma orientação predominantemente

científica nessa disciplina.

Nos dois casos, em terceiro lugar, uma nova cultura intelectual foi ge- rada, caracterizada pela exigência de profissionalização, pela valorização do trabalho em equipe, pela imposição de uma linguagem científica (Arruda, 1995), pela defesa do rigor teórico e da fundamentação empírica, pela fi- xação de critérios comuns de avaliação e pelo desenvolvimento de projetos acadêmicos e de programas coletivos de pesquisa. Finalmente, em ambos, mais precisamente nas cidades de São Paulo e em Buenos Aires, constituí- ram-se empreendimentos mais próximos ao que se convencionou designar como “escola” (Tiryakian, 1979; Bulmer, 1984), ou seja, um grupo intelec- tual formado por líder e discípulos – reunidos em torno de ideias, técnicas, programas e disposições normativas –, que pensam sua atividade como uma missão. Tais inovações relacionaram-se, sobretudo, aos nomes de Gino Germani, na Argentina, e de Florestan Fernandes, no Brasil, “lideranças carismáticas” que se impuseram quase ao mesmo tempo, nas décadas de 1950 e 1960. Entender os condicionantes envolvidos na emergência desses

6 Seguindo a Joseph Ben-David (1971), entendemos por “sistema acadêmico moderno” um modo de organização universitária que integra ensino e pesquisa, propiciando a formação de grupos de pesquisadores e promovendo sua profissionalização. Tal configuração teria apare- cido inicialmente na Alemanha, durante o século XIX, e alcançaria sua máxima expressão no século XX, nos Estados Unidos.

dois “chefes de escola”7, pontuando semelhanças e diferenças entre tais ex-

periências, é o objetivo central deste trabalho.