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Como vemos em Delval (1989, 1991, 1994, 1999), Delval e Padilla (1999), todo o conhecimento é social na sua origem. Ele só se produz na sociedade e é compartilhado com nossos semelhantes, tanto o conhecimento do mundo físico como o que envolve seres humanos e suas relações.

Os primeiros estudos do conhecimento da sociedade enfatizam que a criança recebe as noções sociais dos adultos que a rodeiam e que a pressão do ambiente determina a forma de ver o mundo e suas representações. Este ponto de vista serviu como base para trabalhos posteriores: por um lado, da sociologia, e, em especial, da perspectiva de Durkheim e sua escola, que vêem que é a pressão social que determina as representações do sujeito, e por outro lado, da psicologia condutista, que atribui a formação das condutas ao ambiente. Ambas as posições apóiam-se na idéia da socialização, compartilhando a crença de que é a influência exterior que determina as representações do sujeito, deixando pouco lugar para a atividade do sujeito.

Atrelado à ótica da socialização, muitas pesquisas foram feitas nos anos 50 e 60, buscando investigar a influência das variáveis do ambiente nas idéias das crianças, tais como: classe social, tipo de educação, afiliação política, religiosa, etc. Os estudos embasados nessa posição teórica enfocam, em especial, os conteúdos do pensamento infantil, buscando ver até que ponto estes se aproximam ou se distanciam daqueles dos adultos. Observa-se, na maioria desses trabalhos publicados sob o enfoque da socialização, uma ausência de preocupação com o modo como os sujeitos organizam e selecionam as informações sociais, já que pouco destaque é dado à relação entre suas ferramentas intelectuais e sua maneira de entender a realidade social (Delval, 1989).

A partir dos anos 60, a teoria das representações coletivas de Durkheim é retomada por Serge Moscovici, que afirma que as representações sociais são um

conjunto de proposições, reações, avaliações e conhecimentos compartilhados pelos sujeitos de um grupo social. O pensamento principal dessa perspectiva é o de que o sujeito recebe as representações sociais pela comunicação social, do grupo social ao qual pertence. Dessa forma, acredita-se existirem diferentes representações nos distintos grupos sociais. As representações estão presentes na sociedade, por isso, não são um produto de uma construção individual, mas sim, um fenômeno social que, de alguma maneira, segundo Moscovici, impõe-se aos indivíduo.

Para a perspectiva construtivista o fato do conhecimento ser social, de que os sujeitos o possuem e tentem transmiti-lo, de que seja partilhado, não significa que o conhecimento seja simplesmente adquirido por cópia ou transmissão verbal. Se isso fosse possível, como explicar que a compreensão das crianças de idades diversas sobre as concepções da sociedade diferenciem tanto entre elas, embora vivam na mesma localidade (ser rico ou pobre; a noção de lucro; o direito)? E o que dizer das compreensões que são idênticas (podemos nos referir aos mesmos pontos), embora vivam em diferentes países e culturas? Isto evidencia que não é apenas a influência do meio, mas há uma construção do conhecimento por parte da criança. Com as informações fornecidas pelos adultos e com o que a criança seleciona, ela vai construindo a representação da organização social e das atividades sociais e logo consegue uma série de normas sobre o que deve ou não fazer. Assim “hay que tener, pues, presente que la construicción del conocimiento está determinada socialmente, pero que se realiza por individuos y cada individuo tiene que llevar a cabo individualmente esa construcción, con todas las presiones que queramos”.(DELVAL, 1991, p. 192).

Ao final da década de 1940 surgiu um renovado interesse em estudar as dificuldades que a criança tinha em conhecer os fenômenos sociais. Até esta data, a psicologia interessava-se principalmente em pesquisar a conduta da criança e afirmava que esta se devia à influência do meio em que se desenvolvia. O interesse crescente em investigar mais profundamente as diferentes formas de estruturação do conhecimento social tem feito com que muitos trabalhos, envolvendo diferentes

questões e sob diversos enfoques teóricos, venham sendo realizados, tal como ocorreu com o estudo da construção do conhecimento físico e do lógico-matemático.

Na obra “A representação do mundo na criança”, Piaget (1926/2005) demonstrou que o conteúdo do pensamento da criança, suas crenças e a elaboração de explicações sobre fenômenos e fatos passam por diferentes níveis de complexidade.

Nas obras “O raciocínio na criança” (1924/1978) e “O julgamento moral da criança”

(1932/1977), Piaget fornece os pontos de partida para o estudo do conhecimento social, afirmando que as interpretações sociais, feitas pela criança sobre um mesmo fato, assumem diferentes significações e passam por várias mudanças até chegarem a uma elaboração final.

Os estudos de Piaget e seguidores sobre o conhecimento social (DELVAL, 1989, 1994, STRAUSS, 1952; JAHODA 1979, 1981, 1983; FURTH, 1980; DANZINGER, 1958) demonstraram que, embora esteja inserida no mundo social desde o nascimento, a criança não dispõe, ao nascer, de instrumentos intelectuais completos, nem de uma representação do que a rodeia; ao contrário, necessita construir ambos concomitantemente. Nesse processo, ela não se limita a reproduzir fielmente as informações provenientes do meio social, mas as reelabora ativamente a partir de seus próprios instrumentos intelectuais, afetivos e sociais, postos em funcionamento pelos interesses, motivações e necessidades, que estão relacionados ao contexto social em que o sujeito vive.

Ao longo do desenvolvimento, a criança constrói um repertório muito completo de comportamentos, indicando o que se deve ou não fazer e o que se pode esperar do mundo segundo as distintas situações. Esses comportamentos assumem a forma de representações, constituindo um modelo do mundo e não se parecem em nada a uma assimilação passiva, produto da influência dos adultos; ao contrário, são o resultado de uma atividade construtiva da criança a partir de elementos que recebe e seleciona do meio sociocultural.

Para o desenvolvimento social a criança precisa formar representações dos outros e de si mesma, assim como os diferentes tipos de relações sociais, como parentesco, amizade, autoridade, entre outros. A criança aprende a reconhecer as

diversas situações que vive no seu cotidiano e age sempre como de costume. Como afirmam Delval e Padilla, “cuando nos dirigimos a otro tenemos expectativas sobre lo que va a hacer, realizamos anticipaciones de su conducta, y la nuestra está guiada por esas anticipaciones. Construimos modelos de las situaciones y nos comportamos adecuadamente dentro de ellas” (1999, p, 127).

Nos últimos trinta anos surgiu a psicologia do conhecimento social, que é o campo específico desse estudo e que busca compreender como damos sentido às condutas dos outros, como as tornamos significativas, como as interpretamos, como as aceitamos de forma habitual, como interpretamos a conduta dos outros e a ligamos à nossa, situando-a dentro do nosso sistema social. Pretende, enfim, entender a construção individual do conhecimento social. Como afirma Delval (1989, p. 251), “(...), la conducta social no puede entenderse sin estudiar el conocimiento social, y trata de estudiar cómo se origina esse conocimiento, sobre todo el conocimiento de los otros, el de uno mismo, y las relaciones entre uno mismo y los otros.”

Delval (1989, 1994) e Delval e Padilla (1999) esclarece que as representações ou modelos elaborados pelo sujeito sobre a realidade em que vive abrangem os distintos aspectos do mundo natural, psicológico e social. Os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos sobre o conhecimento social podem ser classificados em três grupos temáticos, caracterizando-os como:

a) No conhecimento dos outros e de si mesmo, também chamado de conhecimento psicológico ou pessoal, o sujeito vai elaborando um conhecimento das pessoas e das relações com elas, e através dele vai conhecendo a si mesmo. Do ponto de vista do sujeito, pode ser considerado um conhecimento psicológico, pois considera o estado mental dos outros e se antecipa como vão se comportar entre eles ou em relação com o sujeito. Do ponto de vista de quem está fora da relação, vê-se como conhecimento social, porque há relação entre pessoas. Este tipo de estudo tem recebido o nome de cognição social, onde estudam as relações interpessoais como a amizade, a autoridade, entre outros.

b) o conhecimento moral e convencional trata da forma como o sujeito vai adquirindo as regras ou normas que regulam as relações com os outros. As normas morais regem os pontos mais gerais das relações interpessoais, enquanto as normas convencionais visam regular os mais particulares, próprios de cada sociedade. Estes estudos se originaram no trabalho de Piaget sobre o julgamento moral (1932/1977).

c) o conhecimento das instituições caracteriza o campo propriamente social, sendo o objeto de pesquisa da sociologia, envolvendo as relações entre os indivíduos ou grupos que transcendem o individual. O estudo dos sujeitos como seres sociais, que estão inseridos em instituições sociais e que se comportam desempenhando papéis, como é o caso das relações com o bancário, com o professor, com o comerciante, com o político, entre outros, não são relações pessoais, como é o caso da amizade; mas são relações entre papéis sociais, pois se tratam de relações institucionalizadas. “Lo que más propriamente podemos llamar conocimiento social es ese conocimiento del funcionamiento de la sociedad en sus distintos aspectos, que es un conocimiento de relaciones institucionalizadas” (DELVAL, PADILLA, 1999, p. 128).

O conhecimento do que seja propriamente social, que seria a construção feita pelo sujeito dos aspectos que constituem o conhecimento social, vai se aprofundando cada vez mais e sofrendo sucessivas reorganizações. Dessa forma, a criança vai construindo os princípios gerais da organização social que certamente não se formam rapidamente, mas sim ao longo do tempo.

O conhecimento que primeiramente era basicamente psicológico, isto é, simplesmente o conhecimento do outro e as regras que eram utilizadas para regular o comportamento vão ampliando-se até aparecer a diferença entre as pessoas e o papel social que elas desempenham.

As formas de relações sociais aumentam com o tempo, como já dissemos.

Inicialmente há o relacionamento de autoridade, de dependência de amizade, que são relações entre pessoas. Com o tempo aparecem relações que são mais amplas como as de dependência política ou econômica, que não são mais puramente relações entre

pessoas. A relação que se estabelece com o bancário não é uma relação pessoal, mas sim com uma pessoa que desempenha uma função. A criança inicialmente não entende que a atividade que o bancário realiza é uma atividade social e que ele precisa trabalhar para poder sustentar-se. As crianças supõem que os adultos encontram satisfação em desempenhar as suas funções. “Las personas desempeñam las funciones porque está dentro del orden natural que las realicen y parece que implícitamente se supone que los sujetos encuentran un placer en la realización de esas funcione: les gusta hacer esa tarea” (DELVAL, 1991, p. 207).

Vemos então que o estudo do conhecimento social evidencia dificuldades na compreensão da sociedade e seu funcionamento. Sua construção implica em questões sociais com as quais as crianças têm pouca experiência e as informações geralmente são fragmentadas, muitas vezes contraditórias e provêm de fontes muitas vezes diversas. Além disso, a criança precisa realizar a difícil tarefa de integrá-las num sistema coerente.

É complicado perceber na formação da criança o que advém do social e o que se deve ao individual, onde há ação de fatores internos e onde ocorrem as transmissões exteriores. Quando a criança está aprendendo sua língua materna, ela entra em contato com símbolos e signos organizados por várias gerações, e também necessita ter condições biológicas que estão ligadas ao sistema nervoso que pode ser precoce ou tardio, dependendo da criança. Dessa forma percebemos a presença das interações coletivas e fatores orgânicos. Assim, há explicação sociológica e biológica para o mesmo fato.

Como afirma Piaget, a psicologia e a sociologia são interdependentes:

Cada um dos problemas que suscita a explicação psicológica se encontra, pois, sobre a explicação sociológica, com a única diferença que na sociológica o “eu” é substituído pelo “nós”

e que as ações e “operações” se tornam, uma vez completadas pela adjunção da dimensão coletiva, interações, quer dizer, condutas se modificando umas às outras (...) ou formas de

“cooperação”, quer dizer operações efetuadas em comum ou em correspondência recíproca.(1965/1973, p. 22).

Piaget busca analisar, então, como e de que maneira a vida social interfere na lógica do sujeito:

A esse respeito a psicologia genética, que estuda o desenvolvimento dos conhecimentos sob o duplo aspecto de sua formação psicológica e de sua evolução histórica, depende, tanto da sociologia quanto da psicologia, a sociogênese dos diversos modos do conhecimento não se revelando nem mais, nem menos importante que sua psicogênese, pois são estes dois aspectos indissolúveis de toda formação real. (PIAGET, 1965/1973, p, 25).

Esta problemática revela dois aspectos paralelos, mas distintos, que estão relacionados à transmissão do entendimento racional da verdade. Um desses aspectos é o egocentrismo, que está na mente humana, que confunde os fatos. O outro fator é o sociocentrismo, isto é, as forças sociais que conduzem para a rigidez do conhecimento humano e não para a plasticidade da criatividade humana. Estes dois fatores trabalham concomitantemente para constranger o desenvolvimento do conhecimento racional.

Tanto o egocentrismo como o sociocentrismo constituem-se como oposição às operações descentradas da razão. As representações coletivas sociomórficas revelam a forma como os indivíduos se representam em comum, seu grupo social e o universo.

Piaget nos diz:

E é porque essa representação só é intuitiva ou mesmo simbólica, e não ainda operatória, que ela é sociocêntrica, devido a uma lei geral a todo o pensamento não-operatório, que é a de permanecer centrado em seu sujeito (individual ou coletivo). Ainda mais, transmitida e consolidada pelas coações da tradição e da educação, ela se opõe precisamente à formação das operações racionais, que implicam o livre jogo de uma cooperação de pensamento fundamentada na ação. (1965/1973, p.84)

O sociocentrismo pode ser traduzido como ideologia na medida em que sua função traduz as idéias e aspirações nascidas de conflitos sociais e morais, centrando o universo sobre os valores elaborados pelo grupo. O processo de conhecimento objetivo supõe uma descentração que se caracteriza como semelhante na sociedade e no indivíduo. Da forma que o sujeito toma consciência de seu ponto de vista libera-se do seu egocentrismo intelectual, em conseqüência, o pensamento coletivo é liberado do

sociocentrismo, pois descobre as amarras que o retêm à sociedade, se situando em um conjunto de relações que as une à sua natureza (PIAGET, 1965/1973).

Conforme vemos em Smith (1995), Piaget nunca afirmou que o individuo sozinho possa construir o conhecimento real. Ele sempre voltava sua ótica para a inter-relação entre a contribuição social e individual na busca do conhecimento. Para Piaget a transmissão inicial de todos os conceitos se dá por via social e sua legitimação racional requer a intervenção de fatores lógicos. Assim, o teórico considera a experiência social como condição para o desenvolvimento intelectual, mas a busca da superação, do entendimento, deve ser interna.

Piaget (1976) ainda enfatiza que uma troca real de pensamento requer indivíduos que pensem inicialmente em termos de valores transmitidos culturalmente.

São regras, conceitos e signos que estão à disposição do sujeito para então repensá-los, usando os próprios recursos intelectuais. Isso subentende que toda interação social se manifesta sob a forma de regras, de valores e de símbolos. Este tema será melhor explicitado no próximo tópico.

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