Se até então Merleau-Ponty, emO olho e o espírito, detivera-se em expor como
a ciência e um tipo de pensamento fundamentado nessa ciência afastaram-se de um
mundo de ser bruto, é agora à pintura, sobretudo, à experiência da visão
38realizada por
ela, que recorrerá ao explicitar esse mundo de sentido bruto e suas implicações. Ou,
antes, será voltando-se para uma análise da pintura que Merleau-Ponty revelará esse
mundo.
Afirmando que “a arte, e especialmente a pintura, abeberam-se nesse lençol de
sentido bruto do qual o ativismo nada quer saber.” (OE, p. 15-13), Merleau-Ponty
introduz, finalmente, o tema que sustenta esse ensaio. Como introdutoriamente já fora
mencionado, tal tema consiste na pintura.
Esse recuo a um mundo bruto, concretizado, especialmente, pela pintura, além
de apontar no que consiste esse horizonte originário, nos revela também algumas
particularidades da pintura em relação às outras artes.
Após a consideração que introduz a pintura nesse ensaio de Merleau-Ponty, o
que se sobressai na seqüência são algumas afirmações do filósofo francês que identifica
um caráter pré-cultural na postura do pintor e em seu trabalho.
A pintura é caracterizada, então, como uma prática inocente, que pode
suspender-se de posições morais ou instituições culturais. Diferente até mesmo da
filosofia ou da literatura, que impõe ao homem sempre a adoção de uma posição ou
explicitação de uma opinião, a pintura não inflige ao pintor a responsabilidade de
apreciações. “O pintor é o único a ter direito de olhar sobre todas as coisas sem nenhum
dever de apreciação.” (OE, p.15-14)
38Marilena Chaui bem explicita essa experiência: “O que é a experiência da visão? É o ato de ver, advento simultâneo do vidente e do visível como reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que misteriosamente os sustenta.” (CHAUI, M.Experiência do pensamento. p. 164)
Nesse ponto Merleau-Ponty não só parece retomar uma discussão, explicitada
em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, com Sartre, mas também confirmar
certa prerrogativa da pintura
39em relação ao originário.
Enquanto Sartre em Que é a literatura? concede à prosa o privilégio da
significação, valorizando-a, por conseguinte, por sua disposição para o engajamento,
Merleau-Ponty
40estima o trabalho do pintor justamente por sua falta de necessidade em
estabelecer uma posição.
“Como se houvesse na ocupação do pintor uma urgência que excede qualquer
outra urgência. Ele está ali, forte ou fraco na vida, mas incontestavelmente
soberano em sua ruminação do mundo, sem outra ‘técnica’ senão a que seus
olhos e suas mãos oferecem à força de ver, à força de pintar, obstinado em tirar
deste mundo, onde soam os escândalos e as glórias da história, telas que pouco
acrescentarão às cóleras e às esperanças dos homens, e ninguém murmura.”
(OE, p. 15-15)
É sensato que em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, conforme
observamos no capítulo anterior, é a fala que ajuda Merleau-Ponty a ponderar sobre a
intersubjetividade
41. Entretanto, em O olho e o espírito, a pintura logo torna-se
protagonista quando ele volta-se para o sentido bruto. Pois enquanto a literatura ou a
filosofia - enfim, o que exige a fala -, estão além desse sentido, por outro lado, a
música
42estará muito aquém do designável.
“Ao escritor, ao filósofo, pede-se conselho ou opinião, não se admite que
mantenha o mundo em suspenso, quer-se que tomem posição – eles não podem
declinar as responsabilidades do homem que fala. A música, inversamente, está
muito aquém do mundo e do designável para figurar outra coisa senão épuras do
Ser (...)” (OE, p. 15-13)
39 Sobre o privilégio da pintura, escreve Izabel Dias “Não constituirá a arte, para Merleau-Ponty, a linguagem por excelência? Talvez por isso Merleau-Ponty não cessa de pensar a arte e talvez mesmo de considerar a filosofia como a arte. Neste percurso o privilégio vai para a pintura, pois ela possibilita uma outra forma de reflexão mais próxima do Sensível mais afastada dos quadros conceituais.”(DIAS, I. M. Elogio do Sensível, p.215)
40Vale mencionar que as teorias concernentes à obra de arte e significação de Merleau-Ponty diferem enfaticamente das de Sartre.
41O poder de sedimentação da fala revela um tipo de conhecimento, uma camada de aquisições, que pode ser retomado pelo outro sem que ele precise recorrer ao originário.
Compreendemos, em aLinguagem indireta e as vozes do silêncio, que o mundo
abordado pela fala, principalmente a fala falada, é sobretudo um mundo cultural
43, que
suas operações nos sugerem mais as construções humanas que o horizonte que as
sustenta. E, será justamente por isso que, ao falar sobre a gênese da linguagem,
Merleau-Ponty recorrerá à pintura. Pois ela, acentuadamente mais que a fala, revela o
fundo de silêncio, uma camada mais profunda, uma camada de sentido que fundamenta
toda a linguagem.
Mas é inevitável, aqui, nos questionarmos sobre o motivo que leva
Merleau-Ponty a não escolher a música, que segundo ele está muito aquém do mundo, para falar
de uma camada primordial. Se a música está muito aquém do mundo, mais que a
própria pintura, não estaria ela numa posição privilegiada ao se tratar do sentido bruto?
Ainda que a resposta para tal pergunta não esteja explícita, pois neste texto o
filósofo trata da música apenas na consideração brevíssima citada anteriormente, uma
colocação de Merleau-Ponty pode nos ajudar a encontrar uma resposta para tal questão.
Essa colocação consiste em dizer que a música está muito aquém do designável.
As ligações operadas pela música com o Ser do mundo não são tão evidentes
como as realizadas pela pintura. A música lida apenas com “(...) épuras do Ser, seu
fluxo e seu refluxo, seu crescimento, suas explosões, seus turbilhões.” (OE, p. 15-14).
Nela, talvez, as operações da percepção, do estilo e corporais não sejam tão evidentes
como são na pintura. Dessa forma, também, por estar muito aquém do mundo e do
designável, a música não se apresenta como um meio privilegiado para Merleau-Ponty
ponderar sobre os temas fundamentais de sua filosofia.
Revelando-se como entre um “meio termo”, o trabalho do pintor não está tão
vinculado ao mundo cultural como está o do escritor, bem como também não está tão
afastado desse mundo como está o do músico.
Essa posição “a meio caminho” do pintor, que precisa fazer um retorno
constante ao mundo bruto em suas operações para firmar o que culturalmente o cerca,
essa capacidade do pintor de retomar a cultura e, ao querer ir mais longe, ter que
retornar ao mundo de sentido bruto para reformular suas aquisições, e assim, de fato,ir
mais longe do que já estava construído, enfim, essas operações realizadas, e o que no
43 Conforme explica Izabel Dias: “Porque há um horizonte de sentido comum, é que a comunicação intersubjectiva é possível. Esse horizonte é o mundo com o qual estamos misturados. Para Merleau-Ponty, a linguagem não exprime pensamentos mas exprime, ante de mais, um mundo cultural.”(DIAS, I. M. Elogio do Sensível, p.115)