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Platão vai à guerra

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 34-51)

I - Introdução

No livro hoje conhecido como Metafísica, Aristóteles declara que cabe ao ilósofo procurar a ciência “das causas primeiras (pois dizemos que conhecemos uma coisa quando consideramos conhecer sua causa primeira)” (Livro I, 983a). Mais adiante, a irma: “A maioria dos primeiros

ilósofos acreditava que os princípios de todas as coisas se encontravam exclusivamente no domínio da matéria.” (983b) “Depois de passar os olhos pelas opiniões destes pensadores, poder-se-ia pensar que a única causa é a que pertence à classe que se chama material. Mas, progredindo desta maneira, a realidade mesma indicou-lhes o caminho a seguir e os obrigou a uma indagação ulterior.” (984a) “A existência ou a produção do bem e da beleza nos seres não tem verossimilmente por causa nem o fogo, nem a terra, nem nenhum outro dos elementos (...) Além disso, seria injusto con iar ao acaso e à sorte assunto tão importante.” (984b) “Sócrates, ao se ocupar da moral e desinteressar-se da natureza em conjunto, buscou nesse campo o universal, sendo o primeiro a dar atenção às de inições. Platão adotou seu modo de pensar, mas entendendo que a de inição não deve se referir ao sensível e sim a outro tipo de realidade; com efeito, é impossível que haja de inição comum de uma coisa sensível, pois esta sempre está em contínua transformação. Chamou tais entidades de Ideias, sustentando que as coisas sensíveis estão fora destas, mas recebem seu nome delas, pois a pluralidade das coisas que levam o mesmo nome que as Formas existem por participar delas (...). Quanto a averiguar qual é a natureza da participação ou da imitação, é um problema que deixaram [tanto Platão como os pitagóricos] sem solução.”

Assim, segundo Platão (pelo menos na apresentação de Aristóteles) as coisas não possuem suas qualidades de uma forma casual ou eventual, mas em virtude de sua participação em uma Ideia universal, incorpórea, imutável, única e eterna. As coisas azuis assim o são por sua participação na Ideia Pura de Azul, as coisas redondas o são por sua participação na Ideia Pura do Redondo, e o mesmo se dá com objetos abstratos como a beleza: as coisas belas assim o são por sua participação na Ideia Pura do Belo etc. O caráter totalmente particular do mundo, que nos chega pelos sentidos, é somente uma aparência, sendo a essência última do mundo de natureza imaterial ou lógica, composta pelas Ideias puras. Essa realidade verdadeira não está no nível do sensível e deve ser descoberta pelo esforço da contemplação das Ideias, das quais os objetos particulares são

apenas uma participação, uma realização sempre imperfeita.

Segundo observa Aristóteles – e como o próprio Platão expôs em seus últimos Diálogos –, esta doutrina traz consigo uma espécie de multiplicação das coisas: a cada particular corresponderia uma Ideia Pura. Esta teoria platônica das Ideias apresenta, pelo menos, as três seguintes dificuldades:

Existe uma ideia universal de absolutamente todas as coisas, mesmo as coisas mais insigni icantes e esdrúxulas? Por exemplo, existe uma Ideia Pura de cada um de nossos ios de cabelo, ou de cada uma das gotas do mar ou de atos como se pentear ou vestir-se para sair? Ou há Ideias somente de algumas coisas privilegiadas, especialmente nobres?

Em segundo lugar, a Ideia se manifesta toda nos particulares correspondentes ou somente uma parte dela se realiza? Como se dá esta “participação” dos particulares na Ideia universal? De que natureza será a Ideia para que possa ser uma e, ao mesmo tempo, muitas?

Em terceiro lugar: para unir a Ideia universal com o particular, é preciso uma ponte, uma conexão. Seria esta conexão uma nova Ideia? Seria particular ou universal? Para unir as coisas com suas Ideias, não seria necessária outra Ideia? E isto não se repetiria até o infinito?

En im, podemos concordar com Platão que, para compreender o mundo, precisamos sair do plano sensível dos meros particulares diversos e mutáveis e investigar suas ideias correspondentes, suas naturezas lógicas. Mas bem se vê que esta relação entre universal e particular é enormemente complicada e que a teoria platônica das Ideias não é a única que pode explicar esta relação.

II

O franco-atirador (EUA, 1978), de Michael Cimino, e Amargo regresso

(EUA, 1978), de Hal Ashby, dois filmes sobre a guerra do Vietnã.

Os filmes bélicos conseguem captar a Ideia Universal da Guerra?

Se nos perguntássemos platonicamente “O que é a guerra?”, deveríamos indagar não sobre as propriedades empíricas das guerras que realmente aconteceram, mas a respeito da própria Ideia de guerra, de sua essência pura, que poderia até jamais ter sido plenamente realizada. Os ilmes de guerra, que constituem um gênero cinematográ ico, dizem o que a guerra é ou só apontam algumas de suas características contingentes?

Platão perguntou-se sobre ideias de coisas que parecem ter um dos seguintes cinco tipos fundamentais: (a) Ideias valorativas (o Bem, o Belo, o Justo etc.), (b) Ideias lógicas (a Identidade, a Diferença, O Ser, o Não-ser, o Uno, o Múltiplo, a Semelhança e Diferença etc.), (c) Ideias matemáticas (Círculo, Diâmetro, Número), (d) Ideias de objetos materiais (Pedra, Ferro, Homem), (e) Ideias de objetos arti iciais (Mesa, Martelo etc.). Pode-se notar que a guerra não é de nenhum destes cinco tipos: não é valorativa, nem lógica, nem matemática, nem material, nem arti icial. Trata-se, na verdade, de um tipo de evento ou de prática humana. Será legítimo perguntar por sua Ideia platônica? Esta foi, precisamente, uma das questões formuladas: existe uma Ideia de absolutamente tudo? Existe uma Ideia da guerra?

Durante um certo tempo, os americanos trabalharam imageticamente com a questão ético-política da guerra do Vietnã, dando origem a algumas obras-primas do cinema, como Platoon, de Oliver Stone, e Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola. No ilme de Michael Cimino, O franco-atirador , um grupo de amigos pertencentes a uma comunidade ortodoxa russa na Pensilvânia – Michael (Robert de Niro), Nick (Christopher Walken) e Steven (John Savage) – é convocado para lutar na guerra do Vietnã. O começo do ilme os mostra trabalhando numa siderúrgica, divertindo-se juntos nos bares da cidade com outros amigos e saindo para caçar veados. São simples, extrovertidos, saudáveis e despreocupados. Cimino contrapõe a terrível precariedade da situação dos três amigos com os preparativos para o casamento de um deles, Steven. Um casamento é, por de inição, um voto de con iança na existência de um futuro, algo como o começo de uma vida. Diante da alta probabilidade de morrer em uma guerra, aquele casamento aparece – embora em meio à alegria um tanto exagerada da festa – como uma espécie de castelo construído sobre um pântano.

Curiosamente, as cenas de guerra ocupam a menor parte do ilme, que na verdade é muito mais uma re lexão a respeito do valor da vida humana do que um ilme de guerra stricto sensu. No início do ilme, os jovens literalmente brincam com a vida, sem saber de seu valor genuíno (por exemplo, fazem apostas sobre as chances de ultrapassar um caminhão em alta velocidade) e saem para caçar impelidos pela necessidade de saber que são capazes de voltar com as mochilas cheias de cadáveres, fruto de seus tiros certeiros. Suas armas são uma diversão; a vida, uma espécie de objeto de aposta, sempre está aberta a possibilidade de riscos divertidos. Michael mata um veado e observa sua agonia com indiferença, completamente inconsciente do valor da vida e da terrível realidade da dor.

Para todos eles, a guerra será uma experiência decisiva, depois da qual nada mais será como antes. Durante uma ação, os três se tornam prisioneiros dos vietcongues e são obrigados a jogar roleta-russa sob a ameaça de golpes e castigos ísicos. Quem se recusar a participar é atirado em um poço cheio de água e ratos. O jovem recém-casado, Steven, é o mais fraco e não suporta a experiência. Voltará dela traumatizado e paralítico. Nick, por sua vez, assimila a experiência de outra forma, não menos patológica, transformando-se em um jogador pro issional de roleta-russa; enquanto Michael é o único que consegue voltar aparentemente sem maiores feridas, ísicas ou morais. Depois do retorno, Michael sai novamente para caçar e, diante de um novo veado à mercê dele, como os que antes matava a sangue-frio, dispara para o alto, de forma libertadora, permitindo que o animal fuja e continue gozando as maravilhas da existência, que agora o jovem aprendeu dolorosamente a respeitar. Nick morre em uma sessão de roleta-russa e depois de seu enterro o grupo de amigos, inclusive o paralítico Steven, reúne-se triste e pensativo ao redor de uma mesa para tomar café e, muito lentamente, um deles começa a cantar, quase aos sussurros, God Bless America, sendo de imediato acompanhado pelos demais, todos como que levados por um forte sentimento comum de união, “apesar de tudo”.

O ilme de Hal Ashby, Amargo regresso , ao contrário, tem um tom bem diferente e não apresenta nenhuma cena de guerra. Luke (John Voight) é um sargento que voltou do Vietnã paralítico, depois que um objeto metálico afetou sua coluna. Está em um hospital, anda em uma padiola, apoiando-se em uma bengala, arrasado e cético, convencido de ter sido enganado e de ter participado de algo que não tinha absolutamente nenhum sentido. Por outro lado, Sally (Jane Fonda) é casada com Bob (Bruce Dern), um o icial

que está partindo para o Vietnã cheio de ideais de patriotismo. Durante a ausência dele, Sally trabalha como voluntária no hospital e conhece o amargurado Luke, e ambos se apaixonam. Bob volta da guerra com a perna ferida e se prepara para receber uma condecoração, mas confessa a Sally que, na verdade, ele mesmo se feriu com a própria pistola ao ir tomar banho. O inal alterna as cenas de um discurso fundamentalmente antibélico de Luke, diante de uma plateia de jovens, com as do suicídio de Bob no mar.

Talvez se possa pensar que dois ilmes que mostram tão pouco da guerra não sejam adequados para pensar a essência platônica da guerra. Mas, ao contrário, aqueles ilmes que mostram cenas de guerra quase ininterruptamente (como muitos ilmes de guerra classe C) talvez não propiciem de forma tão adequada uma re lexão ilosó ica sobre o fenômeno como estes dois ilmes. Ambos mostram, de certa forma, como uma guerra realmente acaba, o que é uma guerra ou, parafraseando o título de um ilme antigo de Jerzy Kawalerowicz, mostram “o verdadeiro im da guerra”. Em determinado momento, Sally pergunta a Bob como é a guerra e ele responde: “Não sei como é. A TV mostra como é. Mas não mostra o que é.” O que é a guerra pode ser estudado de forma completamente abstrata, sem que as propriedades empíricas da guerra sejam apresentadas. Nos dois ilmes, a guerra é exatamente aquilo que faz com que Michael, Nick, Steven e Luke se transformem em psicóticos, inválidos, amnésicos e amargos. Neles deve se re letir, portanto, a essência da guerra.

Mas podem essas ressonâncias psicológicas da guerra, completamente pessoais, ser consideradas elementos pertencentes a sua Ideia platônica? Poderíamos dizer: “A guerra é um con lito armado assumido quando as negociações pací icas foram esgotadas e no qual dois ou mais países, ou duas ou mais facções de um mesmo país, se atacam mutuamente, até que um deles seja vencido, ou até que ambas as partes decidam entrar em um tipo de acordo.” Nesta de inição, foi dito o que é a guerra, sem nenhuma alusão às reações psicológicas dos envolvidos. Mas a guerra foi captada em sua essência por esta de inição? Precisamente, o meio de expressão do cinema permite acrescentar a emocionalidade da guerra a sua compreensão puramente lógica, sugerindo que é uma caracterização logopática a que nos dará, efetivamente, a Ideia da guerra. A guerra é inseparável de sua ressonância afetiva; não se pode entender o que é a guerra simplesmente por meio de uma caracterização objetiva. Se o universal platônico, a Ideia em si da guerra, for entendido de forma

puramente lógica, o cinema desconstruirá, certamente, este tipo de universal, distanciando-se da caracterização platônica da Ideia.

Platão pertencia a uma época em que se pensava que as coisas tinham uma essência, uma natureza, algo que as de inia de forma permanente e estável. De certa forma, esta ideia foi se perdendo ao longo da história da iloso ia. A linguagem do cinema é, em particular, especialmente desconstrutiva de essências ixas ou de Ideias Puras, pela sua própria estrutura, por sua forma peculiar de formular as questões com as quais se ocupa. E isto traz um problema para o aparato categorial platônico: o cinema tende a mostrar algo que Aristóteles já havia visto em suas críticas a Platão, que uma mesma coisa pode ter mais de uma Ideia, mais de uma essência. A imagem mostra que as coisas são atravessadas por visões diferentes, por abordagens e acessos diversos. Os dois ilmes “de guerra” mencionados aqui fazem uma desconstrução logopática da Ideia puramente intelectual da guerra, de maneiras completamente diferentes e talvez opostas: O franco-atirador proporciona uma solução “sublimada” da questão. Por mais que a guerra tenha destruído a vida dos três amigos, eles ainda são capazes de entoar com sentimento uma canção em homenagem à América, à pátria, entendendo que ela está além de todo aquele sofrimento absurdo. Já Amargo regresso parece a irmar, com um tom irado, que a América coincide com as decisões que efetivamente foram tomadas, especi icamente as decisões acerca da intervenção norte- americana na guerra do Vietnã, e que não há lugar para canções patrióticas em meio a tanto horror. Os soldados foram enganados e não é possível imaginar uma América mítica para além da degradação na qual os americanos foram submersos pelos próprios americanos. (Esta é a ideologia desenvolvida mais tarde pelos filmes de Oliver Stone.)

A diferença na solução conceitual da questão da guerra, nos dois ilmes, pode ser analisada através das relações afetivas entre personagens e, particularmente, em seus personagens femininos. É notável que nos dois

ilmes haja uma mulher no meio de dois homens. Em O franco-atirador , Linda (Meryl Streep) ama Nick e é cortejada por Michael. Nick vai à guerra e não volta; Michael volta mas não é correspondido, ou o é a partir da angústia e da desolação, não por amor. Em Amargo regresso, Sally ama Bob e é cortejada por Luke. Bob vai à guerra e volta, mas não é mais correspondido. Bob é um conceito-imagem da atitude patriótica orgulhosa diante da guerra. Esta atitude é depreciada no ilme de Ashby ao ponto da ridicularização. Luke é um conceito-imagem da atitude crítica e cética diante da guerra. Sally amava Bob, mas deixa de amá-lo para amar Luke.

Afasta-se do patriotismo orgulhoso para se aproximar da atitude crítica e arrasadora do sobrevivente cético e decepcionado. Sally sofre o processo que o diretor quer que o espectador sofra ao ver seu filme.

A função de Linda no outro ilme é muito diferente. Nick é um conceito- imagem da atitude inocente e ingênua diante da guerra, que sofre uma decepção traumatizante (algo semelhante a Ron Kovic em Nascido em 4 de

julho, de Stone). Linda o ama, mas Nick nunca corresponde, e durante a

guerra nunca lhe escreve uma carta nem lhe telefona. Diante destas atitudes, Linda acaba cedendo ao amor de Michael, que é o conceito- imagem da atitude serena, sóbria, que nem se orgulha de ter ido à guerra (como Bob), nem desenvolve uma psicose por causa da guerra (como Nick ou Steven), nem sequer uma neurose (como Luke), mas volta com serenidade, entendendo que tudo o que sofreu não o macula, nem macula a imagem da América. Linda é a porta-voz da ideologia do ilme de Cimino; ela escolherá Michael, sobre o cadáver do fracassado Nick, cantarolando

God Bless America apesar de tudo. Enquanto Sally abandona o nacionalismo

belicoso em favor da crítica cética, Linda abandona a psicose negativa para se entregar ao ex-combatente austero, nem ressentido nem orgulhoso, que mantém, apesar de tudo, esperança na grandeza da América.

O problema platônico é: qual dos dois ilmes consegue mostrar a Ideia da guerra? Na verdade, Platão diria – se tivesse ido ao cinema alguma vez – que os dois ilmes mostram uma certa maneira de participar da Ideia da guerra, mas que nenhum deles pode mostrar a própria Ideia. Esta é uma espécie de Forma Pura de que os exemplos concretos somente se aproximam, sem coincidir nunca com ela. É como se os dois ilmes aproveitassem a Ideia da guerra, sem nunca esgotá-la ou representá-la completamente. O interessante é que os dois ilmes dizem coisas contrárias a respeito da guerra, em suas respectivas caracterizações logopáticas. Mas pode uma coisa ter duas essências, duas Ideias platônicas, até mutuamente contrárias? Alguém poderia replicar: “Exatamente, os ilmes mostram somente particulares. Nada têm de universal. Cada um deles mostra simplesmente as reações de pessoas particulares, de forma que não há nada de estranho em que se oponham, não há nenhuma di iculdade estritamente lógica nisso.” A questão é: as características da guerra mostradas nestes ilmes são a realização de certos universais, ou são apenas produtos de experiências particulares? As reações e atitudes dos personagens que o ilme mostra são simplesmente experiências destas

pessoas em particular ou pretendem representar valores e posturas universais?

Certamente Platão diria que os particulares remetem, inevitável e necessariamente, a universais. Mas também diria que não se devem transferir as características contingentes dos exemplos particulares, com suas di iculdades e incongruências, para o plano das Ideias Puras. Os dois

ilmes podem dizer coisas opostas, mas isso não quer dizer que a Ideia que transmitem seja incongruente, mas que essas obras estão exempli icando diferentes aspectos da Ideia Pura, que nunca se manifesta inteira em nenhum ilme. Segundo Platão, toda coisa ou evento particular participa de alguma Ideia universal, tem sua Ideia em outra parte, não nela mesma (mesmo que esta tese possa ser interpretada somente lógica, e não meta isicamente, no sentido de que não precisamos pensar que o mundo se divida em dois). Os dois ilmes mencionados tratam da guerra, mas mostram visões contrárias a respeito dela.

A linguagem do cinema parece sugerir que a determinação da Ideia de uma coisa deve incorporar também elementos “páticos”, emocionais e não apenas elementos intelectuais. Mas este componente pático do conceito- imagem está sendo usado nestes ilmes com uma intenção estritamente cognitiva, em interação com o componente lógico, ou a emoção do pathos aparece somente com um sentido persuasivo, de opinião? Da resposta a estas perguntas depende a inserção do cinema – como método de tratamento de Ideias – no universo platônico, uma vez que, se a segunda alternativa fosse correta, certamente Platão expulsaria destemperadamente os cineastas da República, como parece que fez com os poetas. O cinema deve mostrar a Platão que as imagens são cognitivas e têm valor universal. Se não, não será admitido.

Cada ilme de guerra remete à Ideia da guerra, remete a um universal que está em outro lugar. Mas, por isso mesmo, o particular nunca é totalmente um particular, sempre está apontando para um universal. Só que o caráter logopático do cinema modi ica, de certa forma, a natureza deste universal. Diante da conduta do ex-combatente Michael, de O franco-

atirador, por exemplo, poderíamos a irmar: “Existem casos assim”, sem

pretender universalidade em um sentido lógico, que seria algo como: “Todos são assim.” Se “existem casos assim”, signi ica que não é impossível que existam, quer dizer que é possível assumir esta atitude. O cinema constrói um tipo peculiar de universalidade e sua inserção no mundo parece ocorrer mediante um juízo existencial (de não vacuidade, no sentido de “Existe pelo menos um caso assim” ou de “Pode haver”) e não através de uma pretensão de universalidade abrangente (“Todos são assim”). Talvez a universalidade peculiar da imagem cinematográ ica

permita, em todo caso, que conceitos-imagem contrários sejam apresentados em relação à mesma coisa particular.

Mas aqui aparece outro caráter típico do cinema: seu caráter iccional e imagético. Poderíamos dizer: “Na realidade, não existem ex-combatentes como Michael. Só existem no cinema, isto é, na icção.” Mas o cinema tem um forte caráter impositivo ou instaurador. Ao apresentar os objetos de

No documento O Cinema Pensa, Julio Cabrera (páginas 34-51)