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O Poder Judiciário como intérprete constitucional: o controle de constitucionalidade

CAPÍTULO II O PODER JUDICIÁRIO E SUA CONJUNTURA FUNCIONAL

2.1. O Poder Judiciário como intérprete constitucional: o controle de constitucionalidade

Na conceituação do que podemos considerar ser a função das Cortes Constitucionais, Mauro Cappelletti, em sua obra O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado (1992), afirma que aquelas surgiram num sentido apartado do Poder Judiciário, muito mais ligado ao Poder Legislativo, uma vez que, na ideia inicial da separação de poderes, o objetivo dos juízes era apenas o de aplicar as normas, sem conteúdo criativo, ao passo de que caberia ao Tribunal Constitucional, também chamado por Cappelletti (1992) de “Tribunal de Cassação”, interpretar as leis em sua matéria e quando dos conflitos provenientes de sua criação. Contudo, de acordo com Cappelletti (1992), o que se observou, principalmente após a Revolução na França, foi uma mudança de paradigma do Judiciário, que, no que se refere ao seu objetivo existencial, possuía “[...] não apenas a função de interpretar, mesmo além da letra, o verdadeiro sentido da lei, mas, com certeza, a função de julgar a validade das leis, isto é, de sua correspondência com uma norma superior às próprias leis” (CAPPELLETTI, 1992, p. 43). Os Tribunais Constitucionais, por sua vez, passaram a integrar o Judiciário num papel de órgão supremo deste Poder, atuando no controle dos erros dos juízes de instâncias inferiores.

Nesta senda, para entender melhor a atuação dos órgãos do Poder Judiciário, Cappelletti (1992) procurou analisar a atuação deste, nos mais variados países, a partir do tratamento dado ao controle normativo, de acordo com cada viés adotado para tanto. Nesse sentido, Cappelletti (1992) delineia o controle difuso e o concentrado, destacando a ocorrência e as consequências

44 de cada uma perante a sociedade, e perante o próprio Estado, na sua produção normativa, dentro da ideia democrática de atuação governamental.

Cappelletti (1992), ao descrever o controle difuso, afirma que este ocorre em qualquer grau de jurisdição, podendo ser feito por qualquer órgão do Judiciário, e que a inaplicabilidade de uma norma apenas seria afastada ao caso concreto. Contudo, Cappelletti (1992) critica tal forma de controle, principalmente no que se refere aos países adotantes da common law, que vincula as decisões aos precedentes jurisdicionais, fazendo com que, inegavelmente, os efeitos de uma decisão de invalidade normativa passem a ser erga omnes. Nesse caso, de acordo com Cappelletti (1992), a atuação do Judiciário, num sistema de princípio de vinculação aos precedentes, iria para além da interpretação da lei no caso concreto, exercendo um verdadeiro juízo de eliminação de leis, por lhes retirar a eficácia. Nas palavras de Cappelletti (1992):

Mas eis, ao invés, que, mediante o instrumento do stare decisis, aquela “mera não aplicação”, limitada ao caso concreto e não vinculatória para os outros juízes e para os outros casos, acaba, ao contrário, por agigantar os próprios efeitos, tornando-se, em síntese, uma verdadeira eliminação, final e definitiva, válida para sempre e para quaisquer outros casos, da lei inconstitucional: acaba, em suma, por tornar-se uma verdadeira anulação da lei, além disso, com efeito, em geral, retroativo (CAPPELLETTI, 1992, p. 82).

Já num sistema de controle concentrado, Cappelletti (1992) explica que este se preocupa muito mais com a nítida separação dos poderes, num sentido de evitar algum autoritarismo que pudesse ressurgir com a supremacia de algum poder sobre outro, transferindo o controle da normatividade para um Corte Constitucional, não contemplando tal poder para os órgãos jurisdicionais como um todo. Dessa forma, o Tribunal Constitucional, segundo Cappelletti (1992), deveria se ater à interpretação da lei, delimitar sua validade perante os princípios e regramentos da Constituição, e determinar sua eficácia erga omnes, de maneira geral, jamais ampliando essa interpretação para além das margens definidas na Carta Magna, de modo que as fundamentações das decisões sempre girem em torno da normatividade existente, afastando a amplitude da vinculação aos precedentes.

De outro modo, surge a teoria de Jürgen Habermas, ao analisar a estrutura da divisão de poderes em sua obra Direito e Democracia: entre a facticidade e a validade (1997), onde admitiu a hipótese de um poder lançar mão da competência de outro poder, e questionou como essa situação se relacionava com a produção da normatividade num Estado Democrático. Para Habermas (1997), a questão da intervenção entre os poderes já se inicia no controle de constitucionalidade exercido pelas Cortes Federais, uma vez que, levando-se em conta o conceito de Democracia como autodeterminação dos povos, este controle, quando analisado em

45 sua forma abstrata, deveria caber ao próprio legislativo, que é o órgão legitimado para fazer leis.

Ainda, de acordo com Habermas (1997), essa concentração do controle de constitucionalidade no Poder Legislativo auferiria a este órgão o autocontrole, determinando definitivamente a autonomia do poder. A lógica que Habermas (1997) entende existir, nesse sentido, é a de que “O legislador não dispõe da competência de examinar se os tribunais, ao aplicarem o direito, se servem exatamente dos argumentos normativos que encontraram eco na fundamentação presumivelmente racional de uma lei” (HABERMAS, 1997, p. 301).

Habermas (1997) buscou ainda comparar o entendimento sobre o assunto, de dois dos maiores estudiosos clássicos da teoria do direito, nos quais as legislações mais recentes, principalmente a brasileira, têm se inspirado: Carl Schmitt e Hans Kelsen. Segundo Habermas (1997), o primeiro defendia que o controle de constitucionalidade abstrato não concebia uma questão de simples aplicação de norma, já que se fosse assim, haveria apenas a comparação destas, sem a subsunção de normas gerais umas sobre as outras, e para o segundo somente seria possível a sobreposição de uma norma hierarquicamente superior, quando a norma inferior contivesse vícios em sua formação, contudo não preconizava tal acontecimento às normas com vícios materiais.

Dessa forma, Habermas (1997) explica que esta análise de normatividade, nos Estados democráticos, acabou recaindo sobre o Poder Judiciário, mais especificamente, aos tribunais constitucionais, por uma precaução em proteger os direitos fundamentais, e que, inicialmente, este controle de constitucionalidade se prestava a ponderar princípios de direito, quando estes se contrapunham um com outro.

Ainda de acordo com Habermas (1997), existia o entendimento de que o direito é indeterminado, e não se encontra em todo o tempo dentro da lei expressa, sendo função da jurisdição encontrar esse direito e realiza-lo em suas decisões. Ressalta Habermas (1997), também, que esta situação fática, não constitui necessariamente uma ameaça à lógica da divisão de poderes. Uma ameaça à separação de poderes, e consequentemente ao próprio Estado Democrático, de acordo com Habermas (1997), poderia surgir no seguinte contexto:

Nos domínios da ação não-formalizada, a possibilidade de contextualização de uma aplicação de normas, dirigida à totalidade da constituição, pode fortalecer a liberdade e a responsabilidade dos sujeitos que agem comunicativamente; porém, no interior do sistema de direito, ela significa um crescimento de poder para a justiça e uma ampliação do espaço de decisão judicial, que ameaça desequilibrar a estrutura de normas do Estado clássico de direito, às custas da autonomia dos cidadãos (HABERMAS, 1997, p. 306).

46 Nesse sentido, Habermas (1997) afirma que se tornou tão grande a importância normativa que se deu aos direitos fundamentais e aos princípios de direito, que as normas expressas passaram a não ser aplicadas conforme suas próprias diretrizes, aplicando-se muito mais os valores comuns da principiologia normativa. Esta, de acordo com Habermas (1997), possui uma abstração tão grande, que pode tomar diferentes conclusões a cada caso julgado, fazendo com que o Poder Judiciário agisse numa função legislativa concorrente, dando-se muita ênfase à jurisdição, e retirando o protagonismo dos verdadeiros representantes do povo, legitimados para tal, o que vai de encontro com os preceitos de um Estado liberal.

Habermas (1997), nessa senda, ainda afirma que, apesar de, dentro de uma Democracia, considerar-se que a jurisdição interventiva é necessária na interpretação das normas, visto a preponderância dos princípios e dos valores comuns nas sociedades atuais, que adquirem validade com as decisões judiciais, deve-se tomar cuidado com o excesso de decisionismo e de apropriação de funções atípicas ao poder jurisdicional, sob o risco de “Ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária” (HABERMAS, 1997, p. 321).

Nesta senda, a autora Yuri Frederico Dutra, em sua obra Democracia e Controle de Constitucionalidade (2012), resgata a pesquisa de Habermas, confrontando as teorias de Kelsen e Schmitt, no contexto atual da separação dos poderes, trazendo a problemática da concorrência de funções também no âmbito do controle de constitucionalidade.

Dutra (2012) reafirma o entendimento de Habermas, quando suscita que a análise de como se dá a interpretação das leis feita pelo Judiciário devem verificar se os valores sociais à época da decisão não estão sendo impostos de modo arbitrário. Percebe-se da obra que, não se busca denegar a importância da reflexão nas interpretações judiciais, apenas que as divagações feitas no âmbito da justificação das decisões não podem implicar em inovação normativa. Em suas palavras “[..] A discussão do bem e o justo, não cabe ao poder Judiciário, mas a teoria discursiva auxilia na correta aplicação do direito, porque a teoria normativa é composta por uma parte em que escolhas morais são necessárias e auxiliam nas escolhas a serem tomadas” (DUTRA, 2012, p. 26).

Nesse sentido, Dutra (2012) expõe que, na teoria da proteção da Constituição, Schmitt não entendia ser correto a delegação da interpretação da norma ao Poder Judiciário, devendo caber a este apenas a subsunção normativa, bem como a aplicação da norma ao caso concreto. Dutra (2012) explica que, no entendimento do citado pensador, é função precípua do

47 Legislativo decidir, de forma política, sobre a validade formal e material das leis, uma vez que este é o órgão legítimo de representação do povo, restando ao Poder Executivo, de forma subsidiária, tal função, a partir do momento em que o Legislativo se mostrasse impossibilitado de o fazer, já que “[...] no Contrato Social, o príncipe (o soberano, no Estado Absolutista) havia delegado ao povo o direito de ser representado pelo Legislativo [...], podendo retomar esse direito novamente” (DUTRA, 2012, p. 31).

Já para Kelsen, de acordo com Dutra (2012), a interpretação da norma, e também a proteção à Constituição caberia a um órgão neutro, que não deveria ser nem o Executivo, nem o Legislativo, para garantir que não se retornasse à uma situação de concentração de poder, e consequentemente, um autoritarismo governamental. Para o citado pensador, segundo Dutra (2012), este órgão seria o Tribunal Constitucional, que diferentemente dos juízes de primeira instância, estes sim apenas aplicadores da norma, os compositores daquele teriam a prerrogativa de interpretar a norma de forma a validá-la ou não, agindo não com um caráter jurídico, mas sim político. Ainda, para Dutra (2012), Kelsen defendia que o Tribunal Constitucional fosse eleito pelo povo, mas admitia que sua legitimidade para atuar da forma descrita existiria da mesma forma, caso fossem escolhidos a partir dos outros poderes. Nesse sentido, definiu Dutra (2012):

Assim, em alguns Estados, há um órgão superior, que está acima do Legislativo, Judiciário e Executivo, que é o tribunal constitucional; em outros, esse órgão faz parte do Judiciário, como por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, no Brasil. O tribunal constitucional é responsável pela interpretação da Constituição, pela proteção da coerência da ordem jurídica e por dirimir as disputas entre órgãos Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como analisar o controle de constitucionalidade de normas jurídicas e os recursos constitucionais (DUTRA, 2012, p. 48).

Segundo Dutra (2012), no estudo sobre o pensamento de Habermas, este defende que se justificaria o controle das leis pelo tribunal constitucional, a partir do momento em que não houvesse uma efetiva representação do povo no Legislativo, quando este se corrompe na elaboração normativa. Para o pensador, o tribunal, normalmente, age como guardião da Constituição, e tem sua legitimidade na proteção procedimentalista das normas. Contudo, o que vem ocorrendo nos tribunais constitucionais, de acordo com Dutra (2012), é a prática do paternalismo2, no qual o Judiciário passa a tomar decisões pelo povo, usurpando a função

precípua do Legislativo, e a qual deve ser evitada num Estado Democrático.

2 Dutra (2012) descreve paternalismo a partir da ideia de Habermas, que dizia se definir como “a usurpação por um dos Poderes da autonomia de vontade da população”, e afirma também que não é papel do tribunal constitucional agir de forma a assumir o protagonismo da produção normativa do Estado.

48 Entretanto, essa ideia de renegar a função judicial do controle de constitucionalidade não é o que predomina nos Estados de Direito. Em verdade, grande parte dos estudiosos atuais criticam a posição de Habermas, considerando-o formalista demais, e defendendo que esse controle feito pelo Judiciário não interfere nas funções do Legislativo, sendo, inclusive, necessário para a efetivação da Democracia. O real problema da atuação do Judiciário, para estes autores, como se verá adiante, e que prejudica a Democracia, ao não respeitar o basilar da separação de poderes, é a possibilidade de interferência de fatores externos ao Direito, os quais demonstram uma importância demasiada para os juristas atuais, e que têm como consequência mudanças de paradigmas relacionados às leis e princípios delineados na Constituição.

2.2. Interpretação judicial e discricionariedade: as atuais formas de se fazer justiça no