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CAPÍTULO I POESIA E UNIVERSO TEÓRICO

2. POSICIONAMENTOS TEÓRICOS VERSUS POESIA

2.3. poesia e estética

A partir dos anos sessenta começa a esboçar-se a crise do imanentismo estruturalista que conduzirá a um afastamento da dominante linguística como componente essencial do objecto da teoria literária. Uma necessidade mais pragmática de relacionar o texto literário com condicionantes contextuais e extratextuais levará a que o pensamento sobre o texto literário contemple realizações culturais e estéticas relacionadas com o acto de comunicação do texto literário e com a componente do imaginário do seu receptor.

Como sequência da contemplação, por parte dos estudos literários, do contextualizar do texto literário e da abrangência, no seu estudo, do campo das relações extratextuais, desenvolve-se uma abordagem da poesia na qual o poema surge como uma das possibilidades de concretização da exteriorização do imaginário. O imaginário torna-se, por sua vez, factor

polissémico no processo de transformação do mundo vivido em mundo poético, na esteira de posições já assumidas por escritores, por exemplo, do início do século XVII, como o demonstram as palavras de J. B. de Vico em

Extraits sur la poésie34:

L´imagination, les recevant des sens, combine et agrandit à l´excès les effets les plus visibles des apparences naturelles; elle en fait des images lumineuses, qui ébluissent par une illumination soudaine les esprits et, par la suite, excitent les sentiments humains par l´éclair et les tonnerres de leurs merveilles.

Esta ideia da interferência entre o real e o imaginário como caracterização explicativa do poético é retomada por Maurice-Jean Lefèbve em Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Ainda bastante apegado as estruturalismo, como o próprio título da obra deixa entrever, Lefèbve parte do princípio de que o acto de imaginar pressupõe, por parte do imaginador, uma certa distorção da percepção, distorção essa que faz actuar um mecanismo realizante-idealizante que constitui «a fascinação da própria arte, e mais particularmente da literatura, e mais particularmente ainda da obra literária.»35

Aparentando subtrair-se a um posicionamento de raiz linguística, Lefèbve aponta uma hierarquização que pressupõe a particularização de um código literário dentro do artístico e, dentro deste, a incidência na «linguagem» como factor caracteriza dor da literatura, o que, não deixa de revelar uma certa dependência da herança saussuriana, pois considera «o real» como «o significante da linguagem e suas diversas combinações objectivas» e o «irreal» como «o significado, as conotações e evocações derivadas.»36 34[SEGHERS (org.), 1956: 162] 35 [1980: 13] 36 [1980: 13]

Contudo, a par deste arreigamento de carácter predominantemente linguístico, admite já abertura para a pertinência da relação da obra com o mundo, ao definir a obra literária como «lugar de um duplo movimento: um primeiro movimento que poderíamos dizer centrífugo e pelo qual ela se abre ao mundo exterior e aos seus problemas, pondo-lhe a questão da sua `realidade´; um outro movimento, agora centrípeto, que tende, pelo contrário, a fechar a obra sobre si mesma, a constituí-la como seu próprio fim e seu próprio sentido, num esplêndido isolamento.»37

Ao pretender articular a perspectiva linguística com a perspectiva extra-linguística de uma mundivivência que ultrapassa a da própria linguagem, Lefèbve acaba por remeter a caracterização do discurso literário para um desvio ao discurso quotidiano, deparando-se-nos, uma vez mais, uma oposição dicotómica, exclusiva, de tipo redutor. No entanto, quando pretende definir a intencionalidade literária, tanto na narrativa como na poesia, separa «discurso» de «referente prático do discurso» através da «presentificação da imagem», o que funcionaria como uma abertura da obra para a «realidade estética.»38

A visão do referente como «experiência total» mediatizada pela abertura da imagem leva Lefèbve a remeter, por sua vez, a especificidade do discurso da poesia para o facto de, na poesia, o referente ser, não só oposto ao significado, mas também absorvido por ele, o que o conduz a renunciar à distinção «poesia/prosa» mas o reconduz a nova dicotomia binária de exclusão, ao defender a oposição «discurso da poesia/discurso da narrativa.39

A posição de Maurice-Jean Lefèbve, ao conferir importância à

imagem como ponte intermediária entre o domínio da literariedade e o

domínio da estética é exemplo de uma vertente teórica que, embora ainda

37 [1980:14] 38

1980: 150 a 161]

apegada a componentes de reflexão linguística, admite que a «linguagem poética» é apenas uma das componentes do «discurso da poesia», podendo a caracterização deste discurso enveredar por contextualidades ou extratextualidades.

Outro exemplo do posicionamento exposto será o que assumiu Geoffrey Hartman em A voz da laçadeira, texto no qual considera que todas as teorias da linguagem poética procuram explicar dois efeitos indissociáveis: o efeito da «distância estética», que remete para uma atitude de distanciamento, reflexão e abstracção em relação ao mundo e à mundivivência, e o efeito de «iconicidade», que remete para uma atitude de proximidade com o concreto e a representação próxima da vivência. Aplicando estes dois efeitos à linguagem poética, ela encontraria a sua especificidade numa zona intermédia, a «zona da imaginação»,40 que configura, afinal, a arte poética na sua errância metonímica, e que Luís Miguel Nava, em Onde à Nudez, 41 poetica e metalinguisticamente define, num poema em no qual a extrema contenção linguística produz o efeito artístico de uma imensa amplificação de sentidos:

ARS POETICA

O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.

Reflectindo também, por um lado, uma raiz linguística, e, por outro lado, encarando a poesia como efeito artístico, apresenta-se-nos a perspectiva assumida por Iuri Lotman. Segundo ele, a poesia, tal como a literatura em geral, é uma parte autonomizável de um sistema de comunicação estética. A «linguagem artística» constituir-se-ia, pois, à

40

[1982: 31-44]

maneira das línguas, de um modo secundário, mas com uma enfatização do carácter figurativo ou icónico.

Em A estrutura do texto artístico Lotman considera que em arte, ao contrário do que acontece na língua natural, «aparece uma tendência constante para formalizar os elementos portadores de conteúdo, para os condensar, para os transformar em banalidades, para os fazer passar totalmente do domínio do conteúdo para o domínio convencional do código».42 Assim, e sem abandonar um fundo estruturalista, considera que a especificidade do texto poético, como texto estético que é, provem do facto de se assumir, simultaneamente, como «sistema de comunicação» e como «sistema modelizante».

A ideia de que, subjacente à linguagem do texto artístico, existe sempre um «modelo do mundo», representativa de uma visão idealizante da arte através da sua relação com a vivência objectal do sujeito e da sua mundivivência tinhamo-la já encontrado ao ler L´Art Philosophique43 de Baudelaire:

Qu´est-ce que l´art pur suivant la conception moderne? C´est créer une magie suggestive contenant à la fois l´objet et le sujet, le monde extérieur à l´artiste et l´artiste lui-même.

Pretendemos aqui evidenciar, no que respeita o nosso trabalho, o relevo que daremos à importância conferida por Lefèbve, Brik, Hartman e Lotman às componentes «arte» e «estética» na tentativa de definição da poeticidade, na sua articulação como a relevância dada ao referente da mundivivência. Estes autores constituem exemplo do afastamento progressivo de uma perspectiva predominantemente linguística em direcção à visão da poesia como vivência cujas definições ou limites passam,

42

[1978: 48].

primordialmente, por ser estéticas. A sua relação com o uso da

narratividade será, entre os aspectos desvendados, um dos que mais nos interessou seguir, como adiante veremos.

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