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CAPÍTULO I POESIA E UNIVERSO TEÓRICO

2. POSICIONAMENTOS TEÓRICOS VERSUS POESIA

2.4. poesia e recepção

A abordagem da especificidade do texto literário como parte de um sistema de expressão estética conduzirá alguns autores por uma via que terá já algo a ver com a estética da recepção. Jan Mukaròvský, por exemplo, assume uma posição teórica, em Escritos sobre estética e semiótica da

arte,44 que de certo modo sintetiza e equilibra as posições de Lefèbve e Lotman, atrás referidas. Apesar de ainda opor «denominação poética» e «denominação da linguagem falada», defende, no que diz respeito à poesia, a sua relação com a realidade e com a estética mas introduzindo já a atribuição de um papel relevante ao receptor:

A atenuação da relação imediata entre a denominação poética e a realidade é compensada pelo facto de a obra poética entrar, como denominação global, em relação com todo um conjunto de experiências vitais do sujeito – seja ele sujeito criador ou sujeito receptor.

Estamos, portanto, perante uma posição teórica que tenta articular uma perspectiva linguística com uma perspectiva estética e que aponta, ainda, para a estética da recepção, na medida em que concede importância ao espaço material de realização do texto como espaço indicativo de propostas de leitura relacionadas com referentes vivenciais intra e extratextuais. Cremos que esta proposta teórica se encontra articulada de

modo mais convincente a um «nível estilístico de decisão estética», como na linha de perpectivação do «texto artístico» defendida por A. García Berrio em Ut poesis pictura:45

El [texto artístico] representa un espacio privilegiado de propuestas materiales, las cuales son tantas otras pistas de la expressividad subconsciente del emissor, y itenerarios de lectura por los que discurren las respuestas esteticas de la receptión.

Salientamos nesta afirmação não só a consideração do texto como proposta de leituras, como acima referimos, mas também o facto de ser nela contemplada a pluralidade estética do ponto de vista do receptor, que nos parece ser um vector variável em tempo e lugar que desde sempre terá orientado a identificação do texto poético, consoante a aceitação da flutuação dos variados modelos e cânones. Deste modo, o problema da relação do texto poético com a estética passaria, também, por uma via de «previsibilidades» e não de certezas, como afirma D. W. Fokkema no pequeno ensaio publicado em Poetics Today, intitulado «The concept of code in the study of literature»46:

We may assume that the aesthetic experience has to do with a reorganization or revitalization of information that the reader has in store [...] [although] in some cases the esthetic effect appears to be predictable.

Pensar o texto literário como texto estético, articulando-o com a experiência vivencial do seu emissor e do seu receptor, acaba por conduzir a interrogações sobre o modo como inserir o facto literário isolado no contexto histórico da literatura. Como poderão o poema isolado, a obra

44 [1981: 184] 45 [1988: 186]

poética autónoma, ser testemunhos de momentos de uma evolução histórica literária? Segundo H. R. Jauss, em A literatura como provocação47, a resposta estaria na conjugação de um «horizonte de expectativa estética» com o funcionalismo da «arte da representação», numa visão da história literária considerada como uma história independentizada em relação processo geral da história, contemplando aspectos estéticos, políticos ou sociais apenas quando numa configuração intrínseca à literatura que, por sua vez, estaria dependente da «circunstancialidade» do leitor, do seu acto de recepção. Por sua vez, esta circunstancialidade que constitui o «processo físico» da recepção do texto configura um processo de «percepção dirigida» que engloba motivações e sinais constitutivos «que poderiam ser descritos por uma linguística textual.

O posicionamento teórico de Jauss parece, aparentemente, vir solucionar, na definição de obra poética, por um lado, o problema da conciliação da arte da linguagem com a expressão do sentir e, por outro lado, a relação do imaginário com o mundo vivencial. No entanto, como delimitar uma posição neutral, de onde a observação possa ser efectuada? De que modo instituir parâmetros não subjectivos nem arbitrários que determinem o «receptor ideal? Em que espaço e em que tempo localizá-lo? Algumas destas objecções foram levantadas por R. C. Holub, numa obra sobre a teoria da recepção de Jauss intitulada Reception Theory. A critical

introduction, na qual, por vezes utilizando as próprias palavras de Jauss,

detecta objecções tanto quanto à variabilidade da triangulação autor-obra- leitor como quanto à necessidade de ultrapassar a mera reacção circunstancial do leitor como, por exemplo, quando afirma:48

The ` process of the continuous establishing and altering the horizons ´ by mean of textual and generic clues would eliminate

46 [1985: 48] 47 [1993: 35-115]

the individual variability of response, and, at least in the theory, we could then establish a ` transubjective horizon of understanding ´ that determines `the influence of the text ´.

Outra objecção que poderia fazer-se ao «horizonte de espera» de Jauss é que ele surge sempre ligado a classificações do texto literário que partem da aceitação de cânones literários,49 sendo que a aceitação da autoridade de um texto pode encontrar-se distanciada das circunstâncias em que se insere o leitor, muito diversas, mesmo quando se verifique a contemporaneidade da produção e da recepção. Segundo Jean-Marie Shaeffer, em Qu´est-ce

qu´un genre littéraire?, «le régime autorial reste homochrome, alors que le

régime lectorial devient hétérochrome».50 Os próprios poetas disso estão conscientes quando na sua palavra poética referem a criação por parte de quem lê, como José Agostinho Baptista o faz nas primeiras e últimas estrofes do primeiro poema de Autoretrato:51

Sê quem me lê, decifrador de enigmas.

Folheia-me como a uma árvore de folhas soltas, se é outono.

Todas as palavras mentem, no interior da sua obscuridade. nada te prende ao verso,

aos seus ínvios caminhos,

às suas seduções de velha prostituta.

Que não cedas a essa luz de remotas lantejolas, às flores vivas que segura.

48 [1984: 60] 49

Cf. Littérature médiévale et théorie des genres, Jauss, 1986.

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Não ouças, não olhes:

ferem-te as palavras do deus e as suas garras de tigre nos muros de um coração que não o teu:

devorado já pelas páginas que lês, desprendendo-se das folhas e do outono, batendo devagar

Entendemos que o papel de «decifrador de enigmas» atribuído ao leitor não está, neste caso, arreigado a uma pressuposta intencionalidade autoral mas representa, sim, uma libertação, visto que o sentimento aberto que se desprende do texto se encontra anulada pela referência a um coração moribundo, «devorado já pelas páginas», que deixa a sua própria recriação ao desejo de impulso de desprendimento do verso, na leitura. O leitor como decifrador de uma «mentira», construindo a partir dela as suas verdades, representa no poema como que uma desmultiplicação concretizada do conceito de leitor ideal.

Apesar de todas as objecções que se possam colocar à teoria da recepção, cremos que o seu mais bem sucedido desafio foi o de pôr em

causa uma função cognitiva e ditatorial, que era atribuída tradicionalmente à realização estética, e renová-la, dotando-a com uma

componente de intencionalidade vivencial que renovou o pensamento do texto literário e que viria a conduzir todo um percurso que culminaria com a centralização dos estudos literários no barthesiano «prazer do texto», de que adiante nos ocuparemos.

Em relação à poesia, surgiram, na esteira da linha teórica de Jauss, posturas que nos parecem ter o seu enraizamento na estética da recepção. Jonathan Culler, por exemplo, apresenta em The porsuit of signs uma teoria

que se centra na análise das condições nas quais se produz o sentido. Sob a égide da semiótica, considerando, portanto, que a literatura é, essencialmente, um modo de comunicação e significação no qual se podem identificar sentidos, Culler lança um alerta para o perigo de separar a obra da sua interpretação, e ainda para o facto de, na relação da obra com o leitor, se poder cair no que ele denomina «massive distortions». Releva, portanto, a relatividade da autonomia do texto literário, considerando que a contribuição de textos anteriores para o estabelecimento de códigos torna possíveis vários efeitos do significado e do sentido do texto, o que o conduz a definir poema na relação da leitura com a construção52:

To discover the true meaning of a poem, one must interpret it in accordance with the principles by which it was constructed.

Esta articulação do sentido do texto com a sua recepção, aliando componentes de convenção e intencionalidade, testemunha também John S. Searle, numa perspectiva de raiz linguística, em Speech Acts:53

In our analysis of illocutory acts, one must capture both the intentional and the conventional aspects and especially the relationship between them.

Pondo de lado uma enfatização exagerada do papel desempenhado pelo receptor, cremos poder afirmar que a teoria da recepção relevou perspectivas essenciais para uma evolução dos conceitos de literariedade e de poeticidade em direcção a novos paradigmas teóricos, ao desviar o enfoque no conceito de língua literária para um enfoque nos modos como o texto literário é recebido, avançando, como afirma Pozuello Yvancos, para «la redefinición de la `Historia de la Literatura´, atendiendo a la historicidad

esencial de la propia teoría y de las lecturas y interpretaciones»,54 avançando ainda, portanto, para o apontar simultâneo de três perspectivas teóricas: a hermenêutica, a semiótica e a histórica.

Destas perspectivas, a questão que mais nos interessa relevar para o nosso trabalho é a da importância da recriação activa por parte do leitor

crítico, articulando-se este com a noção de que a teoria literária envereda

hoje, predominantemente, pelo caminho crítico de uma descrição

interpretativa da prática literária que se aproxima tanto da emoção do

leitor como da razão do teórico.

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