• Nenhum resultado encontrado

4 FUNDAMENTOS DA CONFIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

4.3 A política e a lei no Brasil

Bastos (1999) afirma que a vida política brasileira equilibra-se entre duas místicas; de um lado, a ordem e a autoridade decorrentes da tradição patriarcal; do outro, a liberdade e a democracia – desafios da sociedade moderna – formando um processo de equilíbrio de antagonismos. Como resultado, tem-se um sistema dual, pois, de um lado, existe o conjunto de relações pessoais estruturais, sem as quais ninguém pode existir como ser humano

completo, e de outro, há um sistema legal, moderno, fundado no indivíduo, modelado e inspirado na ideologia liberal e burguesa. “É esse sistema de leis, feito por quem tem relações poderosas, que submete as massas” (DAMATTA, 1997, p. 24).

Historicamente, a participação política das classes mais populares no Brasil sempre foi mínima. O povo nunca exerceu uma função revolucionária, nem nunca esteve à frente de nenhum levante político ideológico de grande impacto. Como analisa Guerreiro Ramos (1965) e como mostra a história, as classes mais abastadas sempre se fizeram presentes com maior assiduidade.

Holanda (1995, p. 160) complementa ao afirmar que “é curioso notar que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental”. Para ele, a separação da política e da vida social atingiu o máximo de distância, existindo em nosso meio muitos homens de idéias, sonhos, imaginação e só!

Na visão do autor, as palavras mágicas Liberdade, Igualdade e Fraternidade sofreram a interpretação: “adotamos as fórmulas da revolução francesa ou da república norte-americana, ajustando-as aos nossos velhos padrões patriarcais e coloniais, criando um descompasso entre sociedade e política” (HOLANDA, 1995, p. 179). É como se o Estado-nação moderno, individualista e impessoal, desconhecesse a sociedade personalista, relacional e carismática e lhe faltasse a sintonia com as práticas sociais vigentes na sociedade e na cultura (DAMATTA, 1997).

Para Holanda (1995, p. 183), “a idéia de uma espécie de entidade imaterial e

impessoal pairando sobre os indivíduos e presidindo seus destinos é dificilmente inteligível para os povos da América Latina”. Na política, “a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ´princípio de Autoridade` ou ´defesa da ordem`” (FREYRE, 2003, p. 123). Em nome do povo, age-se contra ele.

Outro fato importante é que, no Brasil, percebe-se a incapacidade de separação entre o espaço público e o privado, levando a pensar que o bem público é o bem de ninguém. Para Santiago (2001), esses conceitos, sob o ponto de vista político, têm enorme densidade nos dias de hoje, pois, com a aproximação dos negócios particulares com os públicos, estimulam a corrupção, fazendo do espaço público o lugar do interesse privado.

Nesse contexto, a cultura política acaba desprestigiando a idéia de nação e de bem- estar coletivo, a não ser os interesses privados dos poderosos e seus protegidos. Percebe-se também a dificuldade dessa sociedade em se adequar aos padrões burocráticos. Como

exemplo, tem-se o funcionário “patrimonial”, para quem a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios deles

decorrentes relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para assegurar garantias jurídicas aos cidadãos.

Complementar a isso, a escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se mais de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos segundo suas capacidades. Como afirma Santiago (2001, p. 101),

vale, portanto, não a competência, mas a individualidade, omitindo-se regras obrigatória, tendo apenas vínculos com o seu senhor, com isso, cria-se um Estado de interesse particular e não objetivo. Assim, funcionários dedicados e sem interesses pessoais constituem uma exceção da regra.

Holanda (1995) afirma que no Brasil os decretos dos governos nascem em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas. Só raras vezes há a pretensão de se associarem permanentemente às forças ativas. Para

Adorno (1988), as forças populares foram expulsas do âmbito institucional e as reivindicações democráticas, silenciadas. A existência de um direito público elaborado pelas elites e para as elites e o distanciamento desse direito público dos interesses e da cultura do povo cria, segundo Oliveira Viana (1974), um conflito com a vitória parcial do segundo. Trata-se do esforço das elites em obrigar o povo a praticar do sistema de direito por elas elaborado, mas que o povo desconhece e a que se recusa a obedecer, fazendo com que algumas leis peguem e outras que não peguem.

Essa “distância entre a norma legal e comportamento efetivo dá a medida do fracasso das elites em impor ao país figurinos constitucionais tomados em empréstimos a outras nações” (ALMEIDA, 1999, p. 297).

Esse fato é diferentemente do encontrado em outras sociedades, nas quais a lei busca o bem coletivo ou instrumentos para corrigir e fazer a sociedade funcionar bem , como pode ser percebido no trabalho de Kant de Lima (2001), que compara nosso sistema legal com o padrão dos Estados Unidos. No sistema americano, segundo ele, a base repousa no

pressuposto da origem local, popular e democrática da lei e do seu sistema de produção da verdade e resolução de conflitos por negociação e arbitragem, resultante do processo da experiência de igualdade e homogeneidade social em “uma sociedade que se concebe formada por indivíduos cuja diferença é irredutível e que convivem em um estrutura heterogênea e dividida em classes”. O direito surge como guardião dos direitos naturais dos indivíduos, bem como dos valores éticos da sociedade até mesmo contra o governo (Estado). A noção de igualdade é, portanto, formal pois todos têm direitos iguais às suas diferenças, desde que ela se expresse em termos aceitáveis pela sociedade local. O espaço público aparece, nesse contexto, como um espaço coletivo negociado pelo público que dele faz parte inserido num mercado em que todos teoricamente têm acesso. Para esse sistema só é valido a informação a que todos têm acesso.

Já, no Brasil, o sistema jurídico não tem origem popular ou democrática. “Alega ser o produto de uma reflexão iluminada, uma `ciência normativa´, que tem por objetivo o controle de uma população sem educação, desorganizada e primitiva” (Kant de Lima, 2001, p.108). Não tem sua origem na vontade do povo, como reflexo do seu modo de vida, como mostrado anteriormente. Assim, a ação da justiça é tida como constrangimentos externos ao

comportamento dos indivíduos.

Segundo Oliveira Viana (1974), paira sobre os elaboradores de leis o idealismo jurídico: a crença no poder transformador do direito-lei e a na viabilidade de transpor instituições de uma sociedade para a outra por meio da replicação de seus dispositivos constitucionais. Nesse sentido, o que importa é a coerência interna do sistema de regras

abstratas e não sua adequação às realidades da vida, à sociedade e seus costumes. Isso leva à coexistência de dois países: o legal e o real. O primeiro é o país das elites cosmopolitas e metropolitanas, entre as quais se destacam os juristas liberais. O segundo é a terra do, na expressão de Oliveira Viana (1974) povo- massa, com suas normas, comportamento e tradições próprias ignorados pelas elites.

Segundo Kant de Lima (2001), entre nós predomina o embate escolástico de teses opostas, em que apenas um deve ganhar, por ter saber mais autoritário do que o da outra. “Vale o argumento da autoridade, em prejuízo da autoridade dos argumentos: é o modelo do contraditório” (KANT DE LIMA, 2001, p. 109). O domínio público é o lugar controlado pelo Estado, de acordo com “suas” regras, de difícil acesso e, portanto, onde tudo é possivelmente permitido, até que seja proibido ou reprimido pela “autoridade”. Entre nós há espaço para o reconhecimento explícito da desigualdade: “você sabe com quem está falando” ou privilégios concedidos oficialmente a certas categorias de cidadãos pelos instituto de prisão especial são indicativos dessa situação.

Já nos Estados Unidos, o sistema de prova repousa sobre a idéia de que a verdade é fruto de uma decisão consensual sistematicamente negociada, em que a presunção da inocência tem destaque. A verdade pública, então, é fruto de uma negociação explícita e sistemática entre as partes interessadas.

No Brasil, o bacharel de direito que atua como interlocutor do sistema legal e segundo Adorno (1988), é “um intelectual disciplinado para privatizar conflitos sociais e que, nessa condição, aprendeu a colocar o indivíduo e sua liberdade como maiores coordenadores de uma luta política, relegando a um plano secundário a autonomia da ação coletiva, questão central na idéia de democracia” (ADORNO, 1988, p. 27).

Essa esquizofrenia leva a nossa sociedade a adotar mecanismos de adaptação como o “jeitinho” e a malandragem, “juntando, de modo quase sempre humano, a lei, impessoal e

impossível, com a amizade e a relação pessoal, que dizem que cada homem é um caso e cada caso deve ser tratado de modo especial” (SANTIAGO, 2001, p. 104), como é possível ainda perceber na sociedade contemporânea, conforme a constatação de Souza (2004, p. 85) ao analisar um grupo de homens na periferia carioca: “a malandragem era o único tom que parecia aceitável, já que ser malandro, de uma certa forma, era ser justo”.

Como diz um de nossos ditados, lembrado por DaMatta (1997): “aos inimigos a lei, aos amigos, tudo!”. Ou seja, para os adversários basta o tratamento generalizante e impessoal da lei, a eles aplicada sem nenhuma distinção e sem atenuantes. Mas, para os amigos, tudo, inclusive a possibilidade de tornar a lei irracional por não se aplicar evidentemente a eles. É a lógica de uma sociedade formada de “panelinhas”, de “cabides” e de busca de projeção social (DAMATTA, 1997). Em outras palavras: aos bem-relacionados, tudo; aos indivíduos (os que não têm relações), a lei.