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Por que crianças e adolescentes são maltratados? Explicações teóricas para a prática da

3 VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES:

3.1 Por que crianças e adolescentes são maltratados? Explicações teóricas para a prática da

A compreensão da ocorrência de maus tratos contra crianças e adolescentes é uma tarefa complexa que apresenta várias vertentes teóricas e explicativas quanto ao fenômeno. A compreensão e problematização quanto aos modelos e concepções teóricas utilizadas pelos serviços que atendem tais demandas são de fundamental importância para o enfrentamento da

questão. As pesquisas na área são analisadas a partir dessas pluralidades, enfocando aspectos da realidade de acordo com modelos teóricos que explicam a prática dos maus tratos, sendo usualmente os mais utilizados: reprodução das experiências de violência; desajustes familiares e psíquicos; alcoolismo e outras drogas; e a ordem macroestrutural e cultural. (GOMES; DESLANDES; VEIGA; BHERING; SANTOS, 2002).

O modelo de reprodução das experiências de violência intrafamiliar vividas durante a

infância está ancorado na lógica de que crianças vitimizadas pela violência intrafamiliar se

tornam adultos agressores, ou seja, os pais reproduzem os modelos de educação apreendidos na infância, por terem sofrido os mesmos tipos de violência. Os argumentos que compõem esse modelo reprodutivo estão fundamentados na abordagem psicológica. Neste enfoque, os fatores emocionais e ambientais moldam a personalidade dos membros do grupo familiar e comporiam o universo de vivências que seriam reproduzidas. Essa perspectiva tem um cunho determinista, não levando em consideração aspectos estruturais e históricos que interferem nas relações familiares que ampliam a compreensão da violência.

Outra explicação recorrente aos maus tratos na infância relaciona-se à violência

associada aos desajustes familiares, psíquicos, alcoolismo e outras drogas. Centra-se nas

características individuais e de personalidade do agressor, cuja natureza ‘psicopatológica’ e de doenças mentais predispõe ao comportamento violento. Nesse modelo, a explicação é construída com base na análise psicológica do agressor. Para Deslandes (1994), as classificações psicopatológicas do agressor para retratar condutas ‘antissociais’(categoria jurídica descrita na criminologia na década de 30) e ‘distúrbio de comportamento’ (categoria psiquiátrica da CID 10) da OMS (1995) são uma justaposição de conceitos jurídicos penais e psiquiátricos, revelando-se mais como um julgamento moral do que como uma classificação científica.

A ‘desestruturação familiar’ ou ‘disfuncionalidade familiar’ de cariz funcionalista tem um forte componente ideológico de criminalização das famílias que se diferenciam do modelo nuclear14. As classes populares, nessa perspectiva, carregam o estigma da culpa, da suspeita e da incriminalização permanente. A literatura especializada aponta para o fato de que a violência intrafamiliar assume diversas formas e atinge todas as classes sociais. A assertiva

14“[...] modelo de família ocidental, branca, anglo-saxã, predominantemente na década de 60 e 70, era baseado

em um casamento monogâmico estável e em papéis rigorosamente definidos entre os cônjuges. Este modelo de família nuclear,no entanto, nunca foi o mais característico entre as classes populares brasileiras. Assim as famílias de origens étnicas distintas, sem propriedade, e organizadas a partir de outros desenhos e estratégias seriam classificadas como ‘desestruturadas’ ou ‘disfuncionais’.” (DESLANDES; BARCINSKI, 2010).

desconstrói os mitos das famílias ‘desestruturadas’ e pertencentes às famílias subalternas (CHAUÍ, 2007; DESLANDES; BARCINSKI, 2010).

O alcoolismo é apontado na literatura como explicação da ocorrência de maus tratos cometidos contra crianças e adolescentes. Autores, como Gomes (2002), associa a questão do alcoolismo a fatores psicológicos. Os pesquisadores que utilizam esses modelos explicativos apontam que o álcool é uma substancia que altera o comportamento e desencadeia a violência.

Contudo, Minayo e Deslandes (1998) problematizam a questão, relativizando as evidências empíricas de pesquisas na área, por não ser possível discernir se o uso de drogas, entre estas, o álcool, potencializam comportamentos violentos, ou se é, por si, um fator causador de condutas violentas.

A concepção teórica explicativa dos maus tratos de crianças e adolescentes, para além de uma compreensão mecânica da realidade, busca abranger a macroestrutura, incorporando aspectos econômicos, sociais, culturais e históricos, a desigualdade e a dominação. Nessa compreensão, a violência não faz parte da natureza humana e não tem raízes biológicas centradas unicamente nas características individuais. Trata-se de um fenômeno complexo que se replica nas relações miúdas e cotidianas, com graves consequências nas singularidades dos indivíduos, mas suas causas relacionam-se à vida em sociedade. A história da violência contra a criança acompanha a história das relações sociais, e, sobretudo, familiares (ARIÉS, 1981). Nesse viés, a violência decorre de processos históricos, sociais e culturais, podendo ser controlada e erradicada, a depender das relações sociais em cena (MINAYO, 1994; SAFFIOTI, 2001; AZEVEDO; GUERRA, 2007; CHAUÍ, 2007).

Segundo esclarecem Azevedo e Guerra (2000), existe um modelo explicativo dominante na área da violência contra crianças e adolescentes denominado “modelo interativo ou multicausal” ancorado na Teoria Sistêmica, sendo seus principais pressupostos:

1. As forças ambientais, as características do agressor e as características da criança ou adolescente vítima atuam de maneira dinâmica e recíproca neste processo;

2. Segundo o modelo ecológico-ecossistêmico15 de Bronfenbrenner (1979), a realidade familiar, a realidade social, econômica e cultural estão organizadas

15 [...] Urie Bronfenbrenner é um dos principais autores que postula a visão ecossistêmica e destaca-se em seu

ponto de vista a idéia de uma interdependência de processos múltiplos na compreensão do desenvolvimento humano. O modelo ecológico proposto por Bronfenbrenner traz a representação de uma inter-relação entre a subestrutura sistêmica, caracterizando vários níveis de influência sobre a pessoa em desenvolvimento (ZAMBERLAM; BIASOLI-ALVES, 1996 apud MOLINARI; SILVA; CREPALDI, 2005).

como um todo articulado e como um sistema, composto por diferentes subsistemas que se articulam entre si de maneira dinâmica;

3. Segundo Belsky16 (1980), os maus-tratos infantis resultam da determinação de maneira múltipla de forças que atuam na família, no indivíduo, na comunidade e na cultura em que este indivíduo e a família estão inseridos;

4. Representa uma tentativa de superação dos modelos unidimensionais17.

Esse modelo teórico é hegemônico mundialmente na explicação dos maus tratos contra crianças e adolescentes, influenciando análises sobre o tema no Brasil, e objetiva superar o empirismo unidimensional. No entanto, Azevedo e Guerra (2010) alertam que esse modelo utiliza o mesmo marco referencial unicausal, denominado empírico-analítico, que incidem em críticas quanto a sua lógica interna, por apenas descrever uma realidade (fotografá-la), desconsiderando o conflito, o caráter dinâmico e histórico da mesma:

a concepção de causalidade privilegiada escora-se na “lei da interdependência universal”, a qual além de postular uma inter-relação entre todos os elementos, destruidora do sentido de direção, ignora que causa e efeito são momentos da conexão recíproca entre fenômenos e enquanto tal contingentes e históricos. Além disso, incorpora uma postura positivista de abordagem, herdada das ciências naturais, que acaba exigindo a fragmentação da realidade em fatores e variáveis definidos operacionalmente e qualificáveis para fins de observação empírica e objetivamente (p. 45).

Azevedo e Guerra (2000) ressaltam que tal explicação deixa de enfatizar, na relação de vitimização, a importância da concreticidade que estabelece a relação sujeito/objeto para a compreensão do fenômeno da violência nas relações humanas. Outro aspecto enfocado pelas autoras sobre a teoria multicausal e unidimensional refere-se aos seguintes pressupostos:

16 [...] Belsky propõe um modelo que visa a integrar diferentes contextos (plano individual, familiar, comunitário

e cultural) nos quais o indivíduo e a família estão situados) relacionados à ocorrência dos maus tratos infantis, propondo um modelo de análise alicerçado em quatro níveis: o desenvolvimento ontogenético, microssistema, macrossistema e exossistema. [...] o desenvolvimento ontogenético considera a herança que os pais abusadores trazem consigo para a situação familiar e para o desempenho do papel parental (MB SEI – TESES/USP, 2004, p. 25).

17 [...] Os modelos unidimensionais estão ancorados nos pressupostos deterministas da causalidade linear, cujo

componente desencadeador da violência ou abuso infantojuvenil seria o desvio (ou doença) de natureza individual (modelo psicopatológico ou social (modelo social), incidente nos ou sobre os pais agressores (AZEVEDO; GUERRA, 2000, p. 43).

assenta numa noção de homem enquanto conglomerado de variáveis capaz de ser controlado heteronomamente por quem “decifrar” corretamente a interação de fatores. Com isso, deixa a parte, a idéia de que o homem, enquanto histórico e social, é parcialmente determinado, mas é também criador de mundos e transformando realidades, visão essa que só uma perspectiva crítica permitirá resgatar (p.45).

A teoria crítica explicativa da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, servirá de compreensão desse fenômeno nesta dissertação, que considera os maus tratos que atingem crianças e adolescentes cometidas por seus pais, membros da família extensa ou responsáveis, reveladores de uma transgressão de poder dos adultos que imbricada em relações dialéticas mais amplas e complexas.

A tolerância social para com o fenômeno da violência na sociedade brasileira, para Chauí (2007), resulta do “mito da não-violência” que opera em antinomias, com tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade. Cristaliza-se em crenças que são interiorizadas e não são percebidas como tal e tidas não como explicação da realidade, mas a própria realidade que invisibiliza as causas da violência. As explicações empiristas da violência contra crianças e adolescentes, descontextualizadas dos elementos históricos e estruturais que as produzem, reiteram não apenas um simples pensamento, mas formas de ação, que reforçam valores e ideias que, atualizam e autoconservam as relações de dominação.

A violência, conforme observa Chauí (1985), é a ação que trata o ser humano não como sujeito, mas como objeto. Há violência quando uma diferença é transformada e tratada como desigualdade, e está em relação de hierarquia, mando e obediência. Na situação de violência, o dominado interioriza a vontade e a ação alheia, perdendo autonomia, sem, entretanto, reconhecê-lo, por efeito da alienação.

A vitimização de crianças e adolescentes, para Saffioti (2007), atinge transversalmente todas as classes sociais e, verticalmente, a sociedade. Os processos de dominação-exploração entre as classes não se constituem no único processo estruturador das relações sociais. Na sociedade ocidental em geral e na brasileira em especial, pelas características da formação social autoritária e escravista, estão presentes três sistemas que se articulam e apresentam uma relação contraditória e antagônica: patriarcado, racismo/étnico e capitalismo. No entanto, entre os adultos e as crianças/adolescentes, não há propriamente contradições, mas uma relação hierárquica de poder destinado a socializar a criança e transformá-la em sua imagem e semelhança.

3.2 Violência Intrafamiliar: expressão social das relações de dominação que vitimizam