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CAPÍTULO 2 – PERSPECTIVAS DA INTERAÇÃO MUSICAL

2.2 Por um conceito de interação

Nesta seção, discorro sobre o conceito de interação que norteará esta dissertação. Vale ressaltar que o percurso descrito na seção anterior não abarca em sua completude o todo já discutido sobre processos interacionais, e nem foi essa sua pretensão. Há um grande e importante segmento dessa discussão, que leva em conta esses processos no âmbito da livre improvisação, ou improvisação não idiomática, que não foi discutido no presente trabalho por uma questão de foco no objeto a ser analisado, e que se apresenta mais próximo de uma improvisação idiomática.

É importante ressaltar que o diálogo e a negociação, presentes na interação, podem ser encontrados, no meu entendimento, em, possivelmente, todas as práticas musicais performáticas, pois, tanto em músicas improvisadas, quanto em uma execução de música de câmara, como um quarteto de cordas, é possível encontrar processos interacionais, e estes vão diferir mais em grau que, efetivamente, em tipo. Corroborando com esta concepção, Gould e Keaton (2000, p. 143) argumentam que ―tanto performers de jazz quanto os eruditos interpretam suas peças e, ao fazerem isso, improvisam‖ (GOULD, KEATON apud COOK, [2004] 2007, p. 14):

―Os músicos podem muito bem tocar as notas exatamente como Mozart as escreveu. Mesmo assim, eles não as tocam exatamente como Mozart as escreveu, porque cada nota na partitura está sujeita a uma

negociação contextual de afinação, de valores precisos

de dinâmicas, de articulação, de qualidade tímbrica etc.‖ (COOK, [2004] 2007, p. 14) [grifo meu].

Com isso, Cook afirma que esses padrões musicais, como afinação, ritmo, andamento, dinâmica, não são exatos na performance erudita e sim negociados no momento da execução ―porque cada um está continuamente escutando o outro, acomodando seu andamento ao dos outros‖ (COOK, [2004] 2007).

A diferença reside mais no grau de interação, que propriamente no processo, pois, o que ocorre na performance do jazz, ou na música instrumental brasileira, aqui analisada, é a possibilidade de uma mudança significativa no caminho que era proposto por um performer. Dessa forma, o conceito de interação aqui proposto reverbera a definição que Monson (1996) faz quando afirma que ―o músico improvisando está sempre fazendo escolhas musicais em relação aos outros‖ (MONSON, 1996, p. 27) e isso pode ser observado no sentido oposto, pois a seção rítmica também se desenvolve a partir dessa escuta.

Uma grande força, encontrada no cerne dessa interação, é a possibilidade de mudança de rumo ou alternância de sentido que uma linha improvisada pode sofrer, sendo ela tanto o próprio solo improvisado, quanto um acompanhamento da seção rítmica. A interação aqui conceituada é capaz de afetar fluxos individuais, como afirma Hodson (2000), pois ouvir e responder um colega da banda é altamente valorizado entre os músicos de jazz (HODSON, 2000):

Em outras palavras, ao ver uma performance de jazz em termos do modelo do processo de improvisação delineado acima, qualquer coisa desempenhada por qualquer membro do conjunto pode potencialmente afetar qualquer outro membro do conjunto, aumentando o alcance das possibilidades de interações potenciais Muito além das descritas na lista de Rinzler. (HODSON, 2000, p. 35-36)40

Michaelsen (2013), na mesma linha, afirma que a interação é o processo de intervenção de um músico na direção do fluxo de outro, e amplia este conceito sustentando que esses processos de intervenção produzem projeções de continuações musicais no conteúdo musical subsequente (MICHAELSEN, 2013). Essa particularidade da interação que se refere à

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In other words, by viewing a jazz performance in terms of the model of the improvisational process outlined above, anything played by any member of the ensemble can potentially have an effect on any other member of the ensemble, increasing the range of possibilities for potential interactions far beyond those described in Rinzler's list.

escuta no momento da performance e a possibilidade de intervenções nos fluxos, apontada por Monson, Hodson e Michaelsen, é um aspecto importante do conceito de interação aqui discutido.

A crítica, feita por Hodson, sobre o entendimento da interação como um corpo de técnicas isoladas, que é possível vislumbrar em Rinzler, fez o autor elaborar um novo conceito sobre a interação, que é olhar para ela ―como algo mais elementar, como um processo musical contínuo que está incorporado no próprio tecido da performance e que por vezes se manifesta

como preenchimento ou pergunta e resposta‖ (HODSON, 2000, p. 35). Assim,

o conceito de interação será aqui entendido como um processo musical, e não como técnicas isoladas.

Tendo como ponto de partida, para o entendimento da interação como um processo contínuo, podemos pensar a relação do groove na manutenção desse processo. Como afirmam Monson (1996) e Berliner (1994), o groove é o responsável pela junção dos elementos da seção rítmica. Além disso, há a noção de que o groove fornece a solidez e coesão subjacentes para que os músicos possam interagir e improvisar livremente (MONSON, 1996). Como extensão dessa ideia e a aproximando da metodologia utilizada para as análises dessa dissertação, Michaelsen compreende a seção rítmica e, por conseguinte, o groove realizado por ela, como um alinhamento de fluxos individuais, ou seja, as linhas improvisadas, no momento da condução, pelos membros da seção rítmica, se alinham para que seja formada uma condução coesa e sólida como sustentação para o improvisador.

As construções dessas linhas são realizadas a partir de papéis pré- estabelecidos, que não são regras ou leis, mas sim ―o resultado de um acordo informal na comunidade de jazz‖ (HODSON, 2000, p, 39), que sugerem a linha de walkingbass para o baixista ou a condução característica do ride para o baterista, por exemplo, e de funções que cada membro do grupo deve realizar no momento da performance. Porém, para alguns autores, com os quais este trabalho se alinha, esses papéis e essas funções são ajustadas na e pela performance. Monson (1996) entende esses papéis como interdependentes e

flexíveis, Hodson (2000), na mesma linha, afirma que esses papéis além de flexíveis, necessitam ser negociados na performance.

Esse diálogo que ocorre entre solista e seção rítmica, e também, entre os membros da seção rítmica, levou autores a compreender essas negociações como próximas à conversação, ou que contém elementos análogos à conversa. Berliner (1994) encontra nas entrevistas que realizou com vários músicos da comunidade do jazz, principalmente em Nova Iorque, a recorrência de uma metáfora da conversação, em que os músicos, ao explicarem suas práticas e concepções no momento de improvisar ou acompanhar um improvisador, remetem à ideia de uma conversa, ou um diálogo entre seus pares.

Para explicar uma interação ocorrida em uma performance, Hodson (2000) argumenta que essa pode ser comparada a uma conversa, pois um músico sugere um tema (a ser conversado) e um outro responde a este tema, e complementa que para que exista essa conversa e, por conseguinte a metáfora da conversação na performance do jazz, a comunicação tem que fluir em ambos os sentidos (HODSON, 2000). Essa atitude responsiva, tão cara à interação, é valorada por Monson (1996) como a representação afro-americana no jazz e sua aproximação e analogia com a conversa são importantes para a construção desse conceito de interação aqui abordado. Apesar desse paralelo à conversação ser encontrado na literatura, e posto como alusivo à interação musical, ressalvo que é apenas uma metáfora, não representando a interação em si, que, por estar no âmbito musical, e, por conseguinte, artístico, opera por meios distintos da comunicação.

Isso posto, o conceito que norteou a dissertação como um todo, e as análises em específico, compreende a interação como um processo contínuo e responsável pela geração e desenvolvimento da performance improvisada. Interação que se manifesta, com grande potência, na possibilidade de influenciar e alterar fluxos em tempo real, quando ocorre engajamento de todos e escuta ativa para que a negociação se faça presente.